“Foi um golpe terrível que Eileen não tenha vivido para ver publicado ‘A Revolução dos Bichos’, livro do qual ela gostava especialmente e que inclusive me ajudou a planejar. Suponho que saiba que eu estava na França quando ela morreu. Foi muito cruel e muito absurdo. (…) A morte de Eileen me deixou deprimido, tanto que não posso me concentrar em nada no momento.” — Trechos de cartas, juntados, de George Orwell para Dorothy Plowman e Dwight MacDonald. (Do livro “Orwell”, de Michael Shelden. Página 393)

A jornalista e escritora australiana Anna Funder, de 57 anos, decidiu investigar a vida de Eileen Maud O’Shaughnessy — primeira mulher de George Orwell, autor de “1984” (Companhia das Letras, 416 páginas, tradução de Heloisa Jahn e Alexandre Hubner) e “A Revolução dos Bichos” (Companhia das Letras, 152 páginas, tradução de Heitor Aquino Ferreira). No livro “Wifedom — Mrs. Orwell Invisible Life” (Penguin, 464 páginas), a pesquisadora informa que Eileen Blair era uma filóloga formada em St. Hugh’s, uma faculdade de Oxford. Richard Bradford, em “Orwell — Um Homem do Nosso Tempo” (Tordesilhas, 356 páginas, tradução de Renato Marques de Oliveira), informa que estudou literatura inglesa.

De acordo com Anna Funder, Eileen não era apenas a mulher de Orwell. Era uma “intelectual brilhante”. Meu texto usa como base uma resenha de Daniel Arjona, do jornal espanhol “El Mundo”, e quatro biografias do escritor.

Eileen Blair: filóloga teria contribuído para a formatação de textos de Orwell | Foto: Reprodução

Afinal, cadê a “invisível” Eileen Blair? Anna Funder assinala que, apesar de ter vivido pouco, a filóloga e professora tem uma vida que merece ser contada. Era uma participante ativa de seu tempo.

“El Mundo”, baseado na biografia, relata: Eileen “trabalhou pelos dois, suportou seu  [de Orwell] turismo revolucionário na Guerra Civil Espanhola (1936-1939), salvou seus manuscritos quando tiveram de fugir dos esbirros catalães de Stálin, datilografou e reescreveu grande parte de seus ensaios, inspirou seu romance mais conhecido, aturou suas infidelidades e morreu em 1945, aos 39 anos. Mesmo assim, aquela mulher talentosa e brilhante apenas assoma de passagem um par de vezes nas biografias sobre Orwell, e seu próprio marido nunca a chama por seu nome nas escassas ocasiões em que se refere a ela”.

De fato, as biografias consultadas por mim não destacam (exceto uma) que Eileen foi tão decisiva para a confecção de algumas obras de Orwell. Mas nenhuma delas deprecia Eileen. Consultei “Orwell — Biografía Autorizada” (Emecê, 516 páginas, tradução de César Aira), de Michael Shelden; “Orwell — La Conciencia de Una Generación” (Vergara, 443 páginas, tradução de Maria Dulcinea Otero), de Jeffrey Meyers; “Orwell — Um Homem do Nosso Tempo”, de Richard Bradford, e “George Orwell — Biografia Intelectual de um Guerrilheiro Indesejado” (Edições 70, 439 páginas), de Jacinta Maria Matos.

George Orwell e Eileen Blair: um casal intelectual | Foto: Reprodução

Jeffrey Meyers assinala que Eileen “era sofisticada, exigente e muito inteligente” (página 153). O biógrafo afirma que “tinha profundas afinidades com” Orwell e “compartilhava seu idealismo”. Os dois se casaram em junho de 1936.

Michael Shelden diz que Eileen “era uma pessoa excepcional” (página 220). O biógrafo escreve extensamente sobre a mulher de Orwell e registra a profundidade de seus interesses intelectuais.

Jacinta Matos anota: “O solteirão de 33 anos — prematuramente envelhecido — encontrou uma mulher unanimemente considerada pelos que a conheceram como uma figura interessante por direito próprio”. Na Universidade de Oxford concluiu a licenciatura em Inglês com boas notas, fez um curso de assistente social e frequentou um mestrado em Psicologia na Universidade de Londres. Revisou textos do irmão, um especialista em doenças pulmonares. O médico era famoso.

Biografia de doutora portuguesa reconhece a importância de Eileen Blair para a obra de Orwell

Citado por Jacinta Matos, Cyrill Connolly escreveu sobre Eileen: “Encantadora […] inteligente […] e estava apaixonada por ele, e era independente, em embora não usasse maquilhagem de espécie nenhuma, era muito bonita, e bem merecedora do marido, que tinha muito orgulho nela” (está assim, e não “dela”, como nós, brasileiros, escreveríamos). A biógrafa valoriza o que declara o escritor, sem deixar de registrar que se trata de uma visão “condescendente”.

Eileen, afirma Jacinta Matos, “partilhava com Orwell do interesse pela literatura, pela política (era socialista por inclinação, mas nunca se filiou em qualquer partido) e pelas questões de índole social”.

“Em comum com ele” [Orwell], Eileen “possuía também um grande sentido de humor e (felizmente para ela) o mesmo desinteresse pelo conforto material e os pequenos luxos do quotidiano que caracterizava o futuro marido, bem conhecido pelos seus hábitos frugais. Perfeitamente apta a discutir a sua escrita, capaz de fazer sugestões e críticas certeiras, Eileen sempre apoiou Orwell nas causas literárias e ideológicas em que este se envolveu, aceitando de bom grado, e, tanto quanto se sabe, por convicção própria as difíceis opções pessoais que estas muitas vezes comportavam”.  

Eileen Blair com o filho Richard Blair

“A Revolução dos Bichos” era o livro preferido de Orwell. “Ao contrário dos demais, compostos ciosa e solitariamente, ‘A Quinta dos Animais’ [título com o qual a novela foi publicada em Portugal] foi discutido quotidianamente com Eileen, igualmente entusiasmada com o desenrolar da história, para a qual contribuiu com inúmeras sugestões”, anota Jacinta Matos.

Quando Eileen e Orwell adotaram o bebê Richard Horatio Blair, o escritor, informa Jacinta Matos, “parece ter levado muito a sério o papel de pai, ajudando a mudar fraldas, a dar banho ao bebê, levantando-se durante a noite para o embalar e, a julgar pelas fotografias da época, em que surge várias vezes empurrando orgulhosamente o carrinho de bebê, levando-o a passear pelas ruas de Londres sempre que tinha oportunidade”. Não era muito comum na época.

George Orwell com o filho adotado, Richard Horatio Blair | Foto: Reprodução

Internada, para extração de um tumor, Eileen morre logo “depois de lhe ter sido administrada a anestesia”. Orwell estava em Paris, a trabalho — encontrou-se com Hemingway (beberam uísque) e P. G. Wodehouse. “Nos dias de hoje, afigura-se-nos como algo irresponsável que Orwell se tivesse ausentado para o estrangeiro num momento em que deveria dar apoio a Eileen e custa a acreditar que não tivesse consciência da gravidade da situação médica da mulher”, critica Jacinta Matos. Nas cartas aos amigos, Orwell não fala “dos seus sentimentos ou” passa “a ideia de que estava inconsolável”. Mas a biógrafa ressalva: Orwell reagiu “segundo a educação que lhe tinha sido inculcada”.

Das quatro biografias citadas — é provável que Anna Funder não a tenha consultado (a autora é portuguesa, professora da Universidade de Coimbra) —, a de Jacinta Matos é a que mais nota a importância de Eileen, como tendo cavado um espaço na sociedade e ajudado Orwell a escrever e, também, a cuidar de si.

Anna Funder: biógrafa recupera ou restaura a história de Eileen Blair | Foto: Reprodução

Retomo a resenha de “El Mundo”. O livro de Anna Funder tem o objetivo de colocar Eileen no centro do palco, acabando com seu “apagamento”. Daniel Arjona diz que a obra é “um misto de ensaio, biografia e ficção” e que, com sua crítica corrosiva, está balançado os estudos sobre o escritor britânico.

Anna Funder sustenta, de acordo com “El Mundo”, que Eileen influenciou o romance “1984”  — o mais famoso de Orwell, embora não o melhor, segundo Jacinta Matos, que prefere “Um Pouco de Ar, Por Favor” (Principis, 256 páginas, tradução de Pete Rissatti).

Daniel Arjona sublinha que “1984” sofreu ampla influência do romance distópico “Nós” (Editora 34, 288 páginas, tradução de Francisco de Araújo), do russo Ievguêni Zamiátin. Entretanto, baseado no estudo de Anna Funder, acrescenta: “Em 1934, dois anos antes de casar-se com Orwell e quinze antes de ‘1984’ [livro de 1949], Eileen O’Shaughnessy publicou, na revista ‘Sunderland High School’, o poema ‘End of the Century, 1984’”.

Eileen estava preocupada com as notícias que recebia sobre os regimes totalitários da Itália, da Alemanha e da União Soviética. Com os versos, “a jovem filóloga e otimista irredenta imagina uma época de esperança em que o mundo descartaria tais sistemas ominosos e violentos”.

Eileen Blair e George Orwell: ambos apreciavam uma vida simples | Foto: Reprodução

Quando Orwell decidiu viver numa espécie de cabana, plantando verduras, criando galinhas e cuidando de cabras, Eileen o acompanhou. Na residência não havia nem eletricidade nem água tratada. O escritor chegou a abrir uma lojinha para vender os produtos de sua “chacarazinha”.

O escritor e sinólogo Simon Leys contou que Eileen, a jovem esposa, “maravilhosamente orwelliana, o manteve de pé com heroísmo e excêntrico sentido de humor”. Ela era solidária — muito mais do que Orwell.

Como informaram os biógrafos (acima), Eileen era formada em Inglês por Oxford, uma universidade de primeira linha. Ela tinha uma formação intelectual sólida, tudo indica. Anna Funder narra no livro, citada por “El Mundo”, que ela “exigiu que se eliminasse a palavra ‘obedecer’ de seus votos matrimoniais e foi uma ativa sindicalista em seu trabalho. Foi a primeira leitora, datilógrafa, reescritora, editora e educadora política de seu marido. Eileen foi especialmente importante no estabelecimento de ‘Rebelião en la Granja’ [“A Revolução dos Bichos”] e ‘1984’. Se ocupou 100% do trabalho doméstico e manteve Orwell enquanto o escritor e jornalista combatia na Espanha”.

“Nós”, Zamiátin, e “1984”, de Orwell: críticas ao totalitarismo | Fotos: Divulgação

Por trabalhar no Ministério da Informação, durante a Segunda Guerra Mundial, Eileen levava para Orwell “numerosas e inspiradoras histórias que haviam sido censuradas”. Mesmo tendo sido uma colaboradora, o que permitiu que seu o marido se dedicasse à sua produção literária e jornalística, ele a relegou “a um segundo plano em seus escritos”.

Num ensaio sobre Charles Dickens, Orwell observa que o escritor britânico maltratava sua mulher, Catherine Hogart. O crítico fez questão de separar o homem de sua obra.

Anna Funder ressalta que Orwell, além de não valorizar o papel de sua parceira, como colaboradora, para que pudesse escrever uma obra importante, ainda lhe era frequentemente infiel. Biógrafos sugerem que as infidelidades eram consensuais. Jacinta Matos indica que, se o escritor era o mais infiel, Eileen também o traía, eventualmente.

O livro de Anna Funder saiu na Austrália, este mês, e chegará às livrarias da Inglaterra e dos Estados Unidos em setembro.

Susan Bryndan resenhou o livro para “The Guardian”. A crítica diz que Anna Funder examina Orwell por um novo viés — mais crítico do que os analistas anteriores (o escritor é mais ou menos um semideus, apreciadíssimo, inclusive como indivíduo, por seu caráter ético, e não apenas como escritor)

A exposição de Anna Funder, postula Susan Bryndan, é brilhante e imaginativa. “Só lamenta, como também o faz ‘The Sidney Morning Herald’, a intromissão das partes de ficção do livro, certa descontextualização histórica que transfere ao passado as exigências morais do nosso presente e talvez se crê demasiado em sua protagonista, a inolvidável Eileen Blair”.

O resenhista de “El Mundo” discorda da afirmação de Anna Funder de que Orwell era um “predador” sexual. “Os biógrafos e antologistas como Harvill Secker e Peter Davidson mostraram a tortuosa relação do escritor com as mulheres. Todas gostavam do autor de ‘Homenagem à Catalunha — A Luta Antifascista na Guerra Civil Espanhola’ (Companhia das Letras, 312 páginas, tradução de Claudio Alves Marcondes), mas ele — feio, pobre e tuberculoso — não gostava de nenhuma. Seus relacionamentos com o sexo oposto foram ‘desajeitados’.” Talvez Orwell amasse apenas a si próprio.

Em 1950, três meses antes de morrer, tuberculoso, Orwell se casou com Sonia Browner, que lhe serviu de modelo para a personagem Júlia de “1984”. Sonia Orwell se tornou “a principal divulgadora da obra do escritor depois de sua morte”.

Nenhuma editora brasileira revelou, até agora, a intenção de publicar o livro de Anna Funder.

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