João W. Nery conta sua viagem existencial a partir e para além da transexualidade

05 julho 2018 às 22h33

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O psicólogo, que não se deixa prender por referências teóricas, conta sua viagem para alguém que saiba escutar, e neste sentido comparecer de forma instigante como sujeito de linguagem
Marcos Antônio Ribeiro Moraes
“Viagem Solitária — Memórias de um Transexual Trinta Anos Depois” (Leya, 336 páginas), de João W. Nery, é uma autobiografia escrita num estilo agradável e envolvente, na qual o autor apresenta sua dificílima trajetória de vida. Ao longo de sua narrativa é possível perceber que seu percurso é feito com humor, poesia e um olhar capaz de conviver com o que há de positivo e negativo no outro, em si mesmo e no conjunto da cena em que este homem se constitui psiquicamente. Trata-se de uma história real, narrada num estilo elegante, sincero e rico em detalhes. Ao longo da trama é possível perceber como um corpo sexual simbólico pode revestir um corpo biológico, sem se deixar conduzir ou se condicionar nem mesmo pela anatomia.
Boa parte dessa história da vida de João W. Nery se passa no contexto histórico da ditadura militar no Brasil (1964-1985). É neste ambiente que o autor descreve o atravessamento das ditaduras entre si: a militar, a de um gênero designado a ele desde o seu nascimento com base em seu sexo biológico, e a ditadura do Outro, tão familiar e tão estranho.
Nesta esteira, ele demonstra uma correlação entre as lutas travadas contra a morte no âmbito do laço social e histórico dos anos 70 e 80 e a sua viagem solitária em busca da sobrevivência simbólica. Considerando que, nesse período, os movimentos e lutas sociais não integravam expressamente a defesa dos direitos à diversidade de gênero.
Sujeito da linguagem
A obra nos coloca inevitavelmente na posição de escuta do sujeito. O autor, embora sendo um psicólogo de formação, não se deixa prender por referências teóricas. Parece querer apenas contar a sua viagem para alguém que saiba escutar, e neste sentido comparecer de forma instigante como sujeito de linguagem. De diferentes formas, sua escrita nos permite inevitavelmente reconhecer o que é pensado e constantemente discutido no campo psicanalítico, sobretudo acerca da verdade do sujeito e de seu constante movimento por se refazer, movido por seu desejo inegociável, base para a postura ética diante dos enfrentamentos de diversos atores, no campo jurídico, da saúde, da educação, entre outros com suas instituições.
O autor não se limita a descrever o seu processo transexualizador como resumido a intervenções cirúrgicas no real do seu corpo. Ele vai além e nos conduz, por essa sua viagem, descrevendo seus vínculos românticos, casamentos e amizades profundas. Nessas cenas, nesses encontros com o outro é possível perceber o seu constante movimento de se refazer, em diferentes montagens de sua pulsão, a partir dos seus diferentes conjuntos de significantes, ou seja, como profissional, amante e até mesmo pai. O foco dessa narrativa é, justamente, a solidão do sujeito sem um mestre, semelhante à condição de um sujeito em análise, suposto saber movido por seu esforço de se constituir conforme seu desejo, livre de todas as generalizações que o possa enquadrar nas limitadas e limitantes categorias e códigos, tais como cisgênero, transgênero, etc…
Viagem solitária é um emocionante testemunho de que o ser falante não é de forma alguma natural, no que se refere a sua identidade sexuada. Essa autobiografia é uma importante leitura para quem está disposto à escuta do sujeito, e das questões da identidade sexual.
Marcos Antônio Ribeiro Moraes é psicanalista, com formação pelo Instituto Sedes Sapientiae, professor na PUC–GO, coordenador do Ambulatório de Transexualidade do HGG-Alberto Rassi, integrante dos Seminários de Teoria Clínica Lacaniana. In: NÓS – Grupo de Estudos e Transmissão Psicanálise, Goiânia-GO.