Ele brilhou no Internacional e o Palmeiras o emprestou ao Flamengo e ficou com o goiano Baltazar. Meio-campista terminou a carreira no Vila Nova de Goiás

Couto de Magalhães, Mário de Andrade, Pedro Nava (chantageado, se matou com um tiro) e Gilberto Freyre: quatro grandes brasileiros que, direta ou diretamente, tiveram alguma relação com a homossexualidade

O desejo pelo diferente ou diverso existe e é forte. O escândalo da homossexualidade é que mes­mo heterossexuais, dos mais convi­ctos, parecem sentir certa atração por aqueles que, em tese, não aceitam e “precisam”, inclusive, rejeitar de maneira enfática. Talvez o ser humano seja mesmo mais bissexual do que heterossexual. No Brasil, país liberal cercado por nichos conservadores, a discussão do tema é envolta em sensacionalismo, não raro com o objetivo de “diminuir” ou “desgastar” a pessoa homossexual ou supostamente homossexual.

Couto de Magalhães

José Vieira Couto de Magalhães (1837-1898), que viveu no século 19, era um homem extraordinário, que merece uma biografia ampla e cuidadosa (Ruy Castro, Lira Neto e Fernando Morais, três ases, deveriam examinar sua vida). Político e general de Minas Gerais, governou São Paulo, Goiás e Pará. Construiu ferrovia, ao lado do Barão de Mauá, e atuou como empresário e banqueiro. Participou da Guerra do Paraguai, expulsando os homens de Solano López do Mato Grosso. Falava várias línguas — inclusive Tupi — e morou um tempo na Inglaterra. Decidido e inovador, iniciou a navegação de maior porte no Rio Araguaia. Na primeira tentativa, naufragou e quase morreu, mas não desistiu. O barco foi transportado nos braços de vários homens e no lombo de burros. Lembra-se de “Fitzcarraldo”, o filme de Werner Herzog com Klaus Kins­ki? Couto de Magalhães é o Fitz­carraldo dos trópicos. Escreveu livros e deixou um “Diário Íntimo” (Com­pa­nhia das Letras, 248 páginas). Uma análise deste livro pode ser conferida em “Um Toque de Voyeu­ris­mo — O Diário Íntimo de Couto de Maga­lhães” (Eduerj, 342 páginas), excelente tese de doutorado de Márcio Cou­to Henrique. O médico Hélio Mo­reira escreveu um romance biográfico do balacobaco, “Couto de Magalhães — O Último Desbra­va­dor do Império” (Kelps, 267 páginas).

Parte do “Diário Íntimo” de Couto de Magalhães foi escrita num dia­leto — Nheengatu — que poucos do­minavam. O autor seguramente tratava de ocultar um segredo, quiçá de seus contemporâneos, mas que sabia que, no futuro, seria revelado. São os registros de seus sonhos homoeróticos. Não se sabe se o político e general manteve relações sexuais mas as anotações indicam que sonhava com homens, com seus órgãos genitais. São “lembranças” vívidas, poderosas. Ele não se casou, mas deixou filhos. Era homossexual? Era bissexual? Era pansexual? Era, sem dúvida, um ser diverso, que categorias rígidas não conseguem definir e, portanto, inscrever nos catálogos médicos e nas, digamos, normas sexo-sociais.

Mário de Andrade

O poeta, prosador e crítico Mário Raul Morais de Andrade (1893-1945), um dos patronos da Semana de Arte Moderna de 1922 e uma espécie de Ezra Pound — orientador qualificado — para uma geração de escritores brasileiros, como Carlos Drummond de Andrade, João Cabral de Melo Neto e Fernando Sabino, era homossexual ou bissexual. Por certo, nunca vai se saber exatamente. Mas é a possibilidade de que tenha sido homossexual que obstaculiza a possibilidade de biografias alentadas, que contemplem todos os aspectos de sua vida riquíssima, de intelectual admirável.

“Eu Sou Trezentos — Mário de Andrade: Vida e Obra” (Edições de Janeiro, 256 páginas), de Eduardo Jardim, é de rara excelência. Porque o autor conhece como poucos a vida e, sobretudo, a obra do polímata patropi. Quanto à sexualidade, embora não ignore o tema, o autor não avança. O que falta: pesquisa ou coragem? Tenho uma visão muito pessoal: acho que, dada a grandeza de Mário de Andrade — que não se resume ao romance “Macunaíma” e à sua poesia, pois havia, além do orientador cultural, o pesquisador de música e o homem público patrocinador da cultura —, os melhores estudiosos não querem mexer na cumbuca da sexualidade. De fato, seu perfil cultural assoma e é muito mais importante do que sua sexualidade. Ainda assim, por que não discuti-la, inclusive apontando se influenciou sua obra? Afinal, a homossexualidade não diminui nem proscreve ninguém. O jornalista Jason Tércio promete, para breve, uma biografia detalhada do autor de “Pauliceia Desvairada”. Numa entrevista, o pesquisador sugeriu que o modernista era bissexual.

Gilberto Freyre

Outro caso exemplar é Gilberto de Mello Freyre (1900-1987), o maior sociólogo brasileiro — diria, até, que se trata de um pensador da sociedade (e da cultura) brasileira, como Sérgio Buarque de Holanda e Raymundo Faoro. Consagrado está que era heterossexual, dos mais mulherengos. Mas o autor de “Grande Grande & Senzala” nunca escondeu que manteve relações com homens, quando estudou fora do país, e, mais tarde, recolheu-se à vida de heterossexual, aparentemente.

Numa entrevista à revista “Play­boy”, de 1980, Gilberto Freyre admitiu que manteve “poucas e não satisfatórias aventuras homossexuais”. Num conto de 1976, publicado na revista “Ele e Ela”, o sociólogo menciona o “personagem” Gilberto Freyre: “Dizia-se que não gostava de moça e que vivia mais rodeado de rapazinhos. Não era bem assim”. O autor parece se divertir com o tema. Em­bora faça a correção, “não era bem assim”, não se importa em ex­por a questão da homossexualidade.

Maria Lúcia Garcia Palhares-Burke anota, no livro “Gilberto Freyre — Um Vitoriano nos Trópicos” (Unesp, 481 páginas): “Linwood Sleigh (1902-1965) foi o jovem oxfordiano com quem se relacionou num ‘desvio’ que descreveu como ‘lírico, além de sensual’”. Em Oxford, onde estudou, o sociólogo diz que havia “amizades intensas de rapazes”, com certo (quiçá forte) componente homossexual.

As regras (se regras são) sexuais são mais fluidas do que parecem e há heterossexuais que experimentam a homossexualidade e, em seguida, a rejeitam — não raro sugerindo que se trata de “coisas da adolescência”. Há os que dizem que se trata de “mero sexo”.

Pedro Nava

O médico Pedro da Silva Nava (1903-1984), maior memorialista do Brasil e cognominado de Proust dos trópicos, era casado e mantinha relacionamento homossexual com um garoto de programa. Chantageado, se suicidou (com um tiro de revólver) em praça pública, em 1984, aos 80 anos. Os principais jornalistas da época, como Zuenir Ventura e Ricardo Setti, publicaram histórias lacunares, tangenciando a história da homossexualidade, como se fosse vergonhoso o fato de alguém ser homossexual. Ao proteger e reforçar a imagem de “homem sério”, lá das “veredas” e dos “sertões” das Minas Gerais, a Imprensa contribuiu para reforçar preconceitos, pois deixou patente que a homossexualidade era “feia” e “suja”, daí tinha de ser “escondida” ou “omitida”. Como o sexo é prazeroso e belo, se as relações são consensuais e não forçadas — se não envolve crianças e adolescentes, por exemplo —, nada é condenável.

Cleo Hickman

O meio-campista Cleo Hickman brilhou tanto no Internacional de Porto Alegre quanto na seleção brasileira

A revista “Aventuras na História” que está nas bancas, a de número 178, de março, publica o artigo “Homossexualidade no futebol: o caso Cleo”, de José Renato Santiago, mestre e doutor pela Escola Politécnica da Universidade de São Paulo. Trata-se de um texto sério, avesso ao sensacionalismo.

Cleo Inácio Hickman — primo da bela ex-modelo e apresentadora de televisão Ana Hickmann —, nascido em 1959 e filho de pais alemães, começou como meio-campista, dos mais habilidosos, no Internacional de Porto Alegre. “Em 1979, com 20 anos, foi convocado pelo técnico Mario Travaglini para atuar na seleção brasileira, que disputou e acabou por conquistar a medalha de ouro nos Jogos Pan-americanos de Porto Rico daquele ano.”
Em 1980, Cleo “participou do torneio pré-olímpico da Colômbia”. O time não estava bem e o jogador deixou de ser titular. “Jamais voltou a vestir a camisa canarinha”, relata José Renato Santiago.

Ao deixar a seleção, Cleo se tornou uma das principais referências do Internacional, consagrando-se como “o melhor jogador do Campeonato Gaúcho de 1981, conquistado por sua equipe”.

De futebol clássico, lembrando a elegância de Falcão, o “rei de Roma”, despertou o interesse do Barcelona — time que, mais tarde, atraiu Romário, Ronaldo Fenômeno, Ronaldinho Gaúcho e Neymar.

Cleo foi contratado pelo Barcelona, da Espanha, mas não se consagrou

O técnico alemão Udo Lattek pe­diu e o time da Catalunha contratou Cleo, em 1982. Ele seria o substituto do craque Schuster. O Barcelona, na ver­dade, queria adquirir o passe de To­ninho Cerezo, mas o técnico vetou.

A imprensa de Barcelona não se entusiasmou com Cleo. Embora aplicado, o brasileiro não brilhou, talvez por se sentir um peixe fora d’água no Barça. Para piorar a situação, a revista “Placar” publicou uma reportagem inspirada numa entrevista do jogador ao colunista social Roberto Gigante, do jornal “Imagem News”. “Nela, Cleo fez revelações sobre um tema que, desde sempre, é barreira no futebol, a homossexualidade. Segundo Gigante, Cleo afirmou ‘ter vivido experiências com homens na adolescência, entre outras coisas, embora tais fatos não se manifestem nas concentrações’.” O jogador posou nu, escondendo o órgão genital com uma estátua. À revista “Playboy”, o atleta disse: “Quero que essa história de homossexualismo caia logo no esquecimento”. Por ser loiro, era chamado de Farrah Fawcett.

A Espanha, que havia recém-saído do ultraconservador regime do ditador Francisco Franco, escandalizou-se com a revelação de Cleo. “A assessoria de imprensa do Barcelona logo se antecipou para negar toda a história. (…) A diretoria do clube catalão ‘solicitou’ a Cleo que antecipasse seu casamento com sua namorada, Maria José Costa Silva, o que aconteceu em uma cerimônia na Espanha que não contou com a presença de nenhum atleta ou membro da comissão técnica do clube”, regista José Renato Santiago.

Mesmo casado, Cleo não conseguiu espaço no Barcelona. “Após três meses, estava de volta ao Brasil, mais especificamente ao Beira-Rio, a tempo de ser bicampeão gaúcho com a equipe colorada em 1982.”

O jogador Cleo Hickman se casou mas o preconceito continuou virulento

Em 1983, Cleo, indicado pelo técnico Rubens Minelli, foi contratado pelo Palmeiras. O time paulista o emprestou ao Flamengo, em troca do atacante goiano Baltazar — irmão do ex-deputado Euler Morais.

Depois de passar pelo América, do Rio de Janeiro, e pelo Sport Recife, Cleo encerrou sua carreira, aos 30 anos, no Vila Nova, clube de Goiás. José Renato Santiago sublinha que “não é certo afirmar o quanto suas declarações sobre seus supostos relacionamentos homossexuais chegaram a influenciar sua carreira; no entanto, relatos de jogadores que atuaram com ele garantem que muitos de seus adversários não deixavam por menos em dar entradas desleais durante jogos e, até mesmo, treinos, como forma de mostrar que ‘ele não fazia parte daquele meio’”.

Cleo chegou a treinar equipes ju­niores, mas abandonou o futebol em definitivo. “Casado” e “pai de fa­mí­lia, tem atuado como empresário de al­guns atletas”. Ele fará 60 anos em 2019.
Homem bonito e charmoso, Cleo pode ser incluído entre as vítimas dos preconceitos de matiz sexual tanto no Brasil quanto na Espanha. Felizmen­te, apesar da breve carreira, resistiu à pressão do conservantismo.