Isabela Boscov volta à “Veja” e prova que é a maior crítica de cinema das revistas brasileiras

02 novembro 2015 às 11h17
COMPARTILHAR
Sem firulas acadêmicas, a crítica examina os filmes, sempre vistos como entretenimento, de maneira impecável, com análises quase sempre precisas
Há críticos literários que são citadores contumazes de outras obras críticas. Fica-se com a impressão, às vezes, de que nem leram as obras comentadas. Aparentemente leram só as críticas e fazem seus comentários — em geral, curtos e menores do que as citações — a partir delas. Não dá para ignorar a tradição crítica, obviamente, mas o analista tem o dever de apresentar suas ideias, mesmo se miseráveis, a respeito do que comenta. O americano Harold Bloom, de 85 anos, é um crítico de primeira linha porque ler, de fato, aquilo que analisa. Sua paixão pelos livros, não exatamente pelas publicações críticas, é que convence as pessoas a lerem suas obras e as obras examinadas. A crítica de cinema não é diferente. Muitos dissecam os filmes diretamente, mas há aqueles que preferem citar o que mencionaram a respeito em jornais e revistas mais conhecidos do país ou do exterior. Algumas críticas parecem “traduções” — quase fiéis — do que saiu em outras publicações.
Há casos de críticos que comentam os filmes da maneira mais ampla possível (no caso dos veículos impressos, o limite de espaço quase mata a crítica decente), extraindo mais deles do que mesmo cinéfilos mais atentos percebem. A “Veja” estava publicando críticas sem assinatura, mas com o estilo da excelente crítica Isabela Boscov. Sim, a jornalista tem estilo, não escreve como se fosse um robô. Na edição que está nas bancas, Isabela Boscov volta a assinar resenha na revista. Agora, como colaboradora.
Isabela Boscov comenta, em “Coração quente, sangue frio”, o filme “007 Contra Spectre”. A resenha explica o filme, não conta tudo — ao contrário do chato que senta atrás da gente nos cinemas e, tendo assistindo o filme antes, vai antecipando a história para a namorada — e, sobretudo, convida a vê-lo.
Pouco ou nada dada a firulas acadêmicas, Isabela Boscov sabe que cinema é entretimento para 98% dos espectadores. Só 2%, se tanto, acreditam que cinema é arte e escrevem mais para justificar isto do que para entender os filmes e convidar os indivíduos a vê-los. Críticos de matiz acadêmico escrevem para seus pares — pregam para convertidos —, não para o leitorzão comum, aquele vai ao cinema para se divertir, para duas horas de catarse.
“O Bond de Daniel Craig é mais ativo e propulsivo que todas as outras cinco encarnações do personagem somadas”, anota Isabela Boscov. Ela percebe um James Bond “suando em bicas, a transpiração escorrendo por seu rosto e encharcando o colarinho”. Os outros James Bonds parecem não suar, mesmo quando lutam com dezenas de adversários, pulam muros e correm. Permanecem elegantes como se estivessem participando de uma festa no palácio da rainha Elizabeth.
A sintonia fina entre o diretor Sam Mendes e a equipe de John Logan é realçada, e com acerto. “Graças à afinação desse time, há três anos a série 007 celebrou seu cinquentenário com a melhor, mais urgente, mais surpreendente e mais impactante de todas as aventuras do agente secreto. Em ‘Skyfall, Daniel Craig e seu personagem se entenderam de vez — com uma atração mútua tão elétrica que dá para dizer, sem apanhar dos fãs de Sean Connery, que Craig suplantou o Bond original.” Observe que a crítica não menciona Roger Moore — outro James Bond eventualmente impecável, porém ainda mais glacial do que Sean Connery.
Sam Mendes e John Lagan unem “escapismo com atualidade política” à “visceralidade de Craig” com “precisão”, sugere Isabela Boscov. A “fúria fria” é a “contribuição definitiva” de Daniel Craig “ao personagem”.
“Se há arte ainda mais difícil que a de ser Bond, é a de escolher a hora certa para deixar de sê-lo”, conclui Isabela Boscov. Um dia, talvez próximo, Daniel Craig deixará de ser James Bond — como Sean Connery, George Robert Lazenby, Roger Moore, Timothy Dalton e Pierce Brosnan.
Nos jornais, Isabela Boscov tem rivais de peso, como Luiz Carlos Merten, Luiz Zanin Oricchio, Inácio Araújo (o decano permanece como o crítico-referência, e seu texto é o mais, digamos, literário), Sérgio Rizzo Ricardo Calil e Tacilda Aquino. Mas, em termos de revistas, não tem nenhum páreo. Ninguém escreve tão bem, com rara clareza e sem baixar o nível, para o público médio do país.