James Salter sugere que o Grande Romance Americano é Huckleberry Finn, de Mark Twain
26 março 2014 às 17h47
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A repórter Inés Martín Rodrigo, do jornal “ABC”, de Madri, entrevistou longamente o escritor americano James Salter, autor de “Última Noite e Outros Contos” (Companhia das Letras, tradução de Samuel Titan Júnior). A entrevista, com 17.112 caracteres (o que prova que os espanhóis valorizam o texto longo de qualidade), saiu na edição de 3 de março deste ano. Para lê-la integralmente, clique aqui.
A entrevista foi feita a propósito do novo romance de Salter, “Todo lo que hay” (“All That Is”, de 2014). Depois de longo inverno, ele diz que está de volta ao batente — tanto que o título da entrevista é: “Tenho 88 anos e estou pronto para começar de novo”. Recomendo que o leitor inicie a leitura da obra de Salter por suas belíssimas memórias, “Dias Intensos — Reminiscências” (Editora Imago). Seus livros são de alta qualidade; Salter merece ser mais conhecido e editado no Brasil.
Traduzi trechos da entrevista, às vezes mais adaptando, por isso, no parágrafo anterior, forneço o link para o leitor que quiser ler a entrevista inteira e, ele próprio, fazer uma versão mais precisa das falas da entrevistadora e do entrevistado.
Inés Martín Rodrigo — O fracasso é uma possibilidade na vida do escritor?
James Salter — Se não tem certo reconhecimento pode ser que o escritor se sinta fracassado. Mas pode não ser um fracasso. Pense em Emily Dickinson: nunca publicou nada em vida e se converteu em uma das grandes poetas americanas.
Inés — O que pensa do e-book?
Salter — Não sei muito as respeito. Não uso e-reader. Minha mulher tem um, aprecia e me parece bom. Mas, nos livros de papel, posso escrever, é uma necessidade, gosto de tocar o papel.
Inés — O livro em papel sobreviverá?
Salter — Bem, não sei. Isto quem terá de averiguar é você. Creio que sim, porque há algo agradável nos livros, inclusive seu cheiro. Tocar na tela do Kindle é como estar em um hotel, onde tudo parece muito agradável, mas nada disso é seu. O livro eletrônico não é seu.
Inés — “Todo lo que Hay” tem recebido muito boas críticas. Aos 88 anos, que importância tem a crítica para o sr.?
Salter — Neste momento de minha vida, uma boa crítica não é mais importante do que outra que não é tão boa. Com isso não quero dizer que seja indiferente às críticas. Todo mundo gosta de receber elogios. Quem escreve quer ser lido e admirado. Sou perfeitamente humano, mas sou um homem velho.
A entrevistadora diz que, depois de 30 anos sem publicar um romance, Salter está de volta ao batente, e publicando um livro de qualidade. Sua resposta:
Salter — Estou pronto para recomeçar. Mas um escritor precisa de tranquilidade para escrever, eu ao menos necessito de silêncio, calma, tranquilidade.
O escritor afirma que, no momento, tem dificuldade de encontrar um lugar silencioso. 2013, afirma, foi “um ano muito agitado”. Ele revela que, quando está escrevendo, gosta de solidão, “Mas não gosto de viver isolado.” Só aprecia a solidão quando a busca, em geral para escrever seus contos e romances.
Inés — O sr. escreveu romances, relatos, jornalismo de viagens, memórias e até um livro de culinária com sua mulher. Porém, quem é James Salter?
Salter — Sou um prosador. É como me sinto mais seguro. Meu único arrependimento, ao longo de todos esses anos, foi não ter escrito mais. É sempre um prazer escrever coisas, inclusive pequenas. Encontro um grande prazer escrevendo, inclusive no ato físico de escrever. É um desfrute, um gozo.
Inés — Quando encontrou sua voz?
Salter — Acredito que foi em “Juego y Distracción” [no Brasil, “Um Esporte e um Passatempo”, Editora Imago]. Mas há pessoas que tentam me convencer que encontrei minha voz desde o princípio. Não sei. Em “Um Esporte e um Passatempo” senti que sabia como escrever.
Inés — Em “Quemar los Diás” [no Brasil, “Dias Intensos — Reminiscências”], suas memórias, o sr. disse: “A morte dos reis pode ser contada, mas não a de um filho”.
Salter — Eu nunca pude usá-la como material narrativo. Não pude escrever sobre a morte de minha própria filha. [Uma filha de Salter morreu eletrocutada em Aspen. Ele encontrou o corpo.]
Inés — Pensa em um leitor em particular quando escreve?
Salter — Penso sobretudo nos leitores jovens. Estão cheios de vida, são curiosos e inteligentes, porque, do contrário, não teriam ouvido falar de certos livros.
Inés — Que são o amor e o sexo para um escritor como o sr.?
Salter — Creio que a pessoa mais afortunada é aquela que tem amor, paixão e sexo… Sobretudo se tem os três ao mesmo tempo [risos de Salter]. São os ingredientes básicos da vida.
Inés — De volta ao mundo anglo-saxão: por que há tanta obsessão com a ideia do Grande Romance Americano?
Salter — Não sei quem formulou essa frase pela primeira vez, mas os escritores que surgiram depois da Guerra [Segunda Guerra Mundial, 1939-1945], ao menos a minha geração (Saul Bellow e Philip Roth, entre outros), tinham a ideia de que o Grande Romance Americano ainda estava por ser escrito e um deles poderia escrevê-lo. A ideia persiste, mas não sei se existe tal coisa. O Grande Romance Espanhol é provavelmente “Dom Quixote” [Salter diz “O Quixote”, de Miguel de Cervantes] e se há um Grande Romance Americano é “Huckleberry Finn” [de Mark Twain]. Ainda há autores que acreditam que podem escrevê-lo [ou alcançá-lo, o que confere um sentido mais dúbio à fala de Salter. Convém ressaltar que, na tradução, uso “é”, mas, na verdade, o escritor prefere seria “Huck Finn”].
Inés — Quando Jonathan Franzen lançou “Liberdade”, a revista “Time” publicou o título: “O grande romancista americano”.
Salter — Bom, é demasiado cedo para julgá-lo. Não o li.
(“Como tanta gente, eu sonhava em escrever o Grande Romance Americano.” Quem disse isto? Norman Mailer, Truman Capote, John Updike? Nada disso. A frase é de Jacqueline Kennedy. A história está contada na página 30 do livro “Jackie Editora — A Vida Literária de Jacqueline Kennedy Onassis” (Record, 432 páginas, tradução de Clóvis Marques), de Greg Lawrence. Felizmente, a obsessão americana não é de todos os países. Depois de “Memórias Póstumas de Brás Cubas”, de Machado de Assis, de “Vidas Secas”, de Graciliano Ramos, e de “Grande Sertão: Veredas”, de Guimarães Rosa, ninguém parou de escrever e pensou, certa e seriamente, em escrever o Grande Romance Brasileiro.)