Na infância e na adolescência, li com sofreguidão a literatura do escritor baiano

Na década de 1960, mais ou menos com 8 ou 9 anos, comecei a ler Jorge Amado (1912-2001), escondido de meu pai, Raul de França Belém. Ele lia seus romances, divertia-se, mas avaliava que não era leitura para crianças. Sua obra era “pornográfica” — não se dizia “erótica”. Curiosamente, todos que condenavam a liam, e com certo fervor. Como já havia lido “A Carne”, de Júlio Ribeiro — mesmerizado com a história de Lenita —, e, sim, Adelaide Carraro (era febre: falava-se mal em público e lia-se na surdina), já estava preparado para leituras talvez similares. Pois, quando o seu Raul — funcionário público e farmacêutico prático (era o aplicador de injeção da redondeza e escrevia cartas para parentes distantes daqueles que eram analfabetos ou não sabiam redigir uma carta) — saía para o trabalho, eu me tornava o sujeito da casa, mexia nas gavetas do guarda-roupa ou de uma penteadeira e, de lá, sacava algum livro de Jorge Amado. Às vezes, tinha vontade de fazer um comentário com meu pai, mas não podia, pois as obras eram (relativamente) proibidas. Quanto a livros, eu era um menino, dizia Raul, “malino”.

Antes de Jorge Amado, li, encantado, José Lins do Rego e Monteiro Lobato. Divertia-me lendo os dois autores, diferentes, é certo, mas tratando cuidadosa e inteligentemente o mundo da infância. Mas, quando comecei a ler a literatura do escritor baiano, descobri outro mundo — quiçá, o que na época não saberia explicar, o da sensualidade. Lembro-me de rir, sozinho, quando lia a esperteza matreira da protagonista de “Gabriela, Cravo e Canela”. As imagens de Gabriela, sua ingenuidade maliciosa de moça-meninona, não saíam de minha cachola. Pois Jorge Amado é hábil em criar imagens fortes a partir de personagens marcantes e cativantes. Certa feita, eu ria tanto da história de “A Morte e a Morte de Quincas Berro d’Água” que minha irmã Eliana Belém perguntou se eu estava passando mal ou se estava doido. Estava, sim, de tanto rir. A novela, mais do que um romance, é picaresca.

Fiquei de certa maneira meio confuso com a divertida história de “Dona Flor e Seus Dois Maridos” (não parece, mas é feminista, pois a mulher é forte e “tem” dois homens). Vadinho, mais do que Dona Flor, me deliciava com suas peraltices adultas mas tão traquinas quanto as de crianças e adolescentes. Vadinho é uma criança adulta, quem sabe. Ao menos era assim que eu o percebia. Devo ter lido “Teresa Batista Cansada de Guerra” entre 1972 e 1973. Meu pai havia lido uma reportagem, salvo engano da revista “Veja”, que ele comprava desde 1968 — tenho o exemplar número 1 —, a respeito do romance e pediu um exemplar pelo reembolso postal. Quando chegou foi uma festa para… nós dois. Nós saíamos de casa de manhã — ele para a prefeitura, onde trabalhava na coletoria, e eu para a escola. Quando voltava para casa, depois do almoço — comia pouco e rápido —, deitava-se no sofá, colocava os pés (cruzados) para cima e, quando não tirava uma soneca, lia algumas páginas do livro. Em seguida, voltava ao trabalho. Entre as 13 e às 17 horas (quando ele voltava do trabalho), depois de brincar com os amigos — pião, bolinha de gude, finca, bete, futebol, nem sempre nesta ordem —, pegava o danado do romance e o lia, sofregamente. Uma delícia. O fato de ler escondido aumentava a curiosidade e a fantasia, por certo. Quando meu pai voltava, o livro já estava guardado no mesmo local. Quando ele recebia a visita de seu Geraldo Fernandes de Carvalho e seu Cearense, dois amigos, falava um pouco da obra e eu ficava escutando, em busca de algum esclarecimento. Porque Raul lia bem e recontava a história detalhadamente. Era um romance dentro do romance. Ou quase outro romance.

Mais tarde, descobri Machado de Assis, Graciliano Ramos (o escritor patropi que mais amo), que sofisticou José Lins do Rego e redescobriu o Brasil, e Guimarães Rosa. Andei desprezando Jorge Amado, que li criança e adolescente, com um prazer imenso (talvez até sexual, e mesmo antes de entrar na puberdade). Com o tempo, que estica a nossa paciência e dissolve intolerâncias, voltei a respeitar a prosa do escritor, mesmo rejeitando seu engajamento às vezes excessivo e, até, primário. Talvez devido à sua prosa caudalosa, nem sempre vista como bem elaborada — possivelmente quando comparada à da santíssima trindade Machado de Assis, Graciliano Ramos e Guimarães Rosa —, Jorge Amado é relegado ao segundo time. Mas os leitores jamais o deixam no limbo.

Por ter se tornado um autor popular, assim como o excelente prosador tcheco Milan Kundera — também ensaísta de primeira água —, Jorge Amado acabou desprezado. Aqui e ali, um crítico de importância o redescobre — Ana Maria Machado já exibiu a relevância de sua literatura —, mas os filhos de James Joyce e Guimarães Rosa não toleram sua prosa excessiva, de escassa contenção. O autor de “Capitães de Areia” — que adorei quando o li pela primeira vez, dando nenhuma importância ao engajamento político (Jorge Amado talvez deva ser aceito como um dos intérpretes do Brasil) — quase ganhou o Prêmio Nobel de Literatura, na esteira de outros “populistas”, como Pablo Neruda. Merecia? Sim, merecia. Não mais do que Machado de Assis, que morreu em 1908, Graciliano Ramos, Guimarães Rosa e Carlos Drummond de Andrade. Mas Jorge Amado merecia o Nobel porque é hábil contador de histórias de média qualidade, com certo padrão. Desde que não se esteja buscando um autor altamente inventivo, na linhagem dos super-modernistas. Escrever com simplicidade e clareza, como fazia Jorge Amado, dá muito trabalho. Quem gosta de uma “historona” — tradicional, vá lá — não perde nada lendo a prosa desenxabida do ator de “Navegação de Cabotagem” (memórias).

O que surpreende é que, apesar de ser um dos autores brasileiros mais lidos no mundo, Jorge Amado nunca mereceu uma biografia decente e mesmo indecente. Pois sai do forno, em dezembro, “Jorge Amado — Uma Biografia” (Todavia, 640 páginas), da jornalista Joselia Aguiar, autora de resenhas bem-feitas em jornais e revistas. Pela quantidade de páginas, trata-se de um volume alentado, que vou ler com prazer, em busca de Jorge Amado, de seus personagens e histórias e, mesmo, da história do Brasil (ele foi militante e deputado comunista).

Primeiras biografias criam pontes para novas biografias, mas há biografias que, mesmo sendo pioneiras — falando-se, claro, das amplas —, são quase definitivas (em termos de vidas e obras literárias nada é definitivo, por mais qualitativa e abrangente que seja a pesquisa), como “O Anjo Pornográfico — A Vida de Nelson Rodrigues”, do jornalista Ruy Castro. Espera-se que Joselia Aguiar tenha lido Jorge Amado com o olhar amável e compreensivo de seus leitores, sem perder a dimensão crítica (não dá para esconder o stalinismo do indivíduo). Assis Chateaubriand passou por um strip-tease feroz no livro “Chatô — O Rei do Brasil”, do jornalista Fernando Morais. Mesmo exibido como um escroque, dos grandes, não deixa ser respeitado e admirado pelos leitores da biografia. Além de ter sido um pioneiro da comunicação, lançando jornais, rádios e a TV Tupi, criou, praticamente do nada, o Museu de Arte de São Paulo, o celebrado Masp. O melhor biógrafo é aquele que pesquisa e escreve como antropólogo, contando o que fez ou deixou de fazer seu personagem, mas permitindo que a própria história, além do leitor, faça seus juízos de valor.

Eu e José Maria e Silva entrevistamos longamente Jorge Amado, no Castro’s Hotel, ao lado de sua mulher, Zélia Gattai. Falou com tranquilidade sobre literatura e política. Estava velho, mas lúcido. Estava se tratando em Goiânia com o médico oftalmologista Marcos Ávila. A entrevista foi concedida devido à pronta intervenção da jornalista Márcia Elisabeth, que era amiga do médico e mãe da oftalmologista Lívia Bianchi.

A editora envia a seguinte sinopse do livro de Joselia Aguiar para as livrarias: “Um dos mais populares autores de todos os tempos, Jorge Amado foi lido com igual satisfação nos cinco continentes. Marcou não só as letras latino-americanas, mas também a política, os costumes, a TV e o cinema nacional. A primeira, mais completa e atualizada biografia do grande escritor brasileiro Jorge Amado, com acesso exclusivo a documentos de família e cartas de parentes, amigos e outros escritores, além de exaustivas entrevistas e pesquisas no Brasil, na Europa e nos Estados Unidos, o livro retraça a vida emocionante de um dos mais populares escritores universais do século 20. Autor de clássicos brasileiros como ‘Capitães da Areia’, ‘Jubiabá’, ‘Tieta do Agreste’ e ‘Gabriela, Cravo e Canela’, com livros que se tornaram sucesso do cinema e da TV, Jorge tem aqui sua vida — de homem, escritor, político, celebridade — recontada com elegância, precisão e fluência quase romanesca”.