Homem com Covid fica 68 dias internado, é desenganado e ganha na Mega-Sena

23 março 2021 às 13h00

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O analista de sistemas Rogério Maria tem 50 anos e ficou 42 dias em coma. Chegou a ser “desenganado”

Pense numa história de Charles Dickens contada por Franz Kafka. Pensou? Pois tal história existe na vida real e, algum dia, talvez seja narrada por gênios literários do quilate do britânico e do tcheco. O depoimento do analista de sistemas Rogério Maria, recolhido pelo repórter Dimitrius Dantas, relata um acontecimento trágico na vida de um indivíduo e, ao final, com alguma redenção. Ou grande redenção — o seu “renascimento” físico.
Rogério Maria, de 51 anos, teve Covid-19, ficou 68 dias internado — desenganado duas vezes, sua mulher foi convocada para se despedir —, “42 deles inconsciente num leito da Casa de Saúde Campinas” (em Campinas, município de São Paulo). E, sim, escapou e, para melhorar o quadro, ganhou a Mega-Sena.
Não é mesmo uma história de Dickens “incorporado” por Kafka (na falta de Dickens, vale Donna Tartt)?

Rogério Maria e sua mulher, Iracema, eram cuidadosos — usavam máscara e não se descuidavam do álcool em gel. Só deixavam sua casa para resolver coisas “essenciais”. Acredita que tenha se contaminado durante compras num supermercado. “Tenho o péssimo hábito de coçar o nariz. Veio a tosse seca e, depois do exame RT-PCR, a confirmação de que estava com Covid-19.”
A mulher também se contaminou, mas não os filhos. “No segundo dia de internação, meu quadro piorou. Fui sedado e entubado. Fiquei em coma”, conta Rogério Maria.
“A Covid-19 me atacou de forma muito forte. Meu corpo teve múltiplas tromboses, tive pneumonia e infecção hospitalar. Meus rins pararam. Dos 42 dias em coma, passei 28 em uma máquina de hemodiálise. Tomei 16 tipos de antibiótico diretamente na veia durante o período de entubação”, relata. Iracema foi chamada duas vezes ao hospital —pois Rogério Maria “estava morrendo” — para se despedir do marido.

Dotado de uma resistência impressionante, Rogério Maria escapou. Na cama, amarrado, delirou e, ao acordar, acreditou que havia uma conspiração para mantê-lo no hospital. Assustou-se ao ouvir: “Você tem noção de que ficou 42 dias dormindo?”
Consciente, sentiu uma saudade imensa dos filhos. E tinha medo. Uma enfermeira, uma psicóloga e fisioterapeutas pulmonares conseguiram acalmá-lo aos poucos.
Quando pessoas mortas eram levadas em macas, Rogério Maria adquiriu a sensação de que seria o próximo.
Depois da batalha gigante, tanto de seu organismo quanto dos profissionais de saúde, Rogério Maria recebeu alta. “Entrei andando no hospital com 97 quilos e saí com 70 quilos, sem andar, sem segurar um talher, sem conseguir me sentar.” Quando os filhos lhe davam banho, ele chorava, dada a sensação de impotência.

Em casa, vivo mas fraco, deprimiu-se. “Não sorria e não falava com ninguém.” Um dia, ao ouvir sua mulher falar de sua depressão, resolveu reagir. “Pedi para tirarem o andador, a cadeira de rodas. Precisava pagar as contas. A princípio, o INSS negou o pedido de minha mulher por falta de documentos. Eu tinha de me recuperar. Um dia, andei de minha cama até o guarda-roupa. Parecia que eu tinha corrido uma maratona.”
Sem dinheiro, com dificuldades para pagar as contas, a família de Rogério Maria fez uma vaquinha on-line. Mas o dinheiro mal deu para cobrir as despesas de um mês.
Qual a saída? Rogério Maria decidiu jogar num bolão da Mega-Sena da Virada. Torrou 30 reais — único dinheiro que tinha na carteira.
Ao conferir a cartela, Rogério Maria avaliou que havia feito a quadra, mas o filho caçula corrigiu-o: “Não, pai, você acertou cinco”.
Rogério Maria ganhou 7 mil reais — assim como seus companheiros de bolão — e ficou satisfeito. Os deuses não o esqueceram. “Deu para pagar as contas de janeiro.” Recentemente, o INSS informou “que vai retomar o pagamento, inclusive os retroativos. Vamos ver”.
Depois de quase frequentar o mundo dos mortos — a República dos Cemitérios “liderada” pelo bolsonarismo —, Rogério Maria poderia ter se tornado uma pessoa amarga. Mas não se tornou. “Não fico chateado por ter pegado essa Covid, sabe? Aprendi a enxergar nos pequenos detalhes que a vida está aqui. Quando eu cheguei em casa, a primeira coisa que fiz foi tomar água num corpo de vidro. Foi o melhor copo de água de minha vida. Fico bravo quando ligo a TV e vejo essas aglomerações, pancadões. (…) A Covid abala sua estrutura física, sua estrutura mental, emocional e financeira. Ela te deixa sem chão. Por que as pessoas estão desdenhando?”
Ao final do depoimento, Rogério Maria pergunta: “Você está preparado para carregar um caixão? De seu filho? De seu pai? (…) Quer saber o que fazer? Ligue a TV e veja o número de pessoas morrendo. É motivo suficiente para acreditar na Covid”.