Jornalista e professor, Leão Serva deu aula gratuita ao defender Vera Magalhães de deputado bolsonarista
18 setembro 2022 às 00h00
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Não há nada de errado em dizer que a má convivência de Jair Bolsonaro (PL) com jornalistas começou assim que ele foi confrontado pela primeira vez como político. Ainda quando deputado, o capitão da reserva já atacava aqueles – e aquelas – que o questionavam. O caso mais lembrado daqueles tempos já sombrios é o da repórter da Rede TV! Manuela Borges, em que a profissional foi chamada de “ignorante” e “idiota” pelo parlamentar. Na gravação, ela chegou a dizer que processaria o parlamentar, mas revelou que não teve o apoio da emissora para tanto e que foi convencida a desistir por um amigo advogado.
Durante todo o mandato presidencial de Bolsonaro, o conflito com jornalistas que o criticaram ou simplesmente o questionaram foi intenso e contínuo. Foi e é e deve. Não cabem nos dedos de mãos e pés as agressões feitas de forma direta ou indireta a profissionais da imprensa, mas vale fazer aqui pelo menos três registros de episódios que estão entre os mais deprimentes.
- Em fevereiro de 2020, o presidente fez uma insinuação sexista sobre a jornalista Patrícia Campos Mello, após um depoente mentir à CPI das Fake News, dizendo que ela teria oferecido sexo em troca de informações para as reportagens sobre o esquema de disparo de mensagens em massa para favorecer Bolsonaro durante as eleições de 2018. “Ela queria um furo. Ela queria dar o furo a qualquer preço contra mim”, disse a apoiadores, na época. Foi condenado a pagar R$ 35 mil em sentença confirmada pelo Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP).
- Em junho de 2021, a âncora Daniela Lima, da CNN, foi chamada de “quadrúpede” por Bolsonaro, após ter editada, por bolsonaristas, uma fala durante a apresentação de um programa jornalística editada, o que levou a interpretações distorcidas. “‘É uma quadrúpede”, disse o presidente, novamente a seus apoiadores.
- Em agosto deste ano, ao ser indicado para comentar a pergunta de Vera Magalhães ao candidato Ciro Gomes (PDT), no debate dos presidenciáveis da Band, ele atacou a jornalista da TV Cultura, com expressões como “acho que você dorme pensando em mim, você tem alguma paixão por mim” e “você é uma vergonha para o jornalismo brasileiro”.
Como líder que é, cada gesto de Bolsonaro é interpretado por quem o segue como uma indicação de procedimento, um modus operandi. Ocorre que seus seguidores mais ferrenhos, na verdade, são militantes fanatizados. Entre o presidente e eles, há os políticos bolsonaristas, que se inspiram nas ações do primeiro para, mimetizando-o, conquistar a simpatia – e, neste período eleitoral, os votos – dos últimos.
O que o deputado estadual de São Paulo Douglas Garcia (Republicanos) fez, também nos estúdios da Band, na terça-feira, 13, foi uma consequência do que Bolsonaro havia protagonizado, com a mesma personagem, pouco mais de duas semanas antes.
Era outro debate, o dos candidatos ao governo de São Paulo, e o parlamentar era convidado de Tarcísio de Freitas (Republicanos), o nome bolsonarista para a disputa. Assim que terminou o evento, já na madrugada da quarta-feira, Garcia partiu para cima de Vera Magalhães, que estava sentada em uma poltrona. À “moda Mamãe Falei”, Garcia partiu para cima com o celular filmando a cena e questionando a jornalista sobre seu salário na TV Cultura, que, segundo uma fake news circulante nas redes bolsonaristas, seria de meio milhão de reais – sem que ninguém entre eles esclareça se é anual ou mensal.
A comunicadora, por sua vez, também começou a filmar o assédio em seu smartphone. Entre outras expressões, o deputado e dublê de influencer disse que ela era “uma vergonha para o jornalismo brasileiro”. Vera ouvia, pela segunda vez, exatamente as mesmas palavras de ataque moral.
Entrou em cena um colega que teve um papel fundamental no desfecho do caso, além de pedagógico para os próximos: o mediador do debate, Leão Serva, que conseguiu tomar o celular de Douglas Garcia e arremessou-o longe. Terminou a pantomima do rapaz lhe dirigindo um xingamento-desabafo.
Obviamente, não é bonito xingar. No caso, foi uma forma de ceder e se rebaixar ao nível de quem praticava a baixaria
Um clássico caso em que jornalista vira notícia, Serva, de 62 anos, ganhou manchetes nos dias seguintes e até concedeu uma entrevista à Folha de S.Paulo. O mote principal do que ele disse ao jornal: intervir em uma cena jornalística é defensável; defender mulher de agressão é uma imposição moral. O xingamento, reconheceu, era dispensável e o envergonhou.
Obviamente, não é bonito xingar. No caso, foi uma forma de ceder e se rebaixar ao nível de quem praticava a baixaria. Mas esse tipo de linguagem parece ser o único compreendido pelos fundamentalistas da extrema-direita, que têm o finado Olavo de Carvalho como guru. O ideólogo era claro em seu método retórico: não se deve aprofundar os debates com argumentos; quando isso estiver prestes a acontecer, é preciso recorrer aos insultos como forma de refutação.
Não há lição que o bolsonarismo tenha aprendido melhor, seja para lidar com a imprensa, com seus opositores na política ou nas interações em redes sociais. Quando não há como refutar um argumento, a saída é atacar o questionador.
Diretor de Jornalismo da TV Cultura, Leão Serva é também professor universitário. Mais: seus alunos estavam na plateia do debate – ele ministra a disciplina de Ética na Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM), uma das mais tradicionais do País na área da comunicação. Disse que o episódio vai virar estudo de caso em suas aulas, em todos os aspectos. De nossa parte, está totalmente perdoado pela “descida de nível”. Alguém precisava ir até “lá” para mostrar que as coisas precisam voltar a ter limites no convívio civilizatório com a imprensa.