Livro de desembargador revela ensaísta que não se omite em relação às coisas de seu tempo
18 agosto 2022 às 16h18
COMPARTILHAR
O livro “Sobre Deuses e Homens” (Kelps, 180 páginas) mostra que o desembargador Luiz Cláudio Veiga Braga, do Tribunal de Justiça de Goiás, é um refinado intelectual público — um debatedor e analista das coisas de seu tempo, de seu país. Os ensaios curtos — e densos — remetem à arte de filósofos-ensaístas ingleses, como Isaiah Berlin e John Gray, sobretudo na clareza e na seriedade, digamos participante, das ideias.
Os artigos foram publicados em jornais, o que pode sugerir, à primeira vista, que há uma certa dispersão, um caráter provisório. Porém, se podem ser lidos separadamente (com proveito), o mais adequado é que o leitor consulte todos os ensaios — às vezes, “cronisaios” (ensaios escritos com o “calor” de crônica). Porque há conexões entre vários (quiçá todos), o que confere unidade-coerência à obra. O observador atento notará que a defesa da justiça — de uma justiça justa, que leve em conta a lei, com seus rigores, e a sociedade como ela é constituída (vive-se num país de ingentes desigualdades sociais, e com racismo evidente contra negros). Então, o ensaísta escreve sobre o império da lei e da realidade. É, por assim dizer, um realista — acima de tudo, um humanista (sua cultura, de matiz clássico, sugere isto).
Como se sabe, artigos e reportagens de jornal morrem ao nascer, sobretudo no mundo da pressa, cada vez mais líquido e escorregadio. Porém, os ensaios de Veiga Braga estão vivos, ativos, reverberando. São questionadores e alguns deles dariam ótimos podcasts. Vale insistir: são mais ensaios do que artigos tradicionais. E muito bem-escritos, bem-pensados. Não se trata de um ironista, mas, aqui e ali, percebe-se que se trata de um autor que escreve sem perder o humor. Daí certa graça (e não humor, diga-se), o que torna os textos interessantes e convidativos à leitura. Talvez seja possível sugerir que Veiga Braga é filho, como ensaísta, dos britânicos (George Orwell, por exemplo, era um fino ensaísta).
A cultura sedimentada de Veiga Braga o leva a escrever com sofisticação sobre os temas que aborda, mas o resultado, o ensaio, é de uma clareza ímpar. Daí a alta legibilidade dos textos, mesmo quando os temas são complexos. Há juristas, até entre os melhores, que escrevem de maneira tão complexa, até em jornais, que distancia os leitores. Citam leis em profusão, acrescentando jurisprudências, e os leitores acabam se afastando — às vezes, correndo. No caso do magistrado goiano, de 64 anos, que não escreve do pedestal, do Olimpo, mas de perto, ao lado de mulheres e homens de seu tempo, o que importa, não é a erudição jurídica em si, mas a exposição de assuntos intricados de maneira clara, objetiva. Sob sua pena, o difícil se torna simples, compreensível. Há, inclusive, textos que poderiam ser “espichados” para ensaios mais longos e até desenvolvidos em dissertações de metrado e teses de doutorado. De alguma maneira, o livro é uma guia para pesquisas ampliadas.
Observe-se que Veiga Braga aprecia citações, mas não no espírito tradicional, bacharelesco. Os aforismos são integrados aos textos e, no geral, são explicados. Por vezes, como introdução ou conclusão, conferem, não uma dissonância, e sim uma graça especial aos ensaios. A ilustração do autor não é pernóstica e visa ao esclarecimento, e não à vaidade da, digamos, cultura inculta.
Há uma tradição (por certo, em crise) de que magistrados devem ficar “longe” da sociedade, como se fossem auxiliares de Zeus, avaliando os homens com assepsia e certo menosprezo (não está se fazendo, por outro lado, a defesa do “mediatismo”). Veiga Braga, com toda a sua sensatez, é um ensaísta corajoso, que não se furta a opinar, inclusive a respeito da fragilidade da lei. Sim, a lei deve ser respeitada, mas sua elaboração — não são juízes, desembargadores e ministros que a formulam (pode até ser que, em certos casos, sejam inspiradores dos criadores de leis) —, uma atribuição do Legislativo, pode conter falhas, o que o ensaísta aponta. Sua discordância é sensata e civilizada. Há textos que “gritam”. Os de Veiga Braga parecem “dizer”: “Ei, me escute. O mundo pode ser visto de outro ângulo e pode ser mudado, se não no todo, ao menos em parte, para tornar a vida mais atraente, justa e civilizada”.
O ensaísta Veiga Braga quer mais iluminar e persuadir pela força das ideias — e não pelo grito. Hoje, com as redes sociais, criou-se uma cultura, se cultura é, de que ganha quem grita e xinga mais. O magistrado é um moicano: debate ideias, expõe as dos outros e a sua — com delicadeza e civilidade.
Interpretação humanística e dialética da lei
O preconceito é adversário da compreensão efetiva das coisas. Quando li que o texto “É preciso inventar a interpretação humanística e a dialética da lei” havia sido o discurso de posse de Veiga Braga como desembargador, no Tribunal de Justiça de Goiás, admito que pensei: “Deve ser um texto chato e pomposo”. Comecei a leitura com certo desinteresse. Porém, o autor foi me surpreendendo aos poucos.
Primeiro, o texto tem um caráter poético. Segundo, é de um refinamento ímpar. Porém, o mais importante é que, colocado como primeiro ensaio, é uma explicação do ideário do livro e, por isso, de toda a obra. “À Justiça cabe a tarefa da utopia”, assinala.
Antes de ser desembargador, Veiga Braga foi promotor-procurador de justiça. “Minha experiência no Ministério Público me ligou, de modo indissolúvel, ao drama daqueles desprotegidos e carentes de justiça. (…) Posso dizer que aí [como membro do MP] conheci a diversidade do mundo, o clamor dos despossuídos”. O ideário do autor reside aí: trata-se de um iluminista-humanista. Não tem a ver, porém, com o iluminismo que, integrado ao positivismo (a ideia de progresso, na análise de John Gray), levou ao marxismo e suas distorções posteriores, como o leninismo e o stalinismo, que, ao lado do nazismo, são responsáveis pelas maiores tragédias do século 20.
Veiga Braga ressalta “que, para além dos fundamentalismos anacrônicos”, os homens e mulheres devem ser “capazes de construir a convivência entre as diferenças e contribuir para um mundo em que a colaboração e a solidariedade se sobreponham à competição e ao uso da força como forma de hegemonia e convencimento”.
O magistrado, como sugeriu John Donne, não é uma ilha. Por isso, Veiga Braga assinala, com acerto: “As transformações no mundo e na sociedade já não obedecem a ciclos ou cronicidade, explodem, surpreendem, espantam”. Veja-se o caso de, entre outros, Google e Facebook, que invadem a privacidade das pessoas, com seus algoritmos, e as “vendem” para o mercado. Como lidar com isto: com homens e mulheres, ainda que não sejam “escravos”, sendo “comercializados” ao lado de outros produtos? É um mundo novo, a ser revisto tanto pelos críticos quanto pelos criadores e aplicadores de leis.
Veiga Braga menciona as questões ambientais, as demandas de gênero, o tráfico de drogas, o crime organizado, o mercado de seres humanos. Ou seja, o mundo real e suas complexidades às vezes conectadas.
A colaboração (delação) premiada é uma ideia extraordinária? Pode ser, se tratada como caso específico, e pode não ser, se tratada de modo geral. O ensaio “Delator e ética” (que tem sequência) mostra a percuciência do analista. A Lei nº 12.850/2013, no art. 3 (de sua ementa), inciso I, prevê a colaboração premiada.
O colaborador, aquele que trai antigos “aliados” para obter benefícios, passa a ser visto com bons olhos, inclusive pela imprensa, que passa a deixar de lado que ele também era membro de uma, por assim dizer, possível quadrilha. Há o fato objetivo que o desbaratamento de determinadas quadrilhas — verdadeiras máfias — só pode feito, de maneira ampla, com a “conquista” de aliados, ou seja, com denúncias a partir de dentro. Na Itália, a Máfia, ou máfias, tem sido cercada pela polícia e pela Justiça com o apoio daqueles que abdicam dos tentáculos poderosos da Omertà. Porém, em nome de pegar o “maior”, o quadro completo e complexo da corrupção, pode-se cometer injustiças. Na terra de Dante, Leopardi e Lampedusa (no romance “O Leopardo”, o príncipe Tancredi diz para o tio Don Fabrizio: “Se nós não estivermos presentes, eles aprovam a República. Se queremos que tudo continue como está, é preciso que tudo mude. Fui claro?”), dada a Operação Mãos Limpas, liquidou-se uma geração de políticos — os maus, os mais ou menos e até alguns bons — e se produziu Silvio Berlusconi. No Brasil, direta ou indiretamente, a Operação Lava Jato “gestou” o presidente Jair Bolsonaro — o político que, nos últimos 37 anos, mais confronta o Poder Judiciário (que tem sido impecável na defesa da democracia).
Vale transcrever um trecho do artigo: “Não obstante o propósito que instituiu a lei, desbaratar organização criminosa e punir os seus integrantes, um ingrediente que não se afere e deixa a plateia embasbacada é da ética do colaborador, porquanto na delação não se pesquisa o motivo que levou o agente criminoso, que se beneficiou da malta, a prestar a colaboração, quando se apura, no mais das vezes, que está impulsionado pelo receio de ser preso, premido por essa possibilidade”.
Veiga Braga continua: “A delação surge para o integrante da organização criminosa como tábua de salvação, sem que ele demonstre qualquer traço de sensibilidade ética pelas malfeitorias, nenhuma preocupação com a sociedade”. Veja-se um caso não citado pelo ensaísta: o doleiro Alberto Youssef delinquiu uma vez (ou mais), fez delação premiada — ou seja, explicitando que não continuaria no sendeiro criminoso. Porém, algum tempo depois, já se envolvera em outro crime, e noutra colaboração premiada.
Arremate do ensaio de Veiga Braga: “Contemplamos a colaboração sem ética”.
No ensaio “Meu reino por um cavalo”, com introito aprazível (que não menciono, deixo-o para o leitor do livro), Veiga Braga disse coisas que são úteis a todos nós, sobretudo aos promotores de justiça e jornalistas: as pessoas são denunciadas e, mesmo sem culpa comprovada, às vezes são “condenadas” (na questão da imagem pública). Algumas denúncias e reportagens destroem as vidas e os negócios de alguns indivíduos. Mais tarde, com as denúncias apuradas, com o contraditório apresentado de maneira ampla, pode-se, eventualmente, concluir que o “culpado” (suspeitos são apontados como culpados, acusados; na verdade, são “condenados” por antecipação) “era” (é) “inocente”. Mas já está crucificado pela sociedade, com a imagem, como se diz, queimada, e de maneira irremediável.
“A divulgação [das denúncias, às vezes de “fatos selecionados”] deveria ser antecedida de regular procedimento investigatório, a oitiva das pessoas e a adoção das providências comportáveis, sem a inversão da lógica de se punir, com a divulgação da informação, propalando-a, antes mesmo da instauração do instrumento persecutório, sem saber, ainda que de modo precário, da efetividade da conduta midiaticamente imputada”, pontua Veiga Braga. O ensaísta cita Mark Twain: “Primeiro, informe-se dos fatos; depois, pode distorcê-los quanto quiser”.
No ensaio “Plea bargain”, quase no fim do livro, Veiga Braga retoma a questão da colaboração premiada.
Em “Não matem as açucenas”, Veiga Braga comenta o massacre de Suzano, em São Paulo. Numa escola, dois jovens (um de 17 anos) mataram várias pessoas. Depois, um deles matou o companheiro e se matou. O crime teria sido cometido a partir do envolvimento dos garotos com uma plataforma da Deep Web, a Dogolachan. Há intensa discussão de fake news, sobretudo por causa do período eleitoral, mas há também o submundo da internet, em geral “frequentado” por jovens, muitos deles menores de idade. Por isso vale o alerta do ensaísta: “… chama a atenção a necessidade de buscas mais seletivas, de acesso a temáticas de influência positiva na formação intelectual do usuário, banindo sítios peçonhentos, que podem contaminar a personalidade de pessoas vulneráveis”. O ensaísta arrola o escritor francês Victor Hugo como “testemunha”: “Os tempos primitivos são líricos, os tempos antigos são épicos, os tempos modernos são dramáticos”. O historiador Niall Ferguson, professor de Harvard, postula que a internet, como vem funcionando, sobretudo nas redes sociais, conspira contra a democracia e a civilização.
Violência e mulheres: pecado contra o amor
No belo (e doloroso) ensaio “Eu te amo”, Veiga Braga começa citando o amor via Camões: “É querer estar preso por vontade. É servir a quem vence, o vencedor. É ter com quem nos mata, lealdade”. O bardo luso, frisa o ensaísta, revela “a contradição” da “aptidão de comover”. “De cada dez homicídios passionais, sete são protagonizados por homens”. Matam as companheiras, mulheres ou namoradas, supostamente “em nome de um ‘ciúme romântico’. Essa concepção” permite “ao homem a regência da vida da mulher, até mesmo a sua morte”.
A Lei Maria da Penha — Lei nº 11.340/06 — “merece ser comemorada, porquanto, se bem aplicada, produz resultados positivos no cenário do combate dos crimes de gênero”. Veiga Braga arremata o artigo: “A violência contra a mulher é um pecado contra o amor”.
Damião Soares dos Santos matou várias pessoas em Janaúba, Minas Gerais, em 2017. Jogou produto inflamável em crianças, numa professora e nele mesmo.
Veiga Braga nota que Damião dos Santos “apresentava distúrbios mentais desde 2014”. Encaminhado para o Centro de Atenção Psicossocial (Caps), se recusou a ser tratado, “permanecendo no serviço público, mantendo contato com as crianças”.
Pode se falar em negligência geral, considerando-se que Damião era “obcecado por crianças”, e muitos (senão todos) sabiam disso? Escreve Veiga Braga: “O comportamento do vigia merecia a atenção dos administradores públicos, posto que demonstrava distúrbios mentais, com delírio persecutório, vivendo em casa insalubre, ‘obcecado por crianças’, circunstância que reclamavam a adoção de medidas. (…) A solução que estava à mão era o afastamento do servidor e o encaminhamento para o atendimento adequado, distanciando-o das crianças que, por elas ‘obcecado’, se tornariam o alvo do gesto insano”.
“Olha a faca” é um ensaio curto, e parece não tão importante quanto os demais. Mas vale registro, o que mostra sua relevância: a Lei nº 13.654, de 2018, alterou o Código Penal Brasileiro. Malfeitores que usarem revólveres, fuzis, metralhadoras, entre outras armas de fogo, são considerados mais “perigosos” e, por isso, suas penas são maiores, dependendo do crime que cometeram (assalto, latrocínio). Confira a análise de Veiga Braga: “A partir de agora, o criminoso que intimidar a vítima empregando faca, canivete, estilete, navalha e outros tantos objetos que possuem potencialidade ofensiva, podendo causar a morte, servindo de persuasão para possibilitar o delito de roubo, não mais terá a sua pena agravada”, o que beneficia “os malfeitores”. “Essa modificação tem como efeito imediato menor pena para os autores do crime de roubo. (…) o edito estimula a execução do crime de roubo”. Montesquieu, mencionado com propriedade, anotou: “As leis inúteis debilitam as necessárias”.
Ao final de um ensaio, Veiga Braga cita Jô Soares: “A corrupção não é uma invenção brasileira, mas a impunidade é uma coisa nossa”. Uma frase perfeita, mas a impunidade talvez seja um fenômeno global (veja-se o caso da Rússia de Vladimir Putin, que parece ser, a um só tempo, o chefe do Executivo, do Legislativo e do Judiciário). Mas, de fato, a impunidade é forte no Brasil. Tanto que se assiste, no momento, o desmoronamento da Operação Lava Jato e o “coroamento” de algumas de suas supostas vítimas (depois de terem devolvido parte do dinheiro da corrupção, assumindo a própria culpa, arvoram-se em vítimas do Ministério Público Federal e da Justiça).
Comentei alguns ensaios, mas há vários outros excelentes, e até mais complexos, como “Crime de estupro. Mulher como sujeito ativo. Gravidez. Aborto” e “Sobre deuses e homens” (no caso arrola-se a advertência do poeta e escritor espanhol: “Causam menos danos cem delinquentes do que um mau juiz”).
Poucas vezes vi um magistrado se posicionar, em relação às coisas de seu tempo, de maneira tão candente e solidamente responsável. Pois Veiga Braga se posiciona, de maneira crítica e elegante.
Lançamento do livro será no TRE, na Praça Cívica
“Sobre Deuses e Homens”, de Luiz Cláudio Veiga Braga, será lançado na sexta-feira, 19, às 16 horas, no Tribunal Regional Eleitoral, na Praça Cívica, nº 300.