Sem firulas acadêmicas, a crítica examina os filmes, sempre vistos como entretenimento, de maneira impecável, com análises quase sempre precisas

Daniel Craig em Spectre 1

Há críticos literários que são citadores contumazes de outras obras críticas. Fica-se com a impressão, às vezes, de que nem leram as obras comentadas. Aparentemente leram só as críticas e fazem seus comentários — em geral, curtos e menores do que as citações — a partir delas. Não dá para ignorar a tradição crítica, obviamente, mas o analista tem o dever de apresentar suas ideias, mesmo se miseráveis, a respeito do que comenta. O americano Harold Bloom, de 85 anos, é um crítico de primeira linha porque ler, de fato, aquilo que analisa. Sua paixão pelos livros, não exatamente pelas publicações críticas, é que convence as pessoas a lerem suas obras e as obras examinadas. A crítica de cinema não é diferente. Muitos dissecam os filmes diretamente, mas há aqueles que preferem citar o que mencionaram a respeito em jornais e revistas mais conhecidos do país ou do exterior. Algumas críticas parecem “traduções” — quase fiéis — do que saiu em outras publicações.

Daniel Craig em Spectre com um Bond Girl

Há casos de críticos que comentam os filmes da maneira mais ampla possível (no caso dos veículos impressos, o limite de espaço quase mata a crítica decente), extraindo mais deles do que mesmo cinéfilos mais atentos percebem. A “Veja” estava publicando críticas sem assinatura, mas com o estilo da excelente crítica Isabela Boscov. Sim, a jornalista tem estilo, não escreve como se fosse um robô. Na edição que está nas bancas, Isabela Boscov volta a assinar resenha na revista. Agora, como colaboradora.

Isabela Boscov comenta, em “Coração quente, sangue frio”, o filme “007 Contra Spectre”. A resenha explica o filme, não conta tudo — ao contrário do chato que senta atrás da gente nos cinemas e, tendo assistindo o filme antes, vai antecipando a história para a namorada — e, sobretudo, convida a vê-lo.

Daniel Craig em Spectre com duas Bonds Girls

Pouco ou nada dada a firulas acadêmicas, Isabela Boscov sabe que cinema é entretimento para 98% dos espectadores. Só 2%, se tanto, acreditam que cinema é arte e escrevem mais para justificar isto do que para entender os filmes e convidar os indivíduos a vê-los. Críticos de matiz acadêmico escrevem para seus pares — pregam para convertidos —, não para o leitorzão comum, aquele vai ao cinema para se divertir, para duas horas de catarse.

“O Bond de Daniel Craig é mais ativo e propulsivo que todas as outras cinco encarnações do personagem somadas”, anota Isabela Boscov. Ela percebe um James Bond “suando em bicas, a transpiração escorrendo por seu rosto e encharcando o colarinho”. Os outros James Bonds parecem não suar, mesmo quando lutam com dezenas de adversários, pulam muros e correm. Permanecem elegantes como se estivessem participando de uma festa no palácio da rainha Elizabeth.

A sintonia fina entre o diretor Sam Mendes e a equipe de John Logan é realçada, e com acerto. “Graças à afinação desse time, há três anos a série 007 celebrou seu cinquentenário com a melhor, mais urgente, mais surpreendente e mais impactante de todas as aventuras do agente secreto. Em ‘Skyfall, Daniel Craig e seu personagem se entenderam de vez — com uma atração mútua tão elétrica que dá para dizer, sem apanhar dos fãs de Sean Connery, que Craig suplantou o Bond original.” Observe que a crítica não menciona Roger Moore — outro James Bond eventualmente impecável, porém ainda mais glacial do que Sean Connery.

Sam Mendes e John Lagan unem “escapismo com atualidade política” à “visceralidade de Craig” com “precisão”, sugere Isabela Boscov. A “fúria fria” é a “contribuição definitiva” de Daniel Craig “ao personagem”.

Isabela Boscov é crítica da Veja 2

“Se há arte ainda mais difícil que a de ser Bond, é a de escolher a hora certa para deixar de sê-lo”, conclui Isabela Boscov. Um dia, talvez próximo, Daniel Craig deixará de ser James Bond — como Sean Connery, George Robert Lazenby, Roger Moore, Timothy Dalton e Pierce Brosnan.

Nos jornais, Isabela Boscov tem rivais de peso, como Luiz Carlos Merten, Luiz Zanin Oricchio, Inácio Araújo (o decano permanece como o crítico-referência, e seu texto é o mais, digamos, literário), Sérgio Rizzo Ricardo Calil e Tacilda Aquino. Mas, em termos de revistas, não tem nenhum páreo. Ninguém escreve tão bem, com rara clareza e sem baixar o nível, para o público médio do país.