Leitor brasileiro e português tem à disposição duas traduções do romance em versos de Púchkin
25 novembro 2017 às 09h58
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Livro foi traduzido direto do russo por Dário Moreira (a brasileira) e Filipe Guerra e Nina Guerra (a portuguesa)
Aleksandr Púchkin (1799-1837) é o escritor russo ao qual os demais prosadores e poetas do país rendem homenagem. É o pai-fundador da moderna literatura russa. Espécie de Adão — Eva é a poesia. Seu moderníssimo romance em versos “Eugênio Oneguin” (Record, 286 páginas) ganhou tradução direta do russo feita por Dário Moreira de Castro Alves, em 2010. Com o título de “Eugénio Onégin” (Relógio d’Água, 232 páginas), Portugal ganhou uma tradução — empreendimento dos experts Filipe Guerra e Nina Guerra — em 2016. Também direta do russo.
No site da Editora Relógio d’Água há trechos da tradução. Na introdução da edição brasileira, Dário Moreira escreve: “O romance trata da vida russa em um dos mais interessantes momento de seu desenvolvimento e mostra o enredo da vida de três personagens de elevada categoria intelectual — Oneguin, Tatiana e Lenski — que na altura representavam a flor da nação russa”.
“O dramático desencontro e o desencanto nas vidas de Eugênio e Tatiana simbolizavam a impossibilidade de felicidade na Rússia, à época, para pessoas de pensamento elevado e a sua possível transformação em pessoas inúteis”, assinala Dário Moreira. Na introdução, o tradutor frisa que “um soneto do inconfidente Tomás Antônio Gonzaga, surgido em Paris em 1826-27, num órgão literário francês, foi traduzido por Púchkin para o russo”.
Tradução de um trecho do poema (por Dário Moreira)
VII
Se a uma mulher menos amamos,
Mais nos dará de seus amores,
E assim por certo a enredamos,
Entre os ardis mais sedutores.
Há tempo, o frio despudor
Já foi a arte do amor,
De si está sempre a se gabar,
Que se deleita, sem amar.
Pois tão notável passatempo
Digno é de velhos garanhões,
De eras louvadas nos serões;
Dos Lovelaces foi-se o tempo
Junto também com os rubros saltos
E como os antigos chinós altos.
(Nota do tradutor: “Lovelace — Personagem da obra ‘Clarice Harlowe’, do escritor inglês Samuel Richardson (1689-1761), um dos precursores da chamada novela ou romance que surgiu na Europa, em fins do século 17 e, no século 18, na Inglaterra”.
Tradução do trecho inicial do poema (por Dário Moreira)
I
“Meu tio, honesto e mui honrado,
Já quando a sério adoeceu,
Soube exigir ser respeitado,
De melhor nada concebeu.
Para os demais é uma lição;
Porém, meu Deus, quanta aflição
Do dia à noite alguém tratá-lo,
Sem espairecer e sem largá-lo!
Já vede, pois, perfidamente —
Um meio-vivo a distrair,
Pôr-lhe almofadas e sorrir,
Dar-lhe remédios, tristemente,
Mas lá por dentro a imaginar,
Quando Satã te vai levar?”
Trechos da tradução de Filipe Guerra e Nina Guerra
Tem pressa de viver, tem pressa de sentir. Princ. Viázemski
I
“Meu tio, homem honrado e direito,
quando caiu seriamente enfermo,
exigiu para com ele o respeito
— uma óptima ideia, há que dizê‑lo.
O seu exemplo é ciência de vida,
mas, Deus meu, que maçada imerecida
ficar noite e dia junto ao doente
sem arredar o pé por um instante!
E que perfídia ignóbil, que tormento
amimar o meio morto, diverti‑lo,
ajeitar‑lhe almofadas, isto e aquilo,
dar‑lhe com tristeza o medicamento,
suspirar e desejar com enfado:
quando te leva daqui o diabo”
II
Assim pensava estouvadamente
o moço no carro envolto em poeira,
e pela graça de Zeus omnipotente
de todos os parentes o herdeiro.
Amigos de Russlan e Liudmila!
Apresento-vos já sem mais aquela
nem perda de tempo, de relance,
o preclaro herói do meu romance:
Eugénio Onéguin, meu bom amigo,
dado ao mundo nas margens do Nevá,
onde igualmente o meu leitor quiçá
tenha nascido, brilhado, e onde vos digo
que também outrora me passeei.
O norte a mim, contudo, não cai bem¹.
III
Seu pai, perfeito e nobre no serviço,
afogado em dívidas permanentes,
dava três bailes por ano e com isso
foi ao fundo e arruinou‑se finalmente.
Protegia a Onéguin o destino:
tratou dele uma Madame em menino,
depois um Monsieur em seu lugar.
O moço era traquina, mas bom de amar.
Monsieur l’abbé, cómoda personagem,
para não extenuar muito o miúdo,
não via nos estudos dele uma virtude
nem nas moralizações grande vantagem.
Dava só um ralho meigo à traquinada
e ao Jardim de Verão em passeio o levava.
IV
E quando a juventude inquieta chega
e para o meu Onéguin se insinua
o tempo de esperança e terna tristeza,
puseram Monsieur no olho da rua.
E eis o meu Onéguin à rédea solta;
cabelo à ultima moda, a roupa
de figurino como dandy
londrino —
e ele a entrar por fim no meio fino.
Saem‑lhe perfeitas a conversação
e a escrita em língua francesa;
solta‑se‑lhe a mazurca com ligeireza,
e a expedita vénia na perfeição;
que mais querem? Delibera a sociedade:
é um querido, de alta sagacidade.
V
Todos estudámos mais ou menos
alguma coisa e de qualquer jeito,
e entre nós é fácil, convenhamos,
brilhar pela instrução com belo efeito.
Onéguin era, no parecer de muitos
(juízes severos e resolutos),
rapaz erudito mas afectado:
num colóquio despreocupado
tinha o engenho feliz, espalhado a esmo,
de aflorar pela rama todo o assunto,
ou, com ar de conhecedor sisudo,
no alto debate manter o mutismo
e de incitar o sorriso das damas
ao fogo de súbitos epigramas.
VI
A língua latina hoje em dia
passou de moda, muito caducada;
no entanto, verdade seja dita,
o latim de Onéguin chegava
para umas epígrafes traduzir,
sobre o Juvenal discutir,
para apor o vale no fim da carta,
e dois versos da Eneida, que maltrata,
também sabe de cor. Tocante à história,
ao pó cronológico do cronicão
da nossa terra dizia não;
mas guardava bem firmes na memória
as peripécias menores de antigamente,
desde Rómulo até ao presente.
VII
Sem a alta paixão de não poupar
a vida pelos sons, não distinguia
o coreu do jambo, apesar
dos nossos esforços dia após dia.
Maldizia Teócrito, Homero;
mas lia Adam Smith, claro,
versado que era em economia,
ou seja, arengar ele sabia
sobre como um Estado enriquecer,
do que viver e por que circunstância
o ouro não lhe causará carência
se tem o produto simples em seu poder.
O pai não compreendia tais regras
e punha em hipoteca as suas terras.
VIII
Para enumerar tudo o que Eugénio
sabia ainda, não chega o tempo;
no que ele era um verdadeiro génio,
a ciência que regia a contento,
melhor do que toda outra ciência,
desde jovem seu tormento e delícia,
labor de sempre que o libertava
da sua preguiça angustiada —
era a da terna paixão, a enaltecida
por Ovídio, o da vida em tormenta
e em luz que por paixão se ausenta
e em sofrimento finda a vida
na estepe moldova desolada
longe da sua Itália amada.
X
Que cedo aprendeu a hipocrisia,
a calar uma esperança, fingir ciúme,
obrigar a acreditar, dissuadir,
dar‑se o ar de quem sombrio se consome
de tristeza, inventar‑se obediente,
orgulhoso, atento ou indiferente!
No seu silêncio, quanto langor,
na sua eloquência, tanto ardor,
nas suas cartas, que descuido esforçado!
Respirando um só ar, só esse amando,
como sabia ir‑se de si esquecendo!
Que púdicas miradas, ou ousadas,
que fugaz e terno olhar onde em seu dia
uma lágrima obediente luzia!
XI
Em mostrar‑se novo fazia gala,
e a inocência turvava: sabia
com desespero ensaiado assustá-la,
diverti-la com a lisonjaria,
vencer com o coração e a mente
os preconceitos da idade inocente,
agarrar‑lhe o instante de ternura,
o mimo impensado que ele captura
para a rogar, lhe exigir que confesse.
Assim persegue o amor, do coração
colhe finalmente o primeiro som,
e o encontro secreto acontece…
Lá fica a sós com ela e depois
no silêncio escuro dá‑lhe lições!