Lígia Diniz faz crítica de romance de Itamar Vieira, que reage mal e leva puxão de orelha de Agualusa

11 junho 2023 às 00h00

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Os poemas, meu caro Degas, não são feitos com ideias, mas com palavras. — Mallarmé
Itamar Vieira Junior é autor de um romance consagrado pelos leitores e pela “crítica”. Trata-se de “Torto Arado” (Todavia, 264 páginas). Recentemente, publicou o seu segundo romance, “Salvar o Fogo” (Todavia, 320 páginas). Os dois livros se tornaram best-sellers.
Se “Torto Arado” se tornou uma unanimidade, uma espécie de “romance da moda” (quem não leu mora em Marte) — e não se está depreciando o livro ao se dizer isto —, o mesmo não se pode dizer de “Salvar o Fogo”, que, de imediato, recebeu uma crítica tão dura quanto sólida de Lígia G. Diniz, doutora em literatura e professora da Universidade Federal de Minas Gerais.

A crítica de Lígia Diniz saiu na revista “451” — sempre generosa com Itamar Vieira e sua literatura. Tem quase 15 mil caracteres, o que significa, nos tempos atuais, que se trata de um texto longo.
Logo no primeiro parágrafo, Lígia Diniz admite que, como Itamar Vieira se tornou uma espécie de “ícone” — é idolatrado por grupos de leitura e milhares de leitores isolados —, “a resenhista” pode se meter “numa enrascada”. E ela tem razão: Itamar Vieira não apreciou sua análise. Abominou-a (leia adiante).
Dado o parentesco com “Torto Arado” — são irmãos siameses, quem sabe —, há “muitos elementos previsíveis” em “Salvar o Fogo”, de acordo com Lígia Diniz. Mas a crítica ressalva que há “retomadas bem-vindas”.
“Vieira Junior mais uma vez fala de um Brasil de cuja existência o Brasil que se entende moderno pouco suspeita ou quer se esquecer. Traz também personagens femininas fortes (embora o tratamento fatalista do desejo sexual feminino incomode), que ele se empenha em construir, nem sempre com sucesso, de forma a nos fazer vivenciar suas desventuras de forma íntima, e não como espectadores de um documentário”.

A, digamos, pauta da ficção de Itamar Vieira é “a vida de descendentes de africanos e indígenas em regiões rurais no interior do Nordeste brasileiro. Ele merece pontos por trazer ao protagonismo literário quem até há pouco não tinha voz”, assinala Lígia Diniz. Entretanto, a crítica ressalva: “Resta saber se esse mérito é suficiente para configurar boa literatura. Não é. Engajada ou não, a ficção precisa confiar na imaginação do leitor, e ‘Salvar o Fogo’ não quer correr riscos”.
Adiante, Lígia Diniz sublinha que “a narrativa se constrói no eficiente, porém pouco criativo, descortinamento” de um mistério, que tem a ver com “uma maldição envolvendo o fogo, que paira sobre a casa da família” das personagens. O desenrolar da história “é só o meio para o romance denunciar, com mão pesada, os muitos e muitos abusos cometidos ou encorajados por aqueles que detêm o poder na região” (trata-se do povoado de Tapera do Paraguaçu).
Itamar Vieira explicita um povo “a que o Estado não ampara e a Igreja depaupera”. Há também o “conflito racial interno às famílias”. Alzira, mãe de Luiza e outros, tem esperança de que” os filhos “gerem crianças de peles mais claras e futuros mais promissores”.

Lígia Diniz frisa que “a questão poderia ser produtiva, mas incomoda o pouco complexo tratamento dessa mãe mestiça que ‘sonhava liberar os netos e os bisnetos’. Há algumas décadas, a teórica antirracista bell hooks já nos alertava enfaticamente para os riscos do fascínio dos intelectuais pelo ‘auto-ódio’ dos negros. Mesmo à revelia de suas intenções, dada a pouca profundidade na relação entre os afro-indígenas e seus antagonistas brancos, ‘Salvar o Fogo’ acaba reproduzindo esse fascínio”.
O problema de “Salvar o Fogo”, de acordo com Lígia Diniz, está na “abordagem maniqueísta das relações sociais e raciais”. Itamar Vieira indica que, “por uma questão de justiça histórica, os negros e indígenas estarão do lado certo e a elite branca estará do lado não apenas errado, mas diabólico”.
A ficção de Itamar Vieira, em “Salvar o Fogo”, não lida bem com os referentes sócio-históricos. “São muitos os personagens rasos, como o hediondo abade Tomás, que, em vez de suscitarem uma reflexão a respeito da dinâmica do racismo e do domínio eurocêntrico, levam a uma interpretação do processo colonial e de suas consequências como uma mera empreitada de homens doentiamente maus. É aquela velha questão: caso nossa história criminosa houvesse sido fruto da ação de monstros, seria mais fácil emergir dela. Infelizmente, ela é feita de seres humanos”, postula Lígia Diniz.

Triunfo da narrativa didática e moralizante
O romance, segundo a crítica literária, seria uma revanche reducionista.
Há virtude em “Salvar o Fogo”. A questão do racismo internalizado e a recuperação da ancestralidade funcionam melhor no caso de Luiza. “Manaíba”, terceira parte do romance, é, assegura Lígia Diniz, a “melhor”. “Narrado em terceira pessoa, (…) deixa Vieira Junior mais confortável. Essa voz, liberta da necessidade de mimetizar os pensamentos das personagens, traz mais convincentemente a experiência delas à nossa imaginação. É bem construída a cena em que a solidariedade entre Luzia e Mariinha se torna concreta em ato de resistência tão potente quando inútil contra aqueles que lhes tomam o pouco que têm”. (Talvez Itamar Vieira tenha concluído que a crítica esteja insinuando que, dado seu discurso ideológico, não sabe escrever, o que, evidentemente, Lígia Diniz não diz, em nenhum momento. O que sugere, se estou certo, é que a ideologia pode estar atrapalhando um escritor que, quando usa uma voz narrativa mais, digamos, aberta, mostra que é senhor de seu metier. Vale a pena ler o que diz Harold Bloom, ao comentar “A Canção de Solomon”, o poderoso romance de Toni Morrison: “Ler a serviço de qualquer ideologia não é ler”.)
Porém, em seguida, Lígia Diniz decepciona-se, por assim dizer: “Momentos como esse infelizmente se perdem no esforço do romance de esmiuçar seus pontos e suas imagens. Vieira Júnior tinha em mãos uma saga familiar interessante e uma boa e irresolúvel questão: como se permitir viver a dor individual em meio a tanta dor coletiva. Ma o autor parece não acreditar no poder da ficção e da imaginação, e quer garantir que os leitores recebam seus recados. Nenhum detalhe é lançado apenas para que o leitor capture sozinho a deixa; nenhum gesto de opressão passa sem ser destrinchado. (Fica-se com a impressão de que Itamar Vieira encontrou sua história, mas não a forma precisa de narrá-la, imprensado, quiçá, pela ideologia. A crítica não diz isto, mas estaria o prosador baiano, um bom escritor, impregnado pelo realismo socialista do qual Graciliano Ramos, embora comunista de carteirinha, conseguiu escapar? Seria um Jorge Amado, o dos primórdios, mais refinado pela sólida formação acadêmica?)

Para “trazer à ficção a realidade de uma população à margem da modernidade ocidental”, Itamar Vieira recorre, nas palavras de Lígia Diniz, “a expedientes gastos da literatura mais convencional: mistérios revelados pouco a pouco, alternância entre vozes narrativas que se esclarecem mutuamente e uma insistência na produção imediata de sentido. (…) é de pensar por que não investir em procedimentos formais menos familiares ao leitor de modo a redobrar a sensação de estarmos diante de algo a que até então não havíamos prestado atenção”.
Lígia Diniz acentua que o sucesso da literatura de Itamar Vieira “aponta o status enfraquecido da ficção imaginativa e o triunfo da narrativa didática e moralizante, que se esquiva da complexidade humana e finca pé na prescrição de como o mundo deve ser encarado”.
A elite ilustrada do país “celebra”, sustenta Lígia Diniz, “narrativas maniqueístas (e, ironicamente, muito cristãs) em que miséria é sinônimo de virtude, e a desigualdade brasileira se explica pelas ações de monstros muito, muito malvados”.
A crítica de Lígia Diniz é cuidadosa no enfrentamento do romance. Aponta esquematismos e virtudes. Ao ser incisiva, direta e franca, pode colaborar para que o próximo romance de Itamar Vieira não seja esquemático. A literatura que é produto do didatismo engajado busca mais discípulos — e até militantes de uma causa — do que leitores de mente arejada e que queiram correr riscos (e não saber mais do mesmo para repetir como slogan ou bordão e se exibir para os amigos com membros de um clã cult, o dos itamaristas ou torto-aradistas).

Apesar de ter apontado “falhas”, Lígia Diniz parece perceber um escritor que, firmando sua voz narrativa, para além do discurso militante, poderá se consagrar… como escritor, e não como “autoridade ideológica”.
A ira de Itamar Vieira: faltou autocrítica
Se Lígia Diniz fez uma leitura cuidadosa de “Salvar o Fogo”, Itamar Vieira publicou uma resposta irada à crítica. Longe de admitir que, finalmente, ganhou uma leitura crítica (e atenta) de sua obra — portanto, mais colaborativa —, o escritor partiu para a briga.
Num artigo sobre atos racistas contra o jogador Vini Jr., do Real Madri, da Espanha, publicado na “Folha de S. Paulo”, no final de maio, Itamar Vieira é incisivo: “O pacto da branquitude é implacável. Mesmo quando você não nota, ele se faz presente. O editor branco escolhe a crítica branca para resenhar um romance atravessado pela raça e pelo colorismo. Eles precisam nos lembrar que na literatura brasileira não há espaço para nós, então o pacto é deixar a avaliação entre eles. Um livro conquistar um bom número de leitores — como ocorreu com ‘Quarto de Despejo’ ou ‘Torto Arado’ — ainda vai, mas dois já é demais”.
O que Itamar Vieira parece sugerir é que, dado o tema que aborda, sua literatura não pode ser criticada, suas possíveis insuficiências literárias não podem ser expostas. Seus romances, pelo visto, só merecem elogios. O escritor parece não perceber que, no enfrentamento com uma crítica mais firme e corrosiva, sua literatura pode ficar ainda mais forte. A abertura indicada por Lígia Diniz pode incentivar outros críticos a abordar sua prosa de maneira mais ampla e objetiva.
A revista “451” não faz parte de nenhum “pacto de branquitude”. Pelo contrário, é aberta aos temas que são caros a Itamar Vieira e a mim, que somos pardos (sou bisneto de uma mulher negra, a fiandeira Frutuosa Martins da Cunha). A irritação do escritor — insista-se: um bom escritor — é, ao contrário da análise de Lígia Diniz, acrítica.
Chegará o dia, a aceitarmos a argumentação de Itamar Vieira, que o livro de um preto só poderá ser resenhado por um preto — ou talvez por um pardo — e um livro de um branco só poderá ser resenhado por um branco? Se chegar, a literatura, a grande literatura — aquela que fica, como a de Machado de Assis, Lima Barreto, Graciliano Ramos, Guimarães Rosa, Clarice Lispector, Lygia Fagundes Telles e Ana Maria Gonçalves (autora do magnífico e incontornável “Um Defeito de Cor” — um passo à frente na literatura patropi) —, sairá perdendo. Os grandes leitores, aqueles que vão além das firulas ideológicas, certamente “morrerão”. A prevalência de panfletos literários, às vezes bem-intencionados, pode resultar no soterramento da literatura de qualidade, mais nuançada e aberta à diversidade e complexidade da vida. Quem não compreende bem aquilo que combate, dado o reducionismo ao interpretar o que lhe é adverso, dificilmente fará um combate preciso, funcional, digamos.
Por fim, pode-se dizer que a crítica de Lígia Diniz, cuidadosa, repita-se — e sem uma gota de racismo —, longe de enfraquecer, fortalece Itamar Vieira como escritor. Para além da mera resenha, publicou-se, finalmente, uma crítica ao seu trabalho literário.
Agualusa “puxa” as orelhas de Itamar Vieira
No início de junho, o escritor angolano José Eduardo Agualusa escreveu uma missiva dirigida a Itamar Vieira, com o título de “Carta a um escritor que aprecio” (saiu em “O Globo”).
“A melhor maneira de reagir aos aplausos é agradecendo, com um sorriso — e esquecê-los logo a seguir. Elogios são agradáveis, mas distraem-nos do essencial — a própria escrita —, e não nos ensinam nada. Já as críticas negativas, essas sim, parecem-me muito importantes”, escreve, com extrema correção, José Eduardo Agualusa.
O escritor africano diz que a crítica literária está em declínio, pelo menos “no espaço da língua portuguesa”. Antonio Candido, do Brasil, Eduardo Prado Coelho (eu acrescentaria Eduardo Lourenço), em Portugal, e David Mestre, em Angola, “eram conhecidos e respeitadíssimos. Por um lado, formavam leitores; por outro, ajudavam os escritores a descobrirem a sua própria obra, e a melhorá-la”. No Brasil, ainda temos em atividade Silviano Santiago, Walnice Nogueira Galvão, Davi Arrigucci, mas cada vez menos aparecem em jornais. Predominam as resenhas, em geral acríticas. São mais para divulgar lançamentos.
“Há resenhas negativas excelentes, e outras disparatadas, maldosas e agressivas. E há resenhas positivas excelentes e outras imbecis, condescendentes ou paternalistas. As resenhas positivas disparatadas não ajudam ninguém — só atrapalham. As resenhas negativas disparatadas podem ter pelo menos o mérito de contribuir para que o escritor não se deixe dominar pela vaidade e pela arrogância”, diz José Eduardo Agualusa.
O autor angolano sugere que se repudie “com horror os elogios” e que se agradeça, “com sincera alegria, as críticas negativas — incluindo as idiotas”.
José Eduardo Agualusa frisa que a crítica de Lígia Diniz a “Salvar o Fogo”, o novo romance de Itamar Vieira, “não tem nada de idiota. Acho-a informada, inteligente, honesta e rigorosa — o que não significa que concorde com ela”.
“Atacar um crítico por fazer o seu trabalho prejudica-nos a todos, leitores e escritores, sobretudo numa época em que já temos tão poucas pessoas praticando, com profissionalismo, essa arte em decadência. O teu ataque [de Itamar Vieira] torna-se mais difícil de aceitar a partir do momento em que recorres à autoridade da posição que ocupas hoje, enquanto um dos escritores de maior sucesso de toda a moderna literatura em língua portuguesa — um dos mais amados, mais vendidos, mais protegidos e premiados”, escreve José Eduardo Agualusa.
O escritor angolano não deixa de lado uma questão nevrálgica: “Pior é a acusação de racismo dirigida contra Lígia Diniz. (…) O combate antirracista, e o combate contra a extrema direita em geral, sai prejudicado sempre que alguém na tua posição — relembro: uma posição de grande poder e privilégio — lança acusações deste gênero, absurdas e levianas, para responder a uma opinião discordante. No caso, contra alguém que não tem o teu poder, nem de longe nem de perto”.
Lígia Diniz escreveu uma crítica, de alta qualidade, Itamar Vieira optou pelo defesa-ataque e José Eduardo Agualusa deu-lhe um acertado puxão de orelhas. Quem ganhou com a polêmica? Os leitores — que poderão observar a obra do escritor baiano de maneira nuançada. Todos deveriam ser gratos tanto à expertise quanto à coragem desta jovem mulher. O autor de “Torto Arado”, como notou o escritor angolano, pertence a um tipo de establishment. Não está à margem. Pelo contrário, é paparicado inclusive pelas elites que condena. Parte delas (inclusive banqueiros), por sinal, está instalada na “Quatro Cinco Um”, ótima revista de cultura.
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