Jornalista americano conta a história de um militar que contribui para a modernização do Brasil e para a proteção dos índios

A partir de maio deste ano, os leitores tropicais terão a chance de conhecer — ou de conhecer um pouco mais — um brasileiro admirável, tanto pela decência quanto por seu trabalho pela modernização do país (chegou a ser sugerido para o Prêmio Nobel da Paz). Trata-se do marechal Rondon.

O livro “Rondon — Uma Biografia” (Objetiva, 584 páginas, tradução de Cássio de Arantes Leite), de Larry Rohter, é um levantamento atualizado a respeito da vida de um brasileiro que merece ser chamado de grande homem, embora na estatura fosse pequeno.

Relato da editora: “No início da tarde de 26 de abril de 1914, um grupo de dezenove homens chegou à confluência de dois rios no coração da selva amazônica. Durante meses eles enfrentaram uma sucessão de dificuldades e privações para realizar um feito notável: navegar e mapear um rio ainda desconhecido, chamado rio da Dúvida, porque seu curso e comprimento eram um mistério. Os líderes dessa expedição eram Theodore Roosevelt, ex-presidente dos Estados Unidos, e o brasileiro Cândido Mariano da Silva Rondon, que há mais de vinte anos explorava a região.

“Depois que a jornada com Roosevelt chegou ao fim, Rondon continuaria por muitos anos seu importante trabalho, que incluiu o levantamento de rios, montanhas e vales até então ignorados, a instalação de quilômetros de linhas telegráficas, a construção de estradas, pontes e a fundação de povoamentos. Foi também Rondon quem primeiro estabeleceu contatos pacíficos com dezenas de etnias indígenas. Em 1910, fundou o Serviço de Proteção aos Índios, em um esforço de inclusão dos índios ao Estado nacional brasileiro.

“Hoje Rondon empresta seu nome a ruas, museus, cidades e até a um Estado, Rondônia. O lema que norteou suas expedições e contatos com os povos indígenas ― “Morrer se preciso for, matar nunca” ―, porém, se perdeu no tempo, e muitos de seus incríveis feitos como explorador permanecem ignorados.

“A grandiosidade de seus feitos inspirou o jornalista Larry Rohter a mergulhar por mais de cinco anos em sua trajetória, oferecendo agora ao leitor brasileiro um livro que redimensiona o lugar de Rondon na história do Brasil.”

Larry Rother nasceu em Chicago — cidade dos chicago-boys, os economistas ultraliberais, como Milton Friedman e, no Brasil, Paulo Guedes —, em 1950. Ao seu modo, equivocando-se aqui e ali, está se tornando uma espécie de brasilianista. Ele trabalhou no Brasil, durante 14 anos, para a revista “Newsweek” e para o jornal “New York Times”.

Na edição de 27 de janeiro de 2018, o Jornal Opção publicou um texto no qual comenta que Larry Rohter estava concluindo a biografia de Rondon. Curiosamente, o texto foi censurado pelo Facebook porque continha uma fotografia do marechal com índios seminus. A foto é bela e de rara inocência.

Vida exemplar

Larry Rohter vai publicar biografia sobre o notável Rondon

Marechal trabalhou para integrar o Brasil, defendeu os índios e era um homem de rara decência

O que o ex-presidente Lula da Silva fez de sua história, conspurcando-a, vai muito além de sua condenação à prisão pela Justiça. Há certos líderes que, como Getúlio Vargas, Juscelino Kubitschek e Barack Obama, apesar de seus defeitos, se tornam referências positivas. A história de um operário, de um bravo retirante que sai de Pernambuco e, mais tarde, se torna líder sindical e presidente da República, tem um caráter simbólico imenso e reverberante. A vida política do petista por certo não se resumirá à pecha de corrupto e de homem que, ao ser penalizado, debocha das instituições. O peregrino de Garanhuns e São Bernardo do Campo é, sem dúvida, uma figura maior do que ele próprio imagina, mas apequenou-se ao ceder às “delícias” do poder. Está se tornando um caudilho, um ser que está deixando de ser contemporâneo dos brasileiros atuais. Uma ideia fora lugar. Um dom Sebastião cujo objetivo não é mais “salvar” o país, e sim o PT e a si próprio.

Theodore Roosevelt e Rondon em busca do Brasil profundo

Mas, se Lula “sujou” sua própria história — afinal, não dá para acreditar que não sabia de nada (e não apenas sobre o tríplex e o sítio), pois é inaceitável um presidente omisso —, pode-se falar que, em termos de homens públicos, só se tem “desgraceiras” no país? Há homens públicos de grande decência, como Getúlio Vargas (não se pode desconsiderar, porém, que foi ditador), Juscelino Kubitschek (o presidente Ernesto Geisel disse que não havia evidências sólidas de que fosse corrupto, apesar das acusações), Oswaldo Aranha, Castello Branco, Milton Campos, Bilac Pinto, Ernesto Geisel, Henrique Santillo. Não eram perfeitos, mas eram homens de Estado que pensavam no crescimento e no desenvolvimento do país. No campo intelectual, não dá para ignorar Euclides da Cunha, Gilberto Freyre, Caio Prado Júnior, Sérgio Buarque de Holanda, Darcy Ribeiro, Florestan Fernandes, Antonio Candido, Wilson Martins e Raymundo Faoro. Não se trata de concordar com suas interpretações, e sim de admitir que deram contribuições sólidas e, portanto, duradouras para se entender o Brasil. Por que não citar Roberto Campos e José Guilherme Merquior? Eles são intérpretes do Brasil? É provável que sim. Merquior, que morreu aos 49 anos, deu uma contribuição expressiva e ainda não devidamente avaliada.

Rondon e Roosevelt

Mas há homens, grandes homens, que permanecem à sombra, às vezes folclorizados. Um deles é o marechal Candido Mariano da Silva Rondon (órfão de pai e mãe, pobre), nascido no século 19, em 1865, e morto no século 20, em 19 de janeiro de 1958, aos 92 anos. O heroico mato-grossense chegou a ser indicado para o Prêmio Nobel da Paz, e Harvard, uma das mais qualificadas universidades do mundo, “cogitou oferecer-lhe um título honorário”, registra o brasilianista Todd A. Diacon no livro “Rondon” (Companhia das Letras, 219 páginas, tradução de Laura Teixeira Mott).

Rondon com seus auxiliares militares: homem disciplinado, competente e humano | Foto: Reprodução

O pesquisador frisa que “o trabalho de Rondon, como engenheiro militar, era construir uma infraestrutura de estradas e linhas telegráficas ligando a vasta hinterlândia à costa”. Ao mesmo tempo, “arquitetou a política do Brasil para os povos indígenas. Célebre foi o seu trabalho com os povos indígenas da bacia amazônica. Quando Rondon embrulhava uma criança índia na bandeira brasileira, sua intenção era mostrar que, tanto no sentido literal como no simbólico, o Brasil cobria também aqueles povos”. Sua frase em defesa dos indígenas diz tudo sobre seu pensamento e ações: “Morrer, se preciso for; matar, nunca”.

Quando Theodore Roosevelt, que havia sido presidente dos Estados Unidos, veio ao Brasil, em 1914, Rondon levou-o em busca do Brasil profundo. “O miúdo Rondon e o rotundo Roosevelt comunicavam-se em um francês vacilante, às vezes usando Kermit [filho de Theo­do­re] como intérprete.” O parente de Franklin D. Roosevelt publicou o livro “Nas Selvas do Brasil” (editado no Brasil). A jornalista americana Candice Millard, mestre em literatura, é autora do belíssimo “O Rio da Dúvida — A Sombria Viagem de Theodore Roosevelt e Rondon Pela Amazônia” (Companhia das Letras, 395 páginas, tradução de José Geraldo Couto).

Rondon com um pequeno indígena; ele era muito querido pelos indígenas | Foto: reprodução

Por que falar só das desgraceiras, usando nossas energias exclusivamente para malhá-las, e esquecer o que presta, o que vale a pena? Não sei. É provável que só o “falar-malismo”, o sistema do “falar mal”, agrada nossos ouvidos e bocas. Quanto aos homens públicos resta falar bem, digamos, só de escritores e, quiçá, cientistas. Porém, aos que lidam com a política, direta ou indiretamente, brindamos com o opróbio.

Por que falar de Rondon? Por vários motivos. Um deles: em 19 de janeiro, sem maiores lembranças da imprensa patropi, fez 60 anos que o marechal morreu. Outro: o jornalista americano Larry Rohter — o jornalista que, quando presidente, Lula da Silva quis expulsar do Brasil, porque o ex-correspondente do “New York Times” publicou que era chegado a uma pinga — está escrevendo sua biografia. Na sexta-feira, 19, a jornalista Monica Gugliano entrevistou-o para o “Valor Econômico”.

Aos 67 anos, Larry Rohter diz que é fascinado pela história de Rondon (do qual deriva o nome de Rondônia). Na entrevista, afirma que não há uma “biografia abrangente” de Rondon em inglês, por isso decidiu escrever uma, que certamente será publicada no Brasil (o que o “Valor” não esclarece). “No Brasil, existem em português, mas são dos anos 40 e 50. Achei que era o momento oportuno de fazer uma biografia moderna, do século 21, sobre ele.” Curiosamente, o jornalista não cita a biografia escrita por Todd A. Diacon, o livro de Can­dice Millard e “Candido Rondon — A Integração Nacional” (Contraponto, 70 páginas), de Elias dos Santos Bigio.

Livro que resgata a viagem de Theodore Roosevelt e Rondon pela Amazônia | Foto: Jornal Opção

Homem decente

Larry Rohter afirma que os brasileiros falam dos políticos “corruptos” e “incompetentes”, mas se esquecem das referências positivas. “Acho bom lembrar que o país foi capaz de gerar gente de primeira linha e que Rondon é uma dessas pessoas. É claro que ele teve defeitos, como todos. Mas era um patriota abnegado que só pensava em servir ao seu país.”

Rondon, sublinha Larry Rohter, era “um homem dedicado ao trabalho, de uma coragem física e moral imensas, de uma grande honestidade e que teve uma importante atuação na história brasileira, da proclamação da República ao governo de Juscelino Kubitschek”. Ao estudar sua história, o jornalista ressalta que ficou impressionado com sua trajetória. Ele ganhou uma bolsa da Biblioteca Pública de Nova York e, desde 2015, está trabalhando “integralmente no livro”.

Homem múltiplo, Rondon, cujo nome deu origem ao Projeto Rondon, merece mesmo ser conhecido. “Ele foi um homem que teve todas as qualidades que hoje faltam ao Brasil, e a visão dos brasileiros sobre ele é muito estreita.” Além de um desbravador, que se propôs a conectar o Brasil, via telégrafo e mesmo pelo contato dos indivíduos, “teve um papel importante em defesa dos índios e na criação de parques nacionais como o do Xingu. Trabalhou em questões diplomáticas e militares”. Enviado para o Nordeste, para verificar as razões da seca, enviou um relatório para o presidente Epitácio Pessoa, que governou o Brasil entre 1919 e 1922. Como explicou que as causas da seca não eram apenas técnicas, mas também sociais e políticas, o governo deixou de aprová-lo.

“Rondon fez de tudo. Gosto de dizer, usando uma expressão bem popular brasileira, que ele era ‘pau pra toda obra’”, anota Larry Rohter.

O marechal Rondon com um grupo de indígenas; ele dizia sobre os indígenas: “Morrer, se preciso for; matar, nunca” | Foto: Reprodução

Donald Trump

O governo do presidente Donald Trump desagrada Larry Rohter. “Trump é um grande perigo ao Estado democrático e para toda a humanidade. Hoje temos um presidente que não tem as qualidades necessárias para dirigir uma grande nação e estamos sofrendo muito com isso.” Apesar de dizer que os brasileiros estão no “Absurdistão do Sul” e os americanos no “Absur­distão do Norte”, o jornalista afirma que a situação dos Estados Unidos é pior. “Estou mais otimista em relação ao Brasil do que aos Estados Unidos. Vocês, pelo menos, têm uma eleição neste ano. Aqui nós vamos ter que esperar 2020, a não ser que optemos pelo caminho do impeachment. (…) Considerando a condução que ele dá ao governo, a maneira como ele viola as leis e as regras, isso pode levar a um impeachment, sim.”

Se os Estados Unidos vão mal, se o “falar-malismo” do brasileiro é a ética dominante, o que conforta Larry Rohter, que é apaixonado pelo Brasil e, claro, por seu país? Viver no passado, pesquisando a vida de Rondon. “É um alívio estar com um homem tão íntegro quando tudo ao meu redor está virando uma loucura.”

Os americanos, como Larry Rohter e Benjamin Moser, estão descobrindo o Brasil e seus homens e mulheres de valor, como Rondon, Clarice Lispector, Machado de Assis (influenciou a forma do romance “Indignação”, de Philip Roth, e mesmerizou críticos atentos como John Updike, Susan Sontag e Harold Bloom). Falta aos brasileiros, não esquecer Lula, José Dirceu, José Serra e Aécio Neves, de quem não se cansam de falar mal, mas arranjar um tempinho para falar bem de quem “presta” — como Rondon, Juscelino Kubitschek, Mauro Borges, Henrique Santillo, Erico Verissimo, Machado de Assis, Clarice Lispector, Cecília Meirelles, Adélia Prado, Graciliano Ramos, Guimarães Rosa, Osman Lins, Carlos Drummond de Andrade, João Cabral de Melo Neto, Afonso Felix de Sousa. Deu errado um país que gerou Machado de Assis, Graciliano Ramos e Guimarães Rosa? Jamais.

Larry Rohter, que não agrada Lula, quer explicar o marechal Rondon | Foto: Reprodução

Sobre cachorros

Trecho do livro de Todd A. Diacon a respeito de como Rondon tratava seus cachorros: “A concisão de Rondon transformava-se em evidente loquacidade quando, em efusivas odes, ele discorria sobre um de seus temas favoritos: seus cães. Rondon amava seus cachorros, e os usava para caçar e guardar o acampamento. Três ou quatro cães de estimação acompanhavam constantemente o comandante, e no acampamento podiam-se encontrar até 20 cães. À noite, Rondon partilhava sua refeição com eles, e sempre lhes demonstrava grande carinho. Certa ocasião, deteve uma marcha durante a expedição de 1908 de Juruena ao Rio Madeira para que seus cães pudessem descansar. Na anotação daquele dia em seu diário, ele lamentou a inclemência do sol sobre os cachorros, sem jamais ter mencionado o mesmo efeito sobre os homens. Em 1905, quando construía uma linha [de telégrafo] no sul de Mato Grosso, Rondou retardou uma marcha, justificando em seu diário: ‘Fomos pousar no Rio Negro, porque os cachorros, principalmente o Parecido, mal puderam ali chegar, sendo este carregado, para não morrer afadigado’. Uma semana depois, ele estava preocupado porque dois de seus cães, Santusa e Fortuna, não haviam chegado ao acampamento. No dia seguinte, percorreu a linha telegráfica até encontrar os dois animais e trazê-los de volta.

O “desbravador” Rondon num de seus acampamentos: sempre acompanhado de seus queridos cachorros | Foto: Reprodução

“A morte de animais seus, diferentemente da morte de um soldado, ensejava comoventes louvores no diário de Rondon. Quando Vulcão morreu durante uma caçada no sul de Mato Grosso, em 23 de dezembro de 1900, Rondon escreveu em seu diário: ‘Companheiro de viagem e vigia de minha barraca […]. Pobre companheiro! Como sinto a tua morte […]. Que tanto me serviu, sem que eu pudesse retribuir ao menos metade da dedicação’. Em setembro de 1908, índios nambikwara feriram Turco, outro cão de Rondon, com duas flechas. Em seu diário, Rondon elogiou a excelência do animal e declarou ter ordenado imediatamente ao médico da comissão que tratasse dele ‘com todo cuidado e carinho’. Aquele mês foi decerto especialmente difícil para Rondon, pois ele também lamentou em seu diário, no dia 14, a morte de Lontra, sua mula favorita: ‘Pobre Lontra, tão forte, se mostrou esplêndida em toda a campanha de Mato Grosso e mesmo até aqui’.

“Os cães e as mulas de Rondon não desertavam. Seus homens, sim, e com grande frequência.”

Curiosamente, Rondon escreve “cachorros” e o scholar americano, “cães”.

Telégrafo e nação: marcha no território do Estado de Goiás

Todd A. Diacon relata sobre uma missão de Rondon: “Incumbido de comandar a construção do telégrafo no Estado do Mato Grosso, o jovem oficial do Exército Cândido Mariano da Silva Rondon partiu do Rio de Janeiro com seus homens em 21 de julho de 1900. Viajaram de trem até a cidade mineira de Araguari, estação terminal da Estrada de Ferro Mogiana. Em 29 de julho iniciaram a marcha através de Goiás, recebendo reforços de cinquenta praças do 20º Batalhão de Infantaria na cidade de Goiás Velho. Trinta e seis dias depois, em 19 de setembro de 1900, chegaram a São Lourenço, no Mato Grosso, seu destino final, depois de quase dois meses de viagem. […] Em 1906, em parte devido a seus contatos com  os bororos, Rondon estava começando a perceber as implicações de seu trabalho no telégrafo para a construção da nação. Ou seja, começava a sentir que o telégrafo poderia ser algo muito maior do que um instrumento militar capaz de assegurar fronteiras terrestres. Seu trabalho, Rondon supôs, poderia ser o propulsor da incorporação de povos indígenas à nação brasileira e da migração de brasileiros da costa para as terras férteis do Mato Grosso; em outras palavras, poderia desencadear a unificação física, assim como a emocional e afetiva, de seu país e de sua nação”.