Biografia tenta decifrar Geraldo Vandré, a esfinge da música brasileira. Ele continua compondo
07 novembro 2015 às 13h47
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O compositor de “Pra não dizer que não falei das flores” e “Disparada” escreve poemas e faz música, mas não quer mais gravar
O cantor e compositor Geraldo Vandré, de 80 anos, é o maior enigma da música brasileira. “Geraldo Vandré morreu”, decretou. Renasceu o advogado Geraldo Pedrosa de Araújo Dias. Ao encontrá-lo no Rio de Janeiro, as cantoras Celia e Celma Mazzei perguntaram: “Você não é o Geraldo Vandré?” Sua resposta lacônica: “Fui”. Numa entrevista a Assis Angelo, do suplemento “Folhetim”, da “Folha de S. Paulo”, em 1978, ressalta: “Você não está falando com Geraldo Vandré. Você está falando com a pessoa que inventou Geraldo Vandré. Ele virou marca! Virou produto de consumo! Mas ele foi inventado pra isso mesmo”.
Mesmo as melhores biografias nunca são definitivas e são sempre lacunares — umas mais, outras menos. “Vandré — O Homem Que Disse Não” (Geração, 278 páginas), de Jorge Fernando dos Santos, é excelente. Não é exaustiva e um dos motivos não é a falta de fôlego do autor, e sim o fato de que o artista ou ex-artista não concede entrevistas para biógrafos. Mesmo assim, o jornalista e escritor publica um livro equilibrado e indispensável para quem quiser entender a vida e a carreira do autor da música-hino “Pra não dizer que não falei das Flores” (“Caminhando”) e da bela “Disparada”.
O calvário de Vandré começa com a proibição de sua música “Pra não dizer que não falei das flores”, em 1968, o ano do AI-5. Ao vetá-la, a ditadura civil-militar contribuiu para criar o mito de um artista radical, um guerrilheiro cuja arma era a música, e para “destruí-lo” como indivíduo.
Em 12 de dezembro de 1968, Vandré apresenta o show “Socorro, a poesia está matando o povo” no Teatro Municipal de Goiânia (talvez o Teatro Goiânia). O espetáculo era promovido pela Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Goiás. A plateia pede, insistente, que cante “Caminhando”. Ele esclarece que está proibida, mas solfeja a música rejeitada pelos conservadores.
No dia seguinte, Vandré canta em Anápolis. O AI-5 é anunciado e, “para que Vandré não deixasse a cidade sem se apresentar, os fãs chegaram ao ponto de esvaziar um pneu de seu carro”. Terminado o show, vai para a casa do médico José Antônio de Freitas (o artista esteve com Anapolino de Faria, líder político do MDB), onde “faz um desafio” ao repentista baiano Sinhozinho e “improvisa ao som da viola”. Ao saber do AI-5, “enlouqueceu”, segundo o violonista Nelson Angelo.
Militares invadiram a casa de Vandré e atacam publicamente a música “Caminhando”. Caetano Veloso e Gilberto Gil são presos. Chico Buarque e o cantor paraibano começam a ser procurados.
Vandré, que estava em Goiás, volta escondido para o Rio de Janeiro. Amigos e admiradores o esconderam. Uma de suas protetoras foi a mulher do escritor Guimarães Rosa, Aracy Moebius de Carvalho Guimarães Rosa.
O autor de “Fica mal com deus” deixa o país, via Uruguai, para não ser preso, em fevereiro de 1969. Teria sido ajudado pelo arenista Roberto Abreu Sodré, então governador de São Paulo, pelo maestro Júlio Medaglia, pelo jornalista Arthur José Poerner, por um armador chileno e até por um capitão do exército.
À “Folha de S. Paulo”, declarou: “Saí por minha própria decisão e voltei também por minha própria decisão. O que custou essa decisão foi um preço que já paguei”.
Entrevistado por Thales Guaracy, para a revista “Vip Exame”, garantiu que havia deixado o Brasil por “pura paranoia”. Como recebia ameaças por telefone, “chegou a se armar com um revólver calibre 38”.
Não comunista
Um dos mais qualificados críticos e historiadores da música popular brasileira, Zuza Homem de Mello, secundando outras fontes de Jorge Fernando, afirma que Vandré era vaidoso e egocêntrico. “Um homem muito bonito, muito atraente, de uma certa forma fascinante e capaz de despertar paixões bem fortes”, diz Homem de Mello. Radicalizado, “parecia membro de uma seita em defesa da liberdade”.
No Chile, localizado pelo jornal “O Globo”, Vandré admite que não era comunista. Sua ex-mulher Nilce Tranjan disse, num depoimento à revista “MPB Compositores”, que Vandré “não ficou preso nem foi torturado. Mas para um cara como ele, se lhe tivessem arrancado três unhas, dado choques elétricos, teria sido menos grave do que a castração de seu espaço artístico. O exílio para Geraldo foi enlouquecedor. O Geraldo era fruto de uma vontade ferrenha de ser um artista popular, no sentido de reformular as expressões culturais do povo e entregá-las de volta. Deu a vida dele para isso, entregou-se à sua arte”.
Em Santiago do Chile escreveu um pequeno texto, no qual sintetiza sua crise: “Fiquei essencialmente louco ou abstrato para entender-me com o meu próprio tempo”. Lança, em 1969, um compacto simples com as músicas “Desacordonar” e “Camiñando”, em espanhol. Numa programa de uma emissora chilena, é vaiado.
Como havia entrado de maneira ilegal no país, é convidado a se retirar. Vai para a Europa, com sua mulher, a chilena Bélgica Villalobos. Canta em vários países. Mesmo no exterior, a ditadura segue seus passos. No Brasil, é processado por “atividades subversivas”.
Em Paris, grava seu último disco, “Das Terras de Benvirá”. É uma música experimental. O crítico Mauro Dias, do “Estadão”, assinala que as músicas “trazem uma qualidade de beleza sofrida poucas vezes encontrada na música brasileira”.
Ao se encontrar com Vandré em Paris, o compositor Paulo César Pinheiro impressiona-se com a velhice repentina do autor de “Rancho da rosa encarnada”. Estava bebendo muito e chegou a atrapalhar gravações de Baden Powell.
A Paulo César Pinheiro, Vandré mostrou “uma música linda”, que chamava de “O evangelho segundo Geraldo Vandré”.
A polícia encontra haxixe num automóvel e Vandré foi expulso da França junto como pintor Waldomiro de Deus. O compositor usa drogas e passa por tratamento psiquiátrico, até eletrochoques. A socióloga Ana Clara Fabrino Baptista, sua companheira, conta: “Jamais vi pessoa tão torturada. Alucinações, insônia. E sempre buscando o caminho difícil”.
A volta do exílio
A volta de Vandré para o Brasil ganhou várias versões e o motivo é que ele não procura esclarecer o que de fato aconteceu. É fato que “retorna ao Brasil pelas mãos de um oficial do exército”, anota Jorge Fernando. Os pais do artista, José Vandregíselo (de onde saiu o nome Vandré) e Maria Marta, procuraram o general Estevão Taurino de Rezende Netto e contaram que o filho, de novo no Chile, “estava mal”.
“Com a intermediação de Taurino no governo militar, o autor de ‘Caminhando’ finalmente consegue regressar ao Brasil sem ser preso, morto ou torturado. Dr. José Vandregíselo assina um documento assegurando que o filho não vai mais cantar no país. Como parte do acordo, Vandré também se compromete a explicar na TV os motivos de sua saída e de sua volta. O próprio general o aguarda no aeroporto do Galeão, para garantir sua segurança e integridade física”, registra Jorge Fernando. Ele entrou no país em 17 de julho de 1973, no governo do duro Emilio Garrastazu Médici. Ficou quatro anos e cinco meses fora.
Embora tenha esclarecido que não foi maltratado, ficou três dias no Pelotão de Investigações Criminais da Polícia do Exército. (Ao amigo Antônio Eugênio Delfino, Birhú de Pirituba, deu outra versão, “passei quatro dias aí tomando pau”, apontando para um prédio da Lapa, que, de fato, havia sido usado pela repressão militar.) Em 2004, numa entrevista, Vandré admite que voltou do exílio doente e meio perdido. “Quando justamente os militares me acolheram e me deram tratamento médico, e me alojaram. Essa é uma relação de seres humanos e não de instituições”, disse. Na época do retorno, atendendo ao acordo com os militares, concedeu: “Quero agora só fazer canções de amor e paz”.
“Eu sempre fui contra o trabalho de arte feito em função de um partido político, porque isso transforma a arte em propaganda”, sublinhou Vandré. O mais provável é que fosse uma espécie de João Goulart da música, quer dizer, um artista nacionalista, mas, com sua arte apropriada pela esquerda, pelo tempo engajado, firmou-se a imagem de radical, o que talvez nunca tenha sido. Não era o “Che Guevara do violão”.
Artistas, como Elis Regina, João Bosco e César Camargo Mariano, começam a menosprezá-lo.
Retorno artístico
Jorge Fernando frisa que “Vandré tentou retomar suas atividades no país”. Mas “a Censura Federal impediu que sua imagem e sua fossem ao ar. (…) A partir daí, quando interpelado pela imprensa, o compositor passa a dizer que não é artista, e sim advogado: ‘Dr. Geraldo Pedrosa de Araújo Dias’”. Num depoimento concedido a Jeane Vidal, acrescentou: “Eu não renunciei à vida artística. Apenas deixei de atender a demandas comerciais”.
Ao jornalista Thales Guaracy, Vandré disse: “Eu sei o que é o sucesso comercial e não quero mais isso. Sempre quis o direito de ser um homem andando na rua”. A cultura de massa, que teria substituído a cultura popular, desagrada ao artista.
Às cantoras Celia e Celma Mazzei, irmãs gêmeas, Vandré mostrou canções que havia feito no Chile. Elas perderam a fita.
Em 1979, por sugestão do teatrólogo Flávio Rangel, a cantora Simone grava “Pra não dizer que não falei das flores”, num registro de qualidade. Mais tarde, Vandré põe lenha na fogueira, enigmático: “‘Caminhando’ foi liberada e voltou, na gravação de Simone. Mas eu não poderia voltar junto, caso contrário teria sido morto. Então, dei um jeito de separar a criatura do criador”. Paranoia? E se não fosse? Vandré processou a cantora por apropriação indébita. No mesmo ano, o LP “Canto geral” volta às discotecas e vende 30 mil cópias.
Vandré se recusa a faturar milhões com direitos autorais. “Há quem diga que ele costuma guardar ou rasgar os cheques que recebe, por total discordância com a forma de pagamentos dos direitos autorais no país”, informa Jorge Fernando.
Vandré na ativa?
O artista Birhú de Pirituba assegura que o amigo Vandré “continua escrevendo e compondo, tendo mais de 40 livros datilografados com poemas, letras musicais e outros textos literários inéditos em seu apartamento”.
“Só na intimidade é que ele canta suas novas canções”, revela Birhú de Pirituba. “Sua voz se mantém firme, melhor do que nunca… Temos muitas parcerias, que não posso gravar porque ele não deixa.” A voz de um homem de 80 anos não é tão boa quanto a de um artista de 30 anos.
Em 1982, Vandré tentou cantar no Brasil, no Salón Social Área Dos, da Itaipu binacional. Militares brasileiros liberam, mas não um general paraguaio. No mesmo ano, ele canta num velho cinema em Puerto Stroessner (Cidade del Este). O trompetista americano Michael Kelly consegue a liberação do show ao mostrar um documento pelo qual a Polícia Federal garante que não há “restrições ao nome de Geraldo Vandré”. Não empolgou o público, que não aplaudiu nem vaiou. Cantou até “Caminhando”, sem emoção aparente.
Com a Abertura, com a luta pelas Diretas Já, “Caminhando” volta às ruas e aos palanques. Vandré não se entusiasma. Em setembro de1985, canta em Foz do Iguaçu.
Vandré, segundo fontes consultadas por Jorge Fernando, “fumava muita maconha”. Ele próprio admitiu que usou cocaína durante seis meses. Ficava longos períodos em silêncio e, “de repente, saía em disparada pelas ruas da cidade. Outras vezes se escondia atrás de postes e árvores, alegando estar sendo espionado por agentes da repressão”.
Num show de 1986, em Foz do Iguaçu, “cantou”, segundo Zé Ramalho, “três canções novas de arrepiar. O compositor continua vivo, produzindo”. Vandré disse que iria gravar um disco com seu conterrâneo, mas não gravaram.
Em 1987, a pianista Beatriz Malnic executa uma peça erudita de Vandré. A peça não foi gravada em disco.
O músico Ivo de Lima (Alquimides Daera) assegura que Vandré “não abandonou a carreira artística: vive compondo e escrevendo poemas”.
Em 1992, na campanha do impeachment, “Caminhando” mais uma vez volta às ruas.
Em 1994, a música “Fabiana”, homenagem à Aeronáutica, é cantada na Semana da Asa, com anuência do tenente-brigadeiro Walter Werner Bräuer. A música chegou a ser entoada por um coral de cadetes da FAB, com regência do maestro Eleazar de Carvalho. Isto irritou esquerda. Em Brasília, durante o festival de cinema, alguém gritou: “Viva o Vandré do passado”.
Jorge Fernando conta uma história estranha, anotada pelo jornalista Chico Mendonça. Ao encontrá-lo em João Pessoa, o repórter perguntou ao então governador Ronaldo Cunha Lima o que ele fazia lá. “É meu assessor de assuntos musicais”, respondeu o político. “Vandré fica na porta do palácio vestido de marinheiro e tirando fotos de todos que entram. O mais engraçado é que não tem filme na máquina. Ele é doido na hora que quer”, disse o governante.
Mesmo reticente sobre a retomada da carreira, “algumas vezes”, afiança Jorge Fernando, “o próprio Geraldo se vê tentado a gravar ou produzir um disco”. Falou com Jair Rodrigues sobre um disco, mas depois “esqueceu” a conversa. Chegou a mostrar canções inéditas. Num almoço na casa do cantor Sargento Lago, Vandré “pegou um violão” e “tocou algumas canções inéditas”. Perguntado por que não gravava as músicas, replicou: “Vivo em outro país”.
Avesso à mídia, Vandré conversa com poucas pessoas. Em 2007, recebeu Jeane Vidal que preparava um trabalho de conclusão do curso de Jornalismo sobre ele. “De louco ele não tem nada”, afirma a repórter. Ele não se interessa pela sociedade de consumo.
Ao voltar do exílio, com um mercado aberto e ativo para ele, Vandré desiste de tudo. Numa música dedicada ao guerrilheiro argentino Che Guevara, escreveu: “Quem afrouxa na saída/Ou se entrega na chegada/Não perde nenhuma guerra/Mas também não ganha nada”.
Aos 80 anos, Vandré vive sozinho no centro de São Paulo, num pequeno apartamento, com sua aposentadoria de fiscal da Receita Federal. A amiga Telê Cardim diz que “vive de maneira muito simples, com pouco dinheiro. Ele cozinha, lava suas roupas e frequenta restaurantes populares perto do prédio dele, mas sabe cuidar de si e até faz exercícios em casa”.
Em 2010, numa entrevista a Geneton Moraes Neto (pode ser vista no YouTube), divulgada no programa “Dossiê Globo News”, Vandré diz: “Arte é cultura inútil, mas eu hoje consegui ser mais inútil que qualquer artista. Eu sou advogado em um tempo sem lei. Quer coisa mais inútil que isso?” Ele critica Caetano Veloso e Gilberto Gil e elogia Chico Buarque e o Movimento Armorial.
Leia mais sobre Vandré, até 1968, no texto “O Geraldo Vandré radical é uma invenção de um tempo em que a estética submetia-se à política”: