Jason Bourne patropi: agente secreto da ditadura enganou líder do PSOL em Goiás

08 dezembro 2021 às 18h34

COMPARTILHAR
Joaquim Artur Lopes de Souza, o Ivan-Carioca, trabalhou, em novembro de 1964, para evitar reação do cacique Pedro Ludovico e do ex-governador Mauro Borges
Resenha publicada em 9 de maio de 2013
Joaquim Arthur Lopes de Souza, codinome Ivan, é tido como um dos mais “eficientes” agentes secretos da ditadura civil-militar. Sargento, atuava no Centro de Informações do Exército. No livro “A Lei da Selva” (Geração Editorial), o jornalista Hugo Studart relata: “O general Antônio Bandeira, maior ícone militar durante a guerrilha [do Araguaia], dizia a todos que adorava o Ivan. Quando o via, abria um sorriso. Era o único militar subalterno cujas opiniões Bandeira costumava escutar”. Studart sugere que Ivan apaixonou-se pela guerrilheira comunista Dinalva Oliveira Teixeira, a lendária Dina, mas, obedecendo à ordem “sem sobreviventes”, executou-a [leia mais adiante]. Sabia-se pouco sobre o agente. Agora, com o livro “Sem Vestígios — Revelações de um Agente Secreto da Ditadura Militar Brasileira” (Geração Editorial, 239 páginas), escrito a partir de supostos diários e esboço de um livro de Ivan pela jornalista Taís Morais, especialista em Guerrilha do Araguaia, fica-se sabendo um pouco mais. Taís, talvez para proteger a família do espião, prefere chamá-lo de Carioca — não citando o codinome Ivan e o nome Joaquim Artur (revelados por Studart). Há duas histórias que interessam particularmente ao leitor goiano. Soldado do Exército, Ivan-Carioca trabalhou contra uma possível resistência de Pedro Ludovico e de Mauro Borges, quando este foi afastado do governo de Goiás, em novembro de 1964. Mais tarde, enganou o engenheiro goiano Martiniano Cavalcante (Cavalcanti, no livro), principal líder do PSOL¹ em Goiás.
Possivelmente no final da década de 1980 — o agente teria sido assassinado em 1987, talvez por traficantes —, Ivan-Carioca recebeu uma ordem do coronel Braga, do Exército: “Dois homens estão organizando um partido clandestino em Goiânia, com ramificações em outras cidades. Viaje imediatamente para lá, verifique e reporte todos os detalhes”. Um dos homens era Martiniano. Ivan-Carioca vasculhou o dossiê sobre o político goiano e descobriu que tinha “ligação com um homem que supostamente dirigia uma gráfica que publicava documentos do partido clandestino em formação”.
Taís não divulga o nome do partido, o que é uma falha de seu espantoso livro-reportagem. O jornalista Renato Dias, especializado em assuntos da esquerda, conta que, em 1987, o Comitê Gregório Bezerra — que alguns de seus integrantes (ex-prestistas) chamavam de KGB — tentou fundar o Partido da Libertação Proletária. Ivan-Carioca foi escalado, possivelmente, para investigar o PLP, que naufragou antes de se tornar partido. Mais tarde, virou PSTU, que teve em Elias Vaz (hoje no PSOL²) seu primeiro e único vereador eleito em Goiânia.
Com os dados nas mãos, Ivan-Carioca deixou Brasília e, com o nome de Paulo Martins, professor universitário, “especializado em Ciências Sociais”, decidiu procurar Martiniano em Goiânia.

Na capital goiana, Ivan-Carioca ligou para Martiniano. “Solícito e sem desconfiar de nada, [Martiniano] convidou-o a ir até sua casa. Foi fácil assim.” A mulher de Martiniano informou: “Sente-se e fique à vontade; ele está terminando de redigir um documento político e não vai demorar”. “A sala parecia imensa — pela falta de móveis e jeito de aparelho —, não de lar. Apenas duas poltronas e, ao fundo, uma grande mesa de uns três metros de comprimento, cheia de papéis e livros”, conta Taís, a partir das anotações do agente. Martiniano estava escrevendo um texto para ser enviado ao Sindicato dos Professores de Goiânia (o certo é de Goiás, o Sintego foi criado em 1988).
Ao terminar o artigo, sem suspeitar de nada, Martiniano “levantou-se e foi ao encontro do tal Paulo Martins, de quem nunca ouvira falar, com a mão direita estendida. Cumprimentou-o efusivamente, bateu em seu ombro e declarou-se muito satisfeito com aquela visita de surpresa. Nada perguntou sobre as credenciais da pessoa que entrava em sua casa. Ao contrário, perguntou: ‘Em que posso ajudá-lo?’”.
Ivan-Carioca surpreendeu-se com a acolhida cordial de um jovem político que estava organizando um partido de esquerda radical. Não checou nada sobre Paulo Martins. O agente estava preocupado, com medo de ser descoberto. O socialista disse, com tranquilidade, que a ditadura perseguira as grandes cabeças intelectuais da esquerda, mas que “os comunistas poderiam voltar às atividades”.
Enquanto a mulher de Martiniano servia o café, Ivan-Carioca olhou, discretamente, os folhetos que estavam na mesa. Martiniano falou das “dificuldades financeiras do partido” e Ivan-Carioca, depois de muito ouvir, despediu-se. “A partir dali, passou a telefonar semanalmente para Martiniano Cavalcanti para falar sobre política, tentando solidificar o primeiro contato. Sempre se colocava à disposição do interlocutor, para algo que precisasse, na capital federal.”

Um mês mais tarde, Martiniano iria participar de um encontro do partido em Brasília, junto com membros do comitê central. Martiniano teria dito para Paulo Martins: “É uma excelente oportunidade para você conhecer de perto a luta”.
No encontro dos comunistas radicais, “Martiniano recebeu Paulo Martins com toda a cordialidade. Apresentou-o a outros militantes”. Ao sair do encontro, que não conseguiu fotografar nem gravar, agentes secretos seguiram Ivan-Carioca, provavelmente confundindo-o com um comunista. Com manobras radicais, escapou dos colegas.
O Jornal Opção tentou ouvir a versão de Martiniano Cavalcanti, principal líder do PSOL em Goiás, mas não o encontrou em Goiânia ou Brasília. Conversou com o vereador Elias Vaz, do mesmo partido, que forneceu os números de dois telefones do socialista — um celular e o outro de sua residência.
Mauro Borges e Pedro Ludovico
Em novembro de 1964, depois de ter apoiado o golpe civil-militar que levou Castello Branco ao poder, o governador Mauro Borges, um nacionalista de centro — nunca teve uma gota de esquerdismo no seu sangue de coronel do Exército —, foi derrubado pelo esforço concentrado das forças udenistas (família Caiado, Ary Valadão, Alfredo Nasser, entre outros) e da linha dura militar (Mauro apoiara a posse de Jango Goulart em 1961 e se tornara aliado do demonizado Leonel Brizola).

A partir das anotações de Ivan-Carioca, Taís escreve: “Pedro [Ludovico], o pai de Mauro, deu sinais de que pretendia resistir. Juntou um grupo de apaniguados, além de alguns policiais civis e militares fiéis a ele. Piorou a situação do filho. Sua atitude foi a gota d’água para Castello Branco endurecer e ordenar a operação de guerra. Aos soldados que, como Carioca, tinham sido convocados para o cerco ao governador, foi dada a informação de que deveriam estar prontos para tudo, pois se tratava de uma ação arriscada: a versão é de que havia um conflito sério em Goiânia, com envolvimento da Polícia Militar. Saíram devida e ostensivamente armados, com a seguinte ordem do comando: ‘Vamos impedir que qualquer grupamento ultrapasse o limite que estabelecermos. Fiquem na estrada e parem carros que, porventura, venham com policiais militares’”.
Na estrada, Carioca, com o apoio de seus colegas de farda, “barrava e revistava todos os veículos que pareciam suspeitos”. A reação de Pedro Ludovico e Mauro Borges era, na verdade, nenhuma. Não havia como reagir, exceto com palavras e lamentos. Acabava, em 1964, a experiência de um nacionalista que, aliado com a oligarquia ludoviquista, fez um governo planejado e mais mitificado que compreendido.
David Capistrano é o Tiradentes comunista
O dirigente comunista David Capistrano foi preso no Rio Grande do Sul e esquartejado na Casa de Petrópolis
Depois de destruir a esquerda armada, tanto a Ação Libertadora Nacional (ALN) de Carlos Marighella quanto o PC do B de Maurício Grabois e o Molipo de José Dirceu, as forças repressivas voltaram-se para o velho e moderado Partido Comunista Brasileira (PCB), conhecido como Partidão (hoje PPS³). Um de seus presos e desaparecidos mais conhecidos é o lendário David Capistrano da Costa, que participou da Guerra Civil Espanhola (1936-1939), ao lado dos republicanos. Exilado na Tchecoslováquia, retornou ao Brasil, via Uruguaiana, no Rio Grande do Sul.
Em 13 de março de 1974, David Capistrano e um companheiro foram presos. Ivan-Carioca foi um dos agentes secretos do CIE enviados a Porto Alegre para levá-lo para São Paulo e entregá-lo à Operação Bandeirantes (Taís escreve, errado, Organização). Depois, o agente recebeu ordens de encaminhá-lo para a famosa Casa de Petrópolis, de onde era difícil sair vivo.
Na Casa de Petrópolis, Ivan-Carioca e o oficial Garcia, o Boa Morte, entregam David Capistrano para “um policial militar negro”, conhecido como Pardal, e a um jovem. À noite, Garcia diz: “Olha, Carioca, se não estiver a fim, não precisa ir ao cômodo do quintal onde os meninos estão trabalhando”. Às 21 horas, um dos agentes o chamou: “Ei! Carioca! Venha aqui fora, o trabalho tá quase pronto”.
Transcrevo o assombroso texto de Taís sobre o esquartejamento de David Capistrano: “O que [Ivan-Carioca] viu ao entrar tirou seu fôlego. Não, não podia ser verdade… […] Era sangue por todo o lado, impregnando o ambiente com aquela textura pegajosa do processo de coagulação. O líquido formava pequenas poças no chão, mas nem sinal de um corpo humano íntegro. Cheiro de carne e vísceras. Morte recente. Sabia distinguir muito bem. Afinal, onde estava o preso submetido à tamanha ferocidade? […] Chocado, sem articular uma só palavra, o estômago engulhado, percebeu que as partes, amontoadas num canto, estavam a ponto de serem colocadas em sacos plásticos. […] Lentamente, levantou a cabeça em direção a algo pendurado em ganchos. A princípio não distinguiu bem o que era. Um tronco, dividido ao meio. As costelas de Capistrano pendiam do teto, e ele, reduzido a pedaços como se fosse uma carcaça de animal abatido, pronta para o açougue. Não pôde evitar a imediata associação com uma câmara frigorífica, mas expondo um ser humano, como ele”.
Teoria da conspiração implica José Dirceu como agente duplo
O livro-reportagem de Taís Morais é muito bom e as histórias, embora não inteiramente documentadas, são críveis. Há problemas, felizmente poucos. O ex-ministro José Dirceu me processou, há alguns anos, porque publiquei uma entrevista (gravada) do historiador Luís Mir, na qual se dizia que o ex-dirigente estudantil (e, mais tarde, presidente nacional do PT) havia sido um agente duplo e possivelmente um dos responsáveis pela queda do Movimento de Libertação Popular (Molipo). Na verdade, houve uma confusão: o petista realmente integrava um grupo de esquerda brasileiro e era ligado ao governo cubano. Mas nunca foi agente da ditadura. Numa entrevista para o Jornal Opção, José Dirceu apresentou sua versão. O fato é este: não há nenhuma prova de que José Dirceu tenha sido agente duplo, ou seja, que tenha trabalhado para os militares para salvar a própria vida.
A história volta à tona no livro de Taís, “Sem Vestígios”, e, de novo, sem qualquer documentação e com uma informação titubeante do coronel Lício Augusto Maciel. Na página 100, a jornalista escreve que, do Grupo da Ilha, ou Grupo dos 28, ou Grupo Primavera, apenas dois esquerdistas sobreviveram: Ana Corbisier e José Dirceu, o Daniel. “Alguns militares afirmam que Daniel foi agente duplo e contribuiu para a queda de quase todos os militantes que estiveram em Cuba.” Numa minúscula nota de rodapé, apresentada como “nota da autora”, Taís escreve: “Segundo as notas de Carioca, depoimento de alguns militares e às memórias do coronel Lício — naqueles idos [década de 1970], major —, Daniel teria sido o agente duplo e, antes de morrer, Jeová informara este nome como o de quem havia traído o Molipo”.
O depoimento de Lício Maciel, intitulado de “Confidências de um coronel” (página 228), parece ser esclarecedor, mas não é, pois permite dúvidas. O militar conta a história da morte do guerrilheiro Jeová de Assis Gomes, do Molipo. Em janeiro de 1972, Lício e sua equipe estão no sul do Bico do Papagaio, à cata de integrantes do Molipo. Um agente atira no esquerdista. “Jeová morreu na noite do incidente, depois de dizer quem era o traidor do Molipo, que anotei e incluí no relatório de final de missão. Embora mal conseguisse falar, Jeová balbuciou e Boanerges [de Souza Massa] ‘traduziu’. Não me lembro, infelizmente, desse detalhe importantíssimo: o nome. Acho que era Zé Dirceu, o Daniel. Talvez alguém da equipe se lembre”. Taís não procurou “alguém da equipe”. Um pouco antes, Lício diz: “Se Cid estivesse [na operação], acho que saberia o nome do traidor dito por Jeová”. Convenhamos, “acho” não fundamenta uma acusação tão grave quanto a feita por Lício e transcrita por Taís.
Se tem provas, documentos e outros testemunhos, o coronel Lício deveria apresentá-los. Ao dizer “acho” e que não se lembra do nome, mesmo assim citando José Dirceu, desqualifica integralmente seu depoimento, que só pode ser chamado de leviano, embora jornalistas competentes garantam que Lício “não mente” e não tem o hábito de inventar situações, ao contrário do coronel que ganhou apelido de passarinho. Mesmo assim, para que possa ser levado a sério por historiadores e, mesmo, leitores leigos, precisa qualificar melhor suas acusações. (Um livro excelente é “O Coronel Rompe o Silêncio”, do jornalista Luiz Maklouf Carvalho, no qual Lício conta, de modo crível, sua atuação no combate à Guerrilha do Araguaia.)
Lício Maciel esclarece a morte de Arno Preis, em Paraíso, hoje do Tocantins. “Arno tinha matado um policial militar e ferido gravemente outro. Morreu feito cachorro doido espumando até pelos cotovelos. Usava documento com o estapafúrdio nome Patrick McBund Comik.”
Boanerges de Souza Massa, o Felipe, a respeito do qual Lício faz uma insinuação de conotação sexual, havia militado na Ação Libertadora Nacional (Taís erra e apresenta a ALN como “Aliança”) e havia aderido ao Molipo, foi preso em Pindorama, na época Goiás e hoje Tocantins. Foi apresentado como “traidor” do Molipo, mas Carioca, segundo Taís, sabia que se trata de uma calúnia. Boanerges “não” traiu a esquerda. O agente secreto garante que, depois de executado, o guerrilheiro foi enterrado “em algum lugar próximo a Formosa, em Goiás”.
Embora Taís não tenha citado bibliografia, é provável que tenha consultado livros para checar as versões de Carioca sobre vários fatos. Num caso, pelo menos, faltou verificar a bibliografia, sobretudo os livros de Carlos Eugênio Sarmento da Paz e Jacob Gorender. O primeiro foi o último líder da ALN e escreveu “Viagem à Luta Armada — Memórias Romanceadas” (Civilização Brasileira, 228 páginas) e “Nas Trilhas da ALN” (Bertrand Brasil). Gorender escreveu o magnífico “Combate nas Trevas”. Carlos Eugênio, fonte categorizada, revela, com extrema franqueza, que comandou o justiçamento de Márcio Leite Toledo porque ele queria sair da guerrilha, e a cúpula da ALN avaliou que não era seguro. Como Márcio Toledo radicalizara, os guerrilheiros o mataram.
Taís, baseada em informações de Ivan-Carioca, relata que Márcio Toledo foi “fuzilado por companheiros, em 1971” por ter sido considerado “suspeito de trair [Joaquim] Câmara Ferreira [substituto de Carlos Marighella no comando da ALN]. Suspeita infundada, e que praticamente liquidou a ALN”. Caberia a Taís uma consulta ao músico Carlos Eugênio, que mora no Rio de Janeiro, e poderia esclarecer a questão. Aliás, esclarecida num de seus livros.4
O espião que saiu do calor não esclarece morte da lendária Dina
Ao contrário do livro de Hugo Studart, o livro de Taís Morais nada acrescenta sobre a morte de Dinalva Conceição Oliveira Teixeira, subcomandante da Guerrilha do Araguaia
O must do livro “Sem Vestígios”, de Taís Morais, é a parte 3, “Caçada final no Araguaia” (além da assombrosa história do esquartejamento de David Capistrano). Joaquim Artur Lopes de Souza, o Ivan-Carioca, agente secreto do Centro de Informações do Exército (CIE), atuou, com energia, no combate à Guerrilha do Araguaia. Era do grupo que tinha a confiança do general Antônio Bandeira e não se entusiasmava com as firulas do major Curió. Antes de expor seu relato, registro uma história que não é contada no livro, talvez porque Ivan- Carioca não a tenha anotado, por ser constrangedora. É a história da morte de Dinalva Conceição Oliveira Teixeira, a lendária Dina, militante do Partido Comunista do Brasil (PC do B) e subcomandante da Guerrilha do Araguaia (iniciada em 1972 e liquidada em 1974).
Em “A Lei da Selva”, um dos mais equilibrados livros sobre a Guerrilha do Araguaia, Hugo Studart (mestre em história pela UnB5) conta que Ivan-Carioca matou Dina, que havia sido presa em junho de 1974. No início de julho, o então capitão Sebastião de Moura, o dr. Luchini ou Curió, mandou “fazer” a guerrilheira. Dina foi levada de helicóptero para a mata. O sargento do Exército Joaquim Arthur, o Ivan, era o comandante da equipe de três homens.
Ao descerem do helicóptero, Dina perguntou: “Vocês vão me matar agora?” Ivan-Carioca respondeu: “Não, mais na frente um pouco”. Os dois conversavam cordialmente, segundo relatou um militar a Studart. Adiante, numa clareira, Dina perguntou: “Vou morrer agora?” Ivan assentiu: “Vai, agora você vai ter que ir”. Dina replicou: “Eu quero morrer de frente”. Não transmitiu medo. O agente “se aproximou da guerrilheira, parou a dois metros de distância e lhe estourou o peito com uma bala de pistola calibre 45. O tiro pegou um pouco acima do coração. O impacto jogou Dina para trás. Levou um segundo tiro na cabeça. Foi enterrada ali mesmo”. O livro de Taís diz que Ivan-Carioca saiu à procura de Dina, mas nada acrescenta de extraordinário. O agente tentou, como se vê, manter sua ficha um pouco limpa. Faltou a Taís recorrer à bibliografia.
O sargento Ivan-Carioca e o coronel Lício Maciel operam a história do combate à Guerrilha do Araguaia com a finalidade de reduzir a importância do major Curió. Há indícios de que, enquanto homens como Lício Maciel, Ivan-Carioca, Régis (José Reis, agente do CIE e pai da jornalista Taís Morais, revelou no sábado, 13, o jornalista Vasconcelo Quadros, do “Jornal do Brasil”. Lício disse ao “JB” que a principal fonte de Taís deve ter sido seu pai, que era muito ligado a Ivan. Na página 119, ela elogia o pai, sem dizer que é seu pai), Cid (primeiro-sargento) e J. Peter-Javali Solitário (subtenente João Pedro do Rego) e Nilton Cerqueira (coronel) lutavam de verdade, Curió se comportava como marqueteiro. Ele “destruiu” a Guerrilha do Araguaia. Os últimos livros sobre o assunto provam que não foi bem assim. “Curió desejava ficar famoso de qualquer jeito, pensava o irritado Carioca”, escreve Taís.
Tortura
Ivan-Carioca relata que vários camponeses foram torturados pelos militares para que dessem informações sobre os “paulistas”, como os guerrilheiros eram conhecidos localmente. “Carioca participava de interrogatórios violentos”, anota Taís. O coronel Lício Maciel, na época major, comandou o grupo que prendeu os primeiros guerrilheiros, José Genoíno, Eduardo Monteiro Teixeira e Rioko Kaiano (depois, mulher de Genoíno). “Cortem o mal pela raiz”, era a ordem expressa do general-presidente Emilio Garrastazu Médici. Mas, no início, os militares não matavam os prisioneiros. Genoíno e Rioko estão vivos.
Mais tarde, a ordem expressa dos superiores era “sem sobreviventes, meus caros, sem sobreviventes”. No fim de 1973, o guerrilheiro Tobias Pereira Junior, o Josias, se entregou, desiludido com a luta do PC do B. Ele “dava informações quando era preciso encarar novos interrogatórios — checagem de detalhes antes não muito claros”, na versão apresentada pelo agente. Studart acrescenta: “Ficou quase dois meses colaborando com os militares. Desenhou os mapas da região e ajudou a localizar remanescentes da guerrilha”. Segundo o relato de Ivan-Carioca, se Tobias “pudesse mesmo ser liberado, como na época de Antônio Bandeira [general], com certeza tentaria viver sem envolvimentos com o pessoal da luta armada”. Mesmo assim, dizendo que “ordens são ordens”, Ivan-Carioca e seus companheiros o mataram. No relato de Studart, um dos militares, Fernando, não teve coragem de matar Tobias. “Ele já não oferecia nenhum tipo de ameaça pra gente.” A execução de Tobias parece ter mexido com os nervos de Ivan-Carioca, se o relato descrito por Taís for verdadeiro — pelo menos bate com o de Fernando, ouvido por Studart.
Ivan-Carioca diz que Honestino Guimarães foi morto no Araguaia
Preso e torturado no tempo da ditadura civil-militar, o jornalista e historiador Jarbas Silva Marques, do Instituto Histórico e Geográfico de Brasília, é um dos maiores conhecedores da história das guerrilhas brasileiras. Na terça-feira, 17, disse ao Jornal Opção, em Brasília, que o goiano Honestino Guimarães, presidente da União Nacional dos Estudantes e estudante de geologia na Universidade de Brasília, foi assassinado no Rio de Janeiro, pelo grupo do delegado Sérgio Paranhos Fleury. José Carlos da Mata Machado havia sido delatado aos homens de Fleury pelo cunhado, Gilberto Prata, residente em Goiânia e supostamente “protegido” de um conhecido esquerdista. Prata vendeu-se a Fleury. Por grana e para salvar a própria pele. Honestino foi preso porque mantinha contato com José Carlos.
A história narrada por Taís, a partir dos apontamentos de Ivan-Carioca, apresenta outra versão. Honestino “foi preso em outubro de 1973, no Rio de Janeiro, e levado para Brasília, de onde não tardou muito a ser levado a outro destino. Era um dos passageiros do jatinho da empresa Líder, contratado pela Presidência da República, e que levou quatro militantes de esquerda para a cidade de Marabá, em pleno Araguaia: dois brasileiros e dois estrangeiros, um francês e outro argentino. Carioca, mais uma vez, foi testemunha ocular. Não sabia de onde o avião decolara, mas viu muito bem quem saiu dele. Quem os escoltava era o coronel Jonas, da Aeronáutica, acompanhando por quatro agentes da equipe. O comandante da Casa Azul os recebeu numa caminhonete. Encostou bem perto da aeronave, de onde os quatro prisioneiros foram rapidamente retirados e amontoados no interior do veículo. Todos estavam dopados e com capuz. […] A intenção era bem clara: levar aquelas pessoas ao interior da selva no Araguaia para matá-las. […] Quando os presos chegaram à Casa Azul, Carioca reconheceu perfeitamente o rosto de Honestino, então com 26 anos. […] Ouviu, então, o coronel Jonas dizer ao comandante da área que o outro rapaz era Eduardo Leite, o Bacuri”, da Ação Libertadora Nacional.
As versões apresentadas, até agora, dão como certo que Bacuri foi barbaramente torturado e morto em São Paulo. Os militares o consideravam um quadro extremamente violento e perigoso. Ivan-Carioca integrou o grupo de execução. Um dos prisioneiros, supostamente francês, teria dito: “Pô, cara, não faz isso comigo não! Deixa que eu mato os três pra vocês, e ainda sirvo de informante para o que quiserem”. Um dos executores tinha o codinome de Paraíba e sua descrição parece com a do sargento Santa Cruz, aliado do major Curió. Os “grupos de extermínio tinham, como a equipe de Carioca, um acordo tático de manter suas identidades sob sigilo absoluto, em qualquer circunstância. Abrir o bico significava morte certa. Alguém se disporia a fazer o ‘serviço’”, escreve Taís.
Um cabo costumava dizer, ao ser perguntado o que acontecera, ao voltar de caçadas proveitosas: “Entrou pra a VPC, a Vanguarda Popular Celestial”.
Corpos de guerrilheiros foram queimados na Serra das Andorinhas
O depoimento do sargento do Exército Joaquim Artur Lopes de Souza confirma entrevista do coronel Pedro Cabral, da Aeronáutica, ao Jornal Opção
O que fizeram dos corpos dos guerrilheiros do Araguaia? O livro “Sem Vestígios”, de Taís Morais, sustentado pelo depoimento do agente secreto Joaquim Artur Lopes de Souza, codinomes Ivan e Carioca, fornece uma história crível. A respeito dos documentos da Guerrilha do Araguaia, Taís escreve: “Alguns coronéis, e até mesmo generais, que passaram pelos serviços de informações copiaram registros que depois foram apagados, e fizeram arquivos particulares. Muito bem guardados”. O caso mais notório é o general Antônio Bandeira. A filha de Bandeira, Márcia, repassou um baú cheio de documentos para o jornal “O Globo”, que publicou uma série de reportagens, com informações privilegiadas, sobre a guerrilha.
As primeiras remoções de cadáveres ocorreram porque, ao descobrir as covas, o povo da região do Araguaia começou a colocar velas e cruzes. “Tão logo encontraram as velas, os agentes voltaram à Casa Azul. Informado, o major Curió imediatamente mandou os homens ao local, levando pás, sacos e outros instrumentos necessários ao trabalho que lhes ordenou: cavar e retirar os restos mortais, colocando-os na caminhonete que ele mesmo usava em serviço. Ao chegar às margens do Rio Araguaia, deu ordens para que somente o seu veículo entrasse na balsa. O cheiro que exalava era fétido. Contaminava tudo em volta. Ninguém ficou imune à cena e ao fedor, um misto de morte com pavor. […] Muito tempo depois, [Ivan-Carioca] foi informado que o destino teria sido uma imensa vala, que mais tarde viraria pira de cremação, na Serra das Andorinhas.”
A Operação Limpeza foi preparada e executada, segundo Ivan-Carioca, pelo Centro de Informações do Exército (CIE) e o Centro de Informações da Aeronáutica (Cisa). “Agora, não mais porque as disfarçadas sepulturas pudessem atrair romarias, mas pela urgência em eliminar provas de uma ação que chegou à barbárie”, diz Taís (não se faz referência aos justiçamentos praticados pelos comunistas, assunto que é descrito por Hugo Studart em “A Lei da Selva”).
“Para dar conta desse terrível recado, foram constituídas duas diferentes equipes. Uma subiu a Serra das Andorinhas e ficou responsável por cavar o buracão. Outra se espalhou pela área à procura das sepulturas conhecidas. Era preciso contar com agentes que haviam sido destacados para as execuções e posterior translado de despojos. Assim, Carioca lá estava. […] O comando escolheu as pessoas a dedo. Só voltou para a área quem sabia mesmo localizar as covas, porque participara de missões in loco ou sabia se virar por ali, caso tivesse indicações gerais de ‘sepulturas’”, conta Taís.
Num local conhecido como Some Home, nas proximidades da Fazenda Consolação e do Rio Saranzal, o grupo de Carioca descobriu a cova de quatro guerrilheiros, enterrados por paraquedistas. “Terrível surpresa: os corpos, envolvidos em plástico, tinham literalmente derretido. No mesmo instante, o ar ficou totalmente impregnado de um fedor insuportável de carniça. Era um caldo viscoso, onde se misturavam restos de vísceras, ossos, pelos, unhas e sabe-se lá que outros humores próprios da decomposição, quando contida em um recipiente impermeável. […] Não havia estômago que pudesse resistir. Vendo seus homens no limite, Carioca obrigou o camponês que os guiou a descer na cova e ensacar o material putrefato. Sem alternativa, ele cumpriu a asquerosa tarefa, com o agravante de ter se desequilibrado na beirada, caindo pesadamente sobre a horripilante e disforme massa.”
O corpo da guerrilheira Suely Yumiko Kanayama, a Chica, foi descoberto por indicações do sargento Santa Cruz. Ela foi enterrada num local conhecido como Bacaba. “Os tatus haviam furado a cova, farejado a presença de alimento. Puxaram partes dos restos mortais para fora, comeram a carne e deixaram os ossos. Ainda havia claras marcas de patas ao redor. […] Nem sempre, porém, as equipes encontravam o que procuravam. […] As diferentes localizações, por motivos óbvios de sigilo absoluto, nunca foram documentadas.”
“O que muita gente desconhecia”, escreve Taís, baseada no relato de Ivan-Carioca, “até determinado momento, é que houve um cuidado extra no afã de destruir provas do que realmente houve no Araguaia. Depois do retraslado de corpos de onde estavam originalmente, para aquela área mais distante [a Serra das Andorinhas], muitos foram amontoados em uma cova muito profunda, forrada e depois coberta com várias camadas de pneus, depositando os cadáveres no meio. Em seguida, com o uso de imensas quantidades de gasolina, atearam fogo à pilha, até que tudo se transformasse em cinzas, que a poeira dispersou ou o vento levou. Houve, ainda, uma terceira etapa. A cova foi, então, coberta com terra, para em seguida receber mudas de árvores e sementes de capim. Uma verdadeira maquiagem na geografia para que ninguém jamais fosse capaz de descobrir o que houve ou quem foi o responsável por aquilo. […] Os guerrilheiros viraram adubo macabro, certamente, na Serra das Andorinhas”. O coronel Pedro Cabral — um dos pilotos da Aeronáutica que transportaram os corpos para a Serra das Andorinhas —, disse ao Jornal Opção a mesma coisa e tentou localizar os corpos, com uma equipe de técnicos, mas não conseguiu.
A suposta overdose do ex-presidente Fernando Collor
Há uma história que não mereceu reportagem da jornalista Taís Morais, e sim uma nota de rodapé, na página 89: “Em 1990, Carioca foi informado que, durante sua gestão na Presidência da República, Fernando Collor de Mello fora internado sigilosamente no Hospital das Forças Armadas, onde deu entrada quase morto por overdose de cocaína”.
Se verdadeira, a história merecia mais do que nota de rodapé. Taís não foi ao Hospital das Forças Armadas em busca de informações. Se foi, e não obteve informações, não esclarece o leitor. Da forma que foi publicada, fica parecendo maluquice, boato. Por mais que Ivan-Carioca tenha sido um agente criterioso, suas informações deveriam ter passado por crivo rigoroso. Espiões são notórios plantadores de boatos e distorções a respeito de pessoas.
Ivan-Carioca relata que uma vez seguiu o ex-senador e ex-presidente do Supremo Tribunal Federal Maurício Corrêa. Ele flagrou um encontro amoroso de Corrêa com “uma mulher muito bonita”.
Gabinete de Médici foi grampeado por aliados
Um dos pontos fortes do livro de Taís Morais é o depoimento do coronel Lício Maciel a respeito de um grampo feito no gabinete do presidente Emilio Garrastazu Médici. Lício cuidava da área de telecomunicações do Centro de Informações do Exército (CIE), “que contava com os melhores e mais modernos sistemas e equipamentos de escuta e gravação. Certa vez, o presidente Medici iria receber, no Palácio do Planalto, a visita de um importante senador. Por algum motivo queria gravar a conversa”.
O mais espantoso é narrado por Lívio: “Terminada a reunião, gravação em mãos, a fita foi entregue à Presidência. No entanto, o que era para ser uma ação isolada, continuou a ser feita cotidianamente na sala de reuniões do presidente Medici. A linha telefônica secreta captou coisas absurdas. Quem acabou com o gracejo das conversas foi o ministro do Exército, Orlando Geisel. Num momento de distração, sua assessoria revelou, num despacho, um fato impossível de se conhecer sem que se tivesse acesso às conversas particulares de Médici. Quando o assunto veio à tona, o capitão Joubert perguntou-me se tudo estava sendo gravado. A resposta foi bem direta: ‘Evidentemente que sim, você não mandou?’ ‘Então pode parar’, ordenou ele”.
Os homens dos porões estavam tão à vontade que passaram a resolver problemas particulares usando a estrutura das Forças Armadas. O então major Gilberto Zenkner, o Doutor Nunes, durante uma viagem do general Antônio Bandeira, assumiu a 3ª Brigada de Infantaria Motorizada. Zenkner mandou seus subordinados, entre eles Carioca, sequestrarem Geraldo Bordon, da família proprietária do Frigorífico Bordon, porque ele lesara um amigo.
Os militares sequestraram Geraldo Bordon e o levaram para uma chácara nas proximidades de Luziânia. Ao perceber a armação de Zenkner, Ivan-Carioca contou a história ao general Antônio Bandeira, que mandou soltar o parente remediado dos empresários ricos.
Taís Morais e Hugo Studart garantem que Ivan-Carioca foi morto. Taís diz que a machadada; Studart, a pauladas. Ele estaria vivo? Se morreu em 1987, como pode ter assinado um texto em 1990? Não pode, claro. Taís está escondendo alguma coisa? Não se sabe.
Errinhos: Taís diz que Ivan-Carioca tinha olhos verdes e, depois, azuis. Studart diz que o “galã” tinha olhos verdes. O general Bandeira não morreu em 1966, e sim em 2005. No índice remissivo, Márcia, filha de Bandeira, é apresentada como filha de Ivan-Carioca.
Notas
¹ Martiniano Cavalcanti não é mais filiado ao PSOL. Em dezembro de 2021, ele é do PSB.
² Em dezembro de 2021, o deputado federal Elias Vaz está filiado ao PSB.
³ O PPS não existe mais. Seu novo nome é Cidadania. O principal líder continua o mesmo: Roberto Freire.
4 Em 2021, saiu o livro “Injustiçados” (Companhia das Letras), que conta a história de Márcio Toledo.
5 Mais tarde, Hugo Studart apresentou sua tese de doutorado, na UnB, publicada em livro com o título de