O foco do pesquisador é o século 18, durante a corrida do ouro e do diamante, que enriqueceu muitos e esmagou milhares de escravos

A literatura de William Faulkner cristalizou a escravidão como “a maldição dos Estados Unidos” (não apenas do Sul). A escravidão no Brasil foi tão cruenta quanto na terra de Abraham Lincoln, mas é provável que nenhum dos escritores patropi a tenha enfrentado como o autor de “Absalão, Absalão!” e “Luz em Agosto” e como Toni Morrison, autora dos romances “A Canção de Solomon” e “Amada”.

Felizmente, no Brasil, vários acadêmicos estudaram a escravidão a fundo, decifrando-a, digamos, de ponta a ponta. Entre os grandes pesquisadores estão Beatriz Mamigonian, Flávio dos Santos Gomes, Hebe Maria Mattos, Ilana Peliciari Rocha, João Fragoso, João José Reis, Keila Grinberg, Manolo Florentino (uma pena que tenha falecido tão cedo) e Sidney Chalhoub.

Os autores mencionados escreveram obras acadêmicas, mas, no geral, com o máximo de clareza. Alguns deles são ótimos “prosadores”, no sentido de escreverem muito bem. Escrevem com certa simplicidade, mas sem sacrificar a qualidade e o rigor da pesquisa. Leitores com uma gota de paciência certamente conseguem ler a maioria de seus livros. O rigor, a menção precisa das fontes — apresentá-las não resulta de mera exibição universitária —, resulta da honestidade intelectual dos pesquisadores tropiniquins, mas pode afugentar alguns ou até vários leitores. A excelência da universidade brasileira, no campo do estudo da escravidão, é louvada nas melhores universidades europeias e americanas.

Laurentino Gomes:
um notável vulgarizador da história brasileira | Foto: Reprodução

Há mesmo a necessidade de obras populares sobre a escravidão? Se há, e talvez haja mesmo, não é para compreendê-la de forma ampla. A escravidão já está bem explicada — o que não significa que esteja, como motivo de estudo, esgotada. Mas o básico está assentado, o que permite uma compreensão abrangente do fenômeno definidor da cultura e da economia do país.

Na verdade, livros como os do jornalista Laurentino Gomes são úteis sobretudo para reapresentar a escravidão — tão próxima de nós todos e, ao mesmo tempo, tão “esquecida” — ao grande público. O repórter, que escreve bem e de maneira simples — e parece rigoroso com as informações e correto com os dados pesquisados em outros livros —, torna a escravidão mais, digamos, “compreensível”? É provável. O autor mostra como ela foi terrível — daí as chagas na sociedade atual, com a forte presença do racismo. Recentemente, João Alberto Silveira Freitas, negro, foi assassinado numa unidade do Carrefour, supermercado cuja matriz fica na França — a suposta terra da Liberté, da Egalité e da Fraternité —, e um homem não aceitou, na Bahia, ser vacinado pela estudante de enfermagem Thais Carvalho, alegando que ela é negra. “Isso tirou o meu chão, eu fiquei em estado de choque”, afirma.

O autor fará uma trilogia | Foto: Reprodução

Laurentino Gomes lança, em junho, o livro “Escravidão — Da Corrida do Ouro em Minas Gerais Até a Chegada da Corte de Dom João ao Brasil” (Globo Livros, 512 páginas). Trata-se do segundo volume.

O foco do livro é o século 18, durante o auge do tráfico negreiro, quando houve a corrida do ouro e do diamante. Na apresentação, Laurentino Gomes assinala: “Entre 1700 e 1800, cerca de 2 milhões de homens e mulheres foram arrancados de suas raízes africanas, embarcados à força nos porões dos navios negreiros e transportados para o Brasil. Muitos seriam vendidos em leilões públicos antes de seguir para as senzalas onde, sob a ameaça do chicote, trabalhariam pelo resto de suas vidas. No final do século 18, a América Portuguesa tinha a maior concentração de pessoas de origem africana em todo o continente americano”. A escravidão, o ouro, o diamante e, depois, a cana-de-açúcar fizeram a fortuna de muitos e, por outro lado, destruíam a vida de milhares de negros. Os que chegaram da África e os que nasceram no Brasil.

A editora informa que Laurentino Gomes pesquisou durante seis anos e esteve em 12 países de três continentes. O jornalista sublinha que “nenhum outro assunto é tão importante e tão definidor da nossa identidade nacional quanto a escravidão. Conhecê-lo ajuda a explicar o que fomos no passado, o que somos hoje e também o que seremos daqui para a frente”. De fato, uma boa síntese.

Laurentino Gomes vai publicar uma trilogia.