Quer pureza? Não vá ao convento. — De um ‘filósofo’ anônimo

O livro “Estudos Sobre a Humanidade” (Companhias das Letras, 717 páginas, tradução de Rosaura Eichenberg), do filósofo anglo-letão Isaiah Berlin (1909-1997), contém ensaios de alta qualidade sobre Filosofia (e filósofos, como Maquiavel, Vico e Herder), História, estadistas, como Winston Churchill e Franklin D. Roosevelt, e escritores, como Alexander Herzen (também pensador) e Anna Akhmátova (poeta).

“A busca do ideal”, com 17 páginas, é um dos ensaios mais instigantes. Berlin era um eterno desconfiado da ideia de que, a partir daquilo que propunha o Iluminismo — apropriado pelos marxistas e até por liberais —, se chegaria a um mundo de excelência, quiçá de pureza.

Não que Berlin não advogasse uma sociedade que conjugasse liberdade e igualdade. Mas era cético com aqueles que sugerem o sacrifício do presente com vistas a se conquistar um futuro radioso. Se o presente for sacrificado, o futuro não será belo (os meios podem corromper os fins, de acordo com Norberto Bobbio). O stalinismo e o maoismo, que mataram milhões no século 20, são a prova de que, por vezes, utopias podem ser perigosas (“as utopias têm o seu valor, mas, como guias de conduta, elas podem se revelar literalmente fatais”). E sugerem que corrupções morais podem, por vezes, ser mais destrutivas do que as financeiras.

“A busca da perfeição me parece uma receita para derramamento de sangue, mesmo se exigida pelo mais sincero dos idealistas, o mais puro de coração”, assinala Berlin.

Isaiah Berlin, filósofo anglo-letão: tentativa de criar sociedades perfeitas é um convite ao sacrifício do presente e ao derramamento de sangue | Foto: Reprodução

O mundo pode e deve ser modificado, porém, nos marcos da democracia, de uma sociedade pluralista, aberta. Avançando aqui, recuando ali, dando um salto qualitativo acolá. Entretanto, mudanças drásticas, que planejam “reformar” as sociedades e os indivíduos por completo, são sempre um risco, e dos mais altos. (Em São Paulo, numa colônia anarquista, que era para ser o paraíso na terra, deu tudo errado quando o líder, que não era para ser líder, pois “não” havia Estado, furtou o dinheiro dos companheiros.)

Berlin apreciava citar Immanuel Kant: “Da madeira torta da humanidade, nada direito jamais foi feito”. Mas, antes do filósofo alemão, buscou inspiração em Maquiavel: o filósofo florentino “não reconhece um critério abrangente que nos capacite a decidir a vida correta para os homens”.

“A noção do conjunto perfeito, a solução definitiva, em que todas as coisas boas coexistem, parece-me não ser apenas inatingível — isso é um truísmo —, mas também conceitualmente incoerente. (…) A possibilidade de uma solução final revela-se uma ilusão, e uma ilusão muito perigosa. Pois, se alguém realmente acredita que tal solução seja possível, então certamente nenhum custo será demasiado elevado para obtê-la”, anota Berlin. “Devem-se estabelecer prioridades, jamais finais e absolutas.”

Kant: “Da madeira torta da humanidade, nada direito jamais foi feito” | Foto: Reprodução

Deltan e Moro: inocentes úteis?

A Operação Lava Jato, que investigou, denunciou e condenou políticos e empresários envolvidos em corrupção no governo do PT, começou em 17 de março de 2014, no governo da presidente Dilma Rousseff, do PT.

Em 2014, Jair Bolsonaro era deputado federal, do baixo clero de direita, e não tinha pretensões presidenciais. Era agressivo, atacava a esquerda e não tinha qualquer representatividade no Congresso. Era, no máximo, o Jair Baguncento, criador de caso.

O que tinha a ver a Lava Jato de 2014 e Bolsonaro? Nada, ou muito pouco. É provável que o juiz Sergio Fernando Moro, de 50 anos (idade atual), e o procurador da República Deltan Martinazzo Dallagnol, de 43 anos, mal conheciam o político que, nascido em São Paulo, se “consagrou” no Rio de Janeiro.

Se Bolsonaro não existia como político nacional, e se não tinha nenhuma pretensão de disputar a Presidência da República, é possível conectar os dois jovens de Curitiba, além de outros magistrados e procuradores, ao político agora filiado ao PL? A rigor, não. Em 2014, não. Em 2015, não. Em 2016, não…

Jair Bolsonaro e Sergio Moro: aliados| Foto: Adriano Machado/Reuters

Então, não há evidência de que a Lava Jato surgiu para “criar” Bolsonaro como alternativa ao PT de Lula da Silva ou para “forjar” um político de direita. Está se comentando, é claro, o período do nascimento da operação e a fase subsequente, até 2017, possivelmente.

Alinho-me com os defensores da Lava Jato, porque é preciso combater a corrupção e a impunidade. Entretanto, até por pensar como Berlin — de que não é possível zerar a história, criando uma sociedade e indivíduos inteiramente novos, purificados —, postulo que seus membros cometeram alguns erros.

Os lava-jatistas trataram políticos e empresários com extremo rigor. Para cumprirem a lei? Em parte, sim. Mas sugiro outra hipótese.

Jovens, como Sergio Moro, que em 2014 tinha 42 anos, e Deltan, que tinha, na mesma época, 34 anos, os magistrados (a Lava Jato não foi levada adiante somente por um magistrado) e os procuradores, não apenas operaram para criminalizar e condenar corruptos (e corrupção houve, em grande escala).

Juízes e procuradores, assim como policiais federais, às vezes imbuídos das melhores intenções, certamente acreditavam que, fazendo uma limpeza geral, contribuiriam para a construção de uma sociedade melhor, mais justa e equilibrada (afinal, a lei é, em tese, para todos). Eram, por certo e no limite, idealistas.

Deltan Dallagnol e Eduardo Bolsonaro: jogando no time da direita não esclarecida | Foto: Reprodução

Os “garotos” do Judiciário e do Ministério Público Federal estavam certos em tentar “corrigir” o mundo com o objetivo de construir uma “nova” sociedade — com todos cumprindo as leis e, quem não as cumprisse, deveria ser penalizado.

Dada a corrupção, o PT era o que havia de pior na política brasileira? Não. Desde o fim da ditadura, o PSDB (que é ou era o PT menos aguerrido e sonado) e o PT (que é o PSDB um pouco mais aguerrido, e insone), partidos socialdemocratas moderados — sem veleidades comunistas, ao contrário do que prega a direita mal-intencionada —, foram duas criações positivas da democracia. Juntos, retomaram o crescimento da economia — controlaram a inflação — e investiram em desenvolvimento.

No poder, PSDB e PT se comportaram de maneira realista — governando o capitalismo, mas procurando criar uma espécie de Estado do bem-estar social. Seus governos não foram ruins. Pelo contrário, devem ser avaliados como acima da média. Deu uma piorada no governo de Dilma Rousseff, do PT. Ainda assim, o país avançou entre 1994 e 2016.

No entanto, no afã de “purificar” a sociedade, os operadores da Lava Jato criminalizaram a política, firmando a tese de que, se todos eram “malandros”, se não havia gradação, todos deveriam ser “destruídos”.

Lula da Silva: prisão poderia ter sido domiciliar | Foto: Ricardo Stuckert/PR

Prisão de Lula e “zerar” a história

Numa avaliação pela média, que é a forma adequada de se examinar tanto um indivíduo comum quanto um político, Lula da Silva é um estadista. É um homem de Estado. Pode não ser “culto” (academicamente), como Fernando Henrique Cardoso, do PSDB. Mas é inteligente e, no poder, tratou de colocar o Estado a serviço da sociedade, e investindo maciçamente em programas sociais, com o objetivo de construir uma sociedade mais justa e resolver, em parte, as demandas históricas do país.

Porém, ao investigar Lula da Silva e os demais petistas, os operadores da Lava Jato colocaram todos no mesmo saco — são “farinha do mesmo saco”, diz o vulgo —, ao lado de históricos corruptos do PTB, do pP e do PL. Então, para pegar todos, era precisa “colher” os supostos “cabeças” do assalto aos cofres públicos. E, por estarem nos cargos chaves da República, como a Presidência, além dos ministérios, os principais “culpados”, direta ou indiretamente, “eram” os petistas.

Por ter sido presidente da República, entre 2003 e 2010, durante oito anos, Lula da Silva era uma espécie de “troféu”. Daí era preciso prendê-lo. Sua prisão era uma maneira de destrui-lo politicamente. Era a “pá de cal” no sistema corrupto, que, na visão dos lavajistas, era simbolizado pelo PT e Lula da Silva.

A prisão de Lula da Silva, a rigor, era mesmo necessária? Não era, claro. Ao ser preso, já estava com mais de 70 anos, tinha endereço fixo, não dava mostras de que poderia fugir do país e nem estava intimidando testemunhas. Prendê-lo foi um gesto de força da Lava Jato. Era um símbolo, uma espécie de “fim da história” e, portanto, de “recomeço” da história.

Os “meninos” da Lava Jato acreditaram, por certo, que, com a prisão de Lula da Silva, haviam “zerado” a história. Então, estariam construindo um mundo novo, como se fossem um sol purificador da sociedade.

Silvio Berlusconi: gerado pela Operação Mãos Limpas, na Itália | Foto: Reprodução

Na Itália, a Operação Mãos Limpas, matriz da Lava Jato, destruiu o sistema político — os ruins, os mais ou menos e até os bons — e abriu espaço para a ascensão de Silvio Berlusconi, que se tornou primeiro-ministro e, igualmente aos anteriores, chafurdou na lama.

Portanto, a destruição de um sistema, visto como ruim — e às vezes sem ser tão ruim assim —, pode resultar na instalação de um sistema ainda pior. Aconteceu na Itália. Aconteceu no Brasil. A visão corretiva rigorosa beira ao totalitarismo.

Sem alternativa, a sociedade gestou Bolsonaro

A Lava Jato colaborou, de maneira decisiva, para a destruição, momentânea, da esquerda e do centro político. Deixou o país sem alternativa. Pode-se sugerir que, ainda que de maneira indireta — não dolosa, e sim culposa, quiçá —, que a operação “gerida” por Sergio Moro e Deltan Dallagnol se tornou “pai” e “mãe” de Bolsonaro.

Como não havia “ninguém” com a estatura dos políticos anteriores — Fernando Haddad não chega a ser um Lula da Silva mignon, é, no máximo, o Geraldo Alckmin do PT —, o falastrão Bolsonaro, com sua linguagem chã e facilmente compreensível para a maioria, e discurso adequado ao moralismo de ocasião da classe média (que aprecia soluções radicais, do tipo que promete resolver tudo, e rapidamente, com uma canetada), apareceu e mesmerizou parte do país.

A espada de Dâmocles | Foto: Reprodução

A Lava Jato tinha seu juiz, Sergio Moro, seu procurador, simbolizado por Deltan Dallagnol, e, em 2018, seu político, Jair Bolsonaro, cujo nome do meio é Messias (o salvador).

Em 2019, com a vitória de Bolsonaro para presidente, Sergio Moro cometeu seu primeiro erro ao aceitar ser ministro da Justiça. Seu principal equívoco, o que poucos apontam, foi a visão quase-totalitária de que se poderia corrigir a política com sentenças duríssimas — produto da crença de que é possível criar, destruindo o “velho”, a sociedade dos bons, dos escolhidos. O novo, enfim. Como se sabe, o novo, se existe, está sempre grávido do velho; portanto, reverberando-o.

Ao migrar do Poder Judiciário para o Ministério da Justiça, Sergio Moro acreditava, era o que dizia, que poderia colaborar para aprovar leis ainda mais duras contra a corrupção e o crime organizado. Parecia bem-intencionado.

Porém, provando sua escassa visão do que é a política e os indivíduos, Sergio Moro começou a ser esvaziado por Bolsonaro. O presidente, o ministro foi percebendo aos poucos, não era o “homem novo” — “purificado” pela espada de Dámocles que havia se tornado a Lava Jato —, e sim um político realista, pragmático e sem limites.

Para proteger seus filhos e amigos — alguns deles envolvidos em atividades pouco católicas, digamos —, Bolsonaro submeteu a Polícia Federal, a Abin e outros órgãos. O presidente colocou instituições de Estado a serviço de sua vida privada. De alguma maneira, corrompeu-o. Felizmente, apesar de casos específicos, não conseguiu corromper as Forças Armadas, que permaneceram democráticas.

Sergio Moro demorou para perceber que havia entrado numa canoa furada, e que o Brasil não se havia transformado numa sociedade quase perfeita. Quando deu por si, havia se tornado uma espécie de rainha da Inglaterra (Elizabeth ainda estava viva). Pediu demissão ao entender que, na prática, não era mais ministro. Era um fantasma.

Colocado para fora do governo, por um presidente que não estava interessado em moralização alguma, Sergio Moro decidiu se tornar, por assim dizer, político de mandato. Foi eleito senador e sua mulher, Rosângela Moro, foi eleita deputada federal. Ele pelo Paraná e ela por São Paulo. O ex-juiz é filiado ao União Brasil. Deltan Dallagnol foi eleito deputado federal pelo Paraná, com mais de 345 mil votos. Detalhe: os três reconciliados com Bolsonaro, cuja reeleição apoiaram.

A cassação do deputado Deltan Dallagnol

Sergio Moro e Rosângela Moro são mais centrados, mas Deltan Dallagnol, na Câmara dos Deputados, parece meio aloprado. Recentemente, sugeriu que, com o Projeto de Lei das Fake News, até a Bíblia poderia ser censurada. Maluquice pura.

Marco Aurélio Mello, ministro do STF: espanto com a decisão do TSE | Foto: Carlos Humberto/SCO/STF

Se Deltan Dallagnol operou, quando procurador da República, para criminalizar políticos, com extremo rigor — e sem nenhuma compaixão —, agora se tornou, digamos, vítima do mesmo sistema que, antes, o “ajudou”.

Por sete votos a zero, o Tribunal Superior Eleitoral cassou o mandato de Deltan Dallagnol, do Podemos. O argumento básico é que pediu exoneração do Ministério Público para não ser penalizado pela Justiça. Tendo agindo assim, teria tentado burlar a lei. Por consequência, teria se candidatado a deputado com o objetivo de se proteger.

A maioria dos juristas ouvidos pelos jornais e emissoras de televisão concorda com a dura decisão da Justiça. Mas há quem discorde, e de maneira sensata.

O ex-ministro da Justiça Miguel Reale Júnior afiança que o TSE agiu de forma arbitrária. Ao “Estadão”, o jurista disse que o Tribunal violou a presunção de inocência. Ante a Justiça, o indivíduo só pode ser apontado como culpado “após condenação definitiva”.

“Acho que houve um grande erro do TSE. Eu sempre fui muito crítico da atuação do Dallagnol, mas, mais do que desgosto com a atuação dele, eu tenho o repúdio ao arbítrio. E houve um arbítrio”, sublinha Miguel Reale.

Deltan Dallagnol fala em “vingança”, porque operou a Lava Jato (denunciando poderosos, e condenando vários deles) — agora, as elites, na velha conciliação pelo alto, querem puni-lo, num processo político, sob a aparência de judicial, kafkiano, esmagador. Professor da USP, Rafael Mafei diz acreditar que “talvez, se o personagem fosse outro, o resultado seria diferente”.

Estariam aplainando o terreno para “pegar” Sergio Moro? Tudo indica que sim.

Miguel Reale Júnior, jurista | Foto: Reprodução

No editorial “Decisão esquisita em tempos estranhos”, o “Estadão” afirma: “Ele [Deltan Dallagnol] já fora penalizado em dois PADs [processos administrativos disciplinares], mas com advertência e censura. Quando se exonerou, tramitavam 15 procedimentos, entre reclamações e sindicâncias, mas ainda não convertidos em PADs”.

A interpretação mais contundente foi dada pelo ex-ministro do STF Marco Aurélio Mello. A cassação de Deltan Dallagnol “foi uma interpretação à margem da ordem jurídica”. Ele frisa que, ao deixar o Ministério Público Federal, o ex-chefe da força-tarefa da Lava Jato não respondia a nenhum PAD.

Marco Aurélio Mello admite que está em curso uma operação-vingança, embora não utilize tais palavras: “Enterraram a Lava Jato e agora estão querendo enterrar os que a protagonizaram”. Mais: houve um “justiçamento” e “julgamento combinado” (daí o placar de 7 a 0).

“Eles [os ministros do TSE, certamente] esquecem algo que Machado de Assis ressaltou: o chicote muda de mão”, sublinha Marco Aurélio Mello. Muda, de fato, mas os donos do poder, com ligeiras alterações, são quase sempre os mesmos (Lula da Silva anda abraçado com Arthur Lira, o presidente da Câmara dos Deputados. O mesmo Arthur tocou Lira para Bolsonaro, entre 2019 e 2022).

Talvez tenha chegado a hora de Deltan Dallagnol, que parece dado a certo misticismo (além de messianismo), e Sergio Moro abrirem as páginas de seus exemplares de “Os Donos do Poder — Formação do Patronato Político Brasileiro” (Companhia das Letras, 832 páginas), de Raymundo Faoro.

Sergio Moro e Deltan Dallagnol estão sendo vítimas dos donos do poder, incrustados na política e no Judiciário. Por quê? Se conhecessem um pouco mais a história do Brasil, se tivessem lido com a devida atenção o livro de Raymundo Faoro — para entender a conciliação pelo alto das elites —, talvez tivessem andado com mais cuidado com o andor. Porém, como acreditaram que poderiam “corrigir” o Brasil, colocando-o no eixo — o da pureza —, com canetadas investigatórias e sentenças condenatórias, acabaram “corrigidos” por aqueles que não querem e não aceitam serem “corrigidos”.

Não diria que Sergio Moro e Deltan Dallagnol se comportaram como bobos da corte, porque, se dissesse, estaria desmerecendo o belo trabalho da Lava Jato — cujo principal legado é: “Todos, se cometerem crimes, podem ser penalizados”. Mas vale sugerir que não entenderam o país em que vivem e cometeram o erro de acreditar que, quase do nada, pode surgir uma sociedade perfeita. Voltemos a Kant, o sensato e realista Immanuel: “Da madeira torta da humanidade, nada direito jamais foi feito”.

Leia sobre livro do filósofo Theodore Dalrymple