Juscelino Kubitschek foi eleito mas só tomou posse devido a um contragolpe militar
18 julho 2021 às 00h00
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O presidente Café Filho “adoeceu” para permitir que civis e militares articulassem um golpe, sob a liderança de Carlos Luz, para impedir a posse do político mineiro
Juscelino Kubistchek de Oliveira (1902-1976 — viveu 73 anos), o JK, foi eleito presidente da República com 33,8% dos votos, em 3 de outubro de 1955 — há 65 anos. Seus principais adversários, Juarez Távora e Ademar de Barros, obtiveram, respectivamente, 28,7% e 24,4% dos votos, seguidos de Plínio Salgado, com 8,28%. O mineiro de Diamantina, que havia revolucionado a gestão pública em Belo Horizonte, como prefeito, e de Minas Gerais, como governador, sofreu uma campanha insidiosa e só tomou posse porque o ministro da Guerra, Henrique Teixeira Lott, deu um contragolpe para proteger a democracia.
Na biografia “JK — Artista do Impossível” (Objetiva, 798 páginas), Claudio Bojunga conta que o indefectível Carlos Lacerda, golpista juramentado, pregou: “Kubitschek não pode ser presidente, não será presidente”. Alegando que Juscelino não havia obtido maioria absoluta — o que a lei não exigia —, o brigadeiro Eduardo Gomes praticamente exigiu que o ministro da Guerra, Henrique Lott, comunicasse à Justiça Eleitoral “que o princípio da maioria absoluta deveria ser observado”.
Lott discordou e disse a Eduardo Gomes “que não desrespeitaria a independência da Justiça”.
A rigor, forças civis da União Democrática Nacional (UDN) e militares estavam preparando um golpe para evitar a posse de Juscelino. O deputado federal José Maria Alkmin, aliado e amigo de JK, ouviu do presidente João Fernandes Campos Café Filho (1899-1970) que vetaria “uma lei de interesse do funcionalismo” porque “não seria justo lançar essa carga sobre os ombros de quem quer que seja o futuro presidente”. A raposa mineira objetou que havia “um presidente eleito”.
Ao deixar o Palácio do Catete, Alkmin decidiu que deveria conversar com Lott “com mais frequência”. Percebeu que havia um golpe em andamento, com anuência do presidente Café Filho.
Os generais Zenóbio da Costa e Alcides Etchegoyen, da Cruzada Democrática do Clube Militar, conspiravam abertamente contra a posse de Juscelino. Lott barrou-os, tornando-se “o principal obstáculo ao golpismo num ministério em que os ministros da Justiça, Marinha e Aeronáutica estavam com a UDN”. Alkmin era o civil que informava o ministro da Guerra a respeito dos bastidores da política. “Era o próprio gênio da ubiquidade, vivendo a sua finest hour, segundo a expressão de Churchill”, exaltou Juscelino.
Durante o enterro do general Canrobert Pereira da Costa, presidente do Clube Militar, o coronel Jurandir de Bizarria Mamede, que não estava escalado para se pronunciar, discursou em defesa da maioria absoluta, portanto contra a posse de Juscelino. Lott ouviu estupefato e não deixou de perceber que o presidente da Câmara dos Deputados, Carlos Luz, o “cumprimentou efusivamente”. O ministro da Guerra decidiu que era preciso punir a indisciplina de Bizarria Mamede.
Numa conversa com o Eduardo Gomes, Lott perguntou se ele sabia do discurso do coronel. “Não, não”, respondeu o brigadeiro. Lott entendeu que, pelo contrário, o militar sabia o que estava acontecendo.
Ao procurar Café Filho, para certificar se “havia tomado conhecimento do discurso do coronel Mamede”, Lott recebeu a informação de que “o presidente tinha sofrido, de madrugada, um acidente cardiovascular” e estava internado no hospital do Ipase.
Havia a informação de que Café Filho estava mal. Mas o médico Raimundo de Brito disse que o caso não era grave. “Vai passar dois ou três dias no hospital e depois reassume o governo. Não tem nenhum propósito de perturbar a posse de Juscelino”.
Café Filho transmitiu o cargo para Carlos Luz. Na verdade, como checaram Alkmin e Renato Archer, o presidente adoeceu de mentirinha para o presidente da Câmara assumir o governo e criar um ambiente político e militar para impedir a posse de Juscelino,
Durante uma visita, o falso convalescente Café Filho “deu uma gargalhada e disse na frente de todos que pouco se importava com o que viesse a acontecer”. Ao perceber a gravidade do que ouviu, Alkmin correu para o gabinete de Lott.
Na sua cruzada para punir a indisciplina militar, a de Bizarria Mamede — até porque sabia que havia mais coisas por trás da atitude do coronel, indícios de uma articulação golpista —, Lott procurou o chefe interino do Estado-Maior das Forças Armadas, Gervásio Duncan. Este disse ao ministro da Guerra que não havia punido o militar.
Ante a resposta, Lott exigiu o retorno de Bizarria Mamede “aos quadros do Exército”. O coronel estava a serviço da Escola Superior de Guerra havia cinco anos, quando o preceito legal indicava que podia ficar no máximo três anos. Desafiando o ministro, Duncan frisou que o militar “era necessário à Esg”.
Carlos Luz, que se preparava para substituir Café Filho na Presidência, pediu a Lott uma avalição do Exército. O ministro explicou que havia militares legalistas e um grupo, pequeno mas atuante, “que desejava uma intervenção militar para suspender o regime”, conta Bojunga. O general explicou que “sua posição era de respeito à Constituição e de cautela, para não ferir a unidade das Forças Armadas”.
Astutamente, Carlos Luz e seus aliados forjaram uma renúncia coletiva dos ministros “para forçar a saída de Lott”. Numa reunião com Carlos Luz, na qual insistiu na punição do coronel Bizarria Mamede — com o objetivo de evitar que a indisciplina se alastrasse —, Lott, ante a desfaçatez do presidente interino, explodiu: “De minha parte devo ser franco: dada a situação, o presidente deve meditar bem, pois sei que Vossa Excelência é também partidário de uma situação extralegal para o problema sucessório”.
Pálido, o presidente reagiu: “É uma infâmia, não é verdade!” Mais tarde, Alkmin disse a Lott que Carlos Luz iria exonerá-lo. “Seu legalismo tornara-se incômodo e suspeito.” O ministro seria demitido por que exigia a punição de um coronel? Também, mas sobretudo porque era uma barreira ao golpe que se avizinhava.
Alkmin e Archer alertaram Carlos Luz de que poderia ocorrer uma guerra civil e que Minas Gerais lutaria pela posse de Juscelino. “Luz se alterou e praticamente os expulsou da sala”, assinala Bojunga. “O golpe está em marcha” — Alkmin avisou a Juscelino, que estava em Belo Horizonte.
Convocado para uma audiência, Lott compareceu ao Palácio do Catete. Carlos Luz demorou duas horas para atendê-lo, fingindo que estava muito ocupado. Na verdade, estava conversando com o general Fiúza de Castro, que seria indicado para ministro da Guerra.
Recebido, falou sobre Bizarria Mamede, e Carlos Luz sublinhou que não deveria ser punido. Lott disse que deixaria o governo e foi informado que seu sucessor seria Fiúza de Castro.
Segundo Juscelino, “cometendo a maior imprudência de sua vida, Carlos Luz concordou em transferir a posse para o dia seguinte, 11 de novembro [de 1955]”. Quando Lott chegou na sua casa, a mulher avisou que o general Odílio Denys precisava falar com ele.
Odílio Denys propôs a Lott que reagisse, informando-o de que teria o apoio de vários generais legalistas. “Denys sugeriu-lhe colocar a tropa em prontidão. Lott não concordou: aquilo acirraria a inquietação popular”, escreve Bojunga.
Ante a gravidade da situação, com os golpistas articulando livremente, a partir do Palácio do Catete, Lott não conseguiu dormir. O general disse ao jornalista Otto Lara Resende: “Minha demissão viria permitir a substituição de camaradas menos experientes e partidários da solução legal”. O ministro concluiu que os golpistas assumiriam o comando das Forças Armadas e impediriam a posse de um presidente eleito.
“A alternativa seria sair temporariamente do quadro legal para afastar um presidente moralmente incapaz de exercer suas altas funções, assim como outras autoridades militares favoráveis à solução legal”, anota Bojunga.
Lott decidiu entrar em contato com Odílio Denys, que lhe avisou que estava reunido com um grupo de militares, como o general Olímpio Falconieri, comandante da Zona Militar de São Paulo. “Lott disse” ao general “que precisavam agir rápido”.
À uma da madrugada, Lott e seus aliados começaram a articular a partir do QG. Juscelino estava em Minas, articulando a resistência civil e militar. O general Jaime de Almeida, que comandava o Exército no Estado, firmou-se ao lado de Lott, portanto de JK.
No Rio, Alkmin, Renato Archer e Vitorino Correia se reuniram no apartamento do deputado Vitor Isler, no Copacabana Palace.
Quando Carlos Luz e seus aliados comemoravam a vitória sobre Lott, portanto pró-ação contra a posse de Juscelino, os golpistas descobriram que o ministro estava em deu gabinete, senhor da situação. Os golpistas anti-golpistas prenderam o chefe de polícia, coronel Geraldo Menezes Cortes. Os generais Mascarenhas de Moraes, herói da Segunda Guerra Mundial, Falconieri, Levy Cardoso, Mendes de Morais, Stênio de Albuquerque, Arthur da Costa e Silva, Segadas Viana, Nelson de Melo, entre outros, deram apoio a Lott e Denys.
Os militares redigiram uma nota: “Tendo em conta a solução dada pelo presidente Carlos Luz no caso de coronel Mamede, os chefes do Exército, julgando tal ato de pura provocação aos brios do Exército, que viu postergados princípios de disciplina, decidiram credenciar-nos como intérpretes dos anseios do Exército, objetivando o retorno aos quadros normais do regime constitucional vigente. Acreditamos contar com a solidariedade dos companheiros da Marinha e da Aeronáutica e apelamos para os governadores estaduais solicitando apoio para essa atitude”.
Democrata e legalista, Lott não aceitou assumir o comando da rebelião a partir do Catete. “Não queria dar a impressão de que desejava assumir o governo. Estava apenas resguardando a legalidade”, pontua Bojunga. Os militares ficaram no Ministério da Guerra.
Carlos Luz pediu para falar com Lott, que disse que “não poderia atendê-lo por estar muito ocupado”. O arrogante político mineiro havia deixado de ser presidente.
Generais foram ao Catete para prender Carlos Luz, que escapou. Foram capturados os generais Fiúza de Castro e Alcides Etchegoyen.
Apegado à lei, em busca do retorno à normalidade, Lott telefonou para os presidentes do Senado, Nereu Ramos, da Câmara, Flores da Cunha, e do Supremo Tribunal Federal, José Linhares. “Esperava a substituição legal de Carlos Luz, pois não queria assumir o controle do poder civil. Queria o país de volta à normalidade constitucional, ou, como diria a Otto Lara Rezende, comandava um movimento de ‘retorno aos quadros constitucionais vigentes’”, historia Bojunga.
Lott explicou, mais tarde, “que, em nome de uma ameaça à Constituição, saíra da legalidade por alguns momentos e estava ansioso em encontrar uma solução para restaurá-la”. Bojunga ressalta que “a ironia era que sua devoção à legalidade precisasse ser garantida por um golpe militar”. O general se considerava um “guardião apolítico” da democracia.
Ao deputado Alkmin, Lott disse: “Eu já fiz a minha parte. Agora, qual é a solução legal?” O político mineiro explicou que o presidente do Senado, Nereu Ramos, deveria assumir a Presidência da República.
Nereu Ramos disse a Alkmin: “Se tivesse a certeza de contar com o apoio de meus colegas do Senado, não teria escrúpulos em aceitar a Presidência”.
O senador Vitorino Freire recomendou ao golpista Carlos Lacerda que procurasse asilo numa embaixada, para escapar à prisão. Na casa de Afonso Arinos, Lacerda ficou sabendo que Carlos Luz estava escondido no Ministério da Marinha. O político dirigiu-se para lá, escoltando por dois oficiais.
Bojunga postula que “o tortuoso sofisma de golpear a legalidade contra a ‘mentira democrática’ servia para justificar o contragolpe preventivo em nome da decisão das urnas. Lott não aceitava que chamassem uma eleição perdida de ‘golpe por via eleitoral”. Numa entrevista, publicada mais tarde, Lott, registra o biógrafo, “diria que a ação de novembro de 1955 foi para evitar que Carlos Lacerda, através de Carlos Luz, dominasse o país”. Só um golpe poderia desarticular outro golpe.
Por que o golpe dos dois Carlos, Lacerda e Luz, não deu certo? Porque “não empolgou os quartéis. A maioria dos conspiradores fardados não tinha comando e os que o detinham eram na maioria fiéis a Lott”.
Com o golpe abortado, Carlos Luz, por assim dizer, assumiu a “presidência” do cruzador Tamandaré. O presidente deposto, o almirante Pena Boto, Amorim do Vale Sílvio Heck e Lacerda pretendiam navegar até São Paulo, em busca de apoio para reagir ao contragolpe. Estavam informados de que o governador Jânio Quadros os apoiaria.
O novo governo chegou a atirar no cruzador Tamandaré, mas sem atingi-lo. Quando se aproximava de Santos, o Exército de Brancaleone — com Pena Boto comendo muito e Lacerda reclamando — descobriu que a guarnição local havia aderido a Lott. Jânio Quadros não tinha como oferecer apoio algum e, por isso, deixou os “amigos” na chapada.
Os civis legalistas decidiram agir e votaram o impedimento de Carlos Luz. “Nereu Ramos assumiu o cargo na presença de Lott.” Tutelado? Por incrível que possa parecer, não. Lott quis preservar a democracia… para os civis.
Lacerda, Mamede e Carlos Luz decidiram voltar ao Rio, derrotados.
No Rio, Carlos Luz renunciou. “Os coronéis Canavarro e Mamede foram presos. Aconselhado por [Afonso] Arinos, Carlos Lacerda asilou-se na embaixada de Cuba pré-Fidel”, conta Bojunga.
Café Filho, que não estava tão doente assim — morreu 15 anos depois, aos 71 anos —, tentou voltar à Presidência, à qual praticamente havia renunciado. Lott explicou “que os militares julgavam inconveniente sua volta ao governo, capaz de ‘reacender paixões, produzindo novas agitações e desentendimentos’”.
O presidente afastado esperneou e se reuniu como Eduardo Gomes, Amorim do Vale, Munhoz da Rocha, Prado Kelly e Alencastro Guimarães. Mas militares cercaram o quarteirão onde ficava o apartamento de Café Filho. “O telefone do ex-presidente foi cortado. Os acompanhantes de Café tiveram de permanecer no apartamento.”
O astuto Alkmin e um grupo de deputados, reunidos na casa de Tancredo Neves, articularam o impedimento de Café Filho no Congresso.
Ao saber que Café Filho havia sido afastado em definitivo, Juscelino decidiu descansar em sua casa, em Belo Horizonte. O governador Clovis Salgado disse ao presidente eleito: “Juscelino, isto é o fim. Agora, sua posse está garantida”. Deitado na sua cama, JK disse para si mesmo: “O fim, não, começo”. E dormiu.
No dia 31 de janeiro de 1956, Juscelino Kubitschek — o JK, o Pé de Valsa — tomou posse na Presidência da República. O político mineiro se tornou presidente porque foi o mais votado pelo povo brasileiro, mas só assumiu graças um golpe militar perpetrado por dois generais, Lott e Odílio Denys.
JK fez um governo democrático e realizador (construiu Brasília, por exemplo) e possivelmente teria voltado à Presidência, em 1965, mas foi cassado pela ditadura civil-militar. É provável que os militares, com o apoio de civis-vivandeiras, como Carlos Lacerda e Magalhães Pinto, derrubaram João Goulart, não por receio da mítica República Sindicalista do presidente, mas sobretudo para impedir a volta de JK ao poder.
(Há um excelente livro na praça: “Soldado Absoluto — Uma Biografia do Marechal Henrique Lott”, de Wagner William, Editora Record, 571 páginas.)