Victoria Ocampo (1890-1979) era o dínamo que criou a revista e a editora “Sur”, na Argentina, na década de 1930. Publicou autores locais, como Jorge Luis Borges e Oliverio Girondo, e estrangeiros, como Virginia Woolf, James Joyce, Ortega y Gasset, Albert Camus (1913-1960 — viveu 46 anos), Sartre e William Faulkner. Durante a Segunda Guerra Mundial (1939-1945), com o apoio das irmãs Angelica e Silvina Ocampo, deu apoio a vários escritores e intelectuais europeus, independentemente de ideologia partidária. A fotógrafa judia Gisèle Freund, para não ser presa pelos nazistas, que ocuparam a França, fugiu para Buenos Aires, sob proteção de Victoria Ocampo. “Ela me salvou”, disse Gisèle Freund. Paul Valéry, Camus, André Malraux, entre outros, receberam ajuda da mecenas — que escrevia, traduzia e patrocinava gente realmente talentosa.

Victoria Ocampo e Albert Camus eram grandes amigos e correspondentes | Foto: Reprodução

Na França, além de Pierre Drieu la Rochelle, Victoria Ocampo tinha apreço especial por Camus, o autor de “O Estrangeiro” e “A Peste”.

Camus e Victoria Ocampo se conheceram em Nova York, em 1946. Ela, que falava francês (sua primeira língua não foi o espanhol) e inglês fluentemente, atuou como guia para o escritor franco-argelino. A argentina-cidadã do mundo se apresentou assim: “Sou sua tradutora. ‘Sur’. Buenos Aires. ‘Calígula’.” A editora Sur publicou vários livros de Camus, com tradução de Victoria Ocampo, Aurora Bernárdez e Julio Cortázar. Os argentinos apreciavam sua literatura e sua posição anti-totalitarismo.

Tida como farol da cultura universal (e não apenas da Argentina), “Sur” publicava os melhores escritores, informa Andrea Calamari, na “Revista Ñ”, do jornal “Clarín”, de 7 de agosto deste ano. A revista era “liberal e universalista”. O objetivo de Victoria Ocampo era discutir cultura, em nível elevado, na Argentina, colocando o país em conexão com o mundo. “De igual para igual, sem complexos.” “O único posicionamento ideológico era a liberdade individual”, diz Andrea Calamari.

Os criadores de “Sur”, por serem liberais, eram contrários ao totalitarismo na Europa e ao autoritarismo nacionalista na Argentina. Na sua casa de San Isidro, Victoria Ocampo reunia intelectuais para debater a situação do mundo e de seu país (o peronismo era autoritário, com vocação totalitária). Ela chegou a oferecer proteção para refugiados da Guerra Civil Espanhola (1939-1945), o que revela sua faceta democrática, porque eles eram, no geral, de esquerda.

Em 1943, militares de cariz fascista, deram um golpe de Estado na Argentina. O grupo da “Sur”, permanecendo no campo democrático, apoiava os Aliados contra o nazifascismo de Adolf Hitler, da Alemanha, e de Benito Mussolini, da Itália.

Em 1946, com Juan Domingo Perón no poder, pelo voto popular, “Sur” é apontada como “suspeita”. Direita e esquerda extremas se parecem. Para a direita, o pensamento que não é de direita só pode ser comunista. Para o comunista, o pensamento que não é de esquerda só pode ser de direita. Não há espaço para nuances — para o, digamos, democrata. Hábil, Victoria Ocampo abriu espaço para intelectuais europeus criticarem o totalitarismo e defenderem a liberdade e a democracia liberal. Internamente, vistos com desconfiança, intelectuais e escritores se protegiam, às vezes silenciando-se. Mesmo sendo moderada, a revista passou a ser considerada como “oposicionista” e “adversária” do peronismo, ou seja, do governo de Perón. Mais tarde, Victoria Ocampo foi presa, o que gerou um movimento internacional por sua libertação, inclusive com a participação de Camus (leia mais adiante).

Victoria Ocampo traduz “Calígula”, peça de Camus

A peça de teatro “Calígula”, de Camus, deixou Victoria Ocampo mesmerizada. Na sua casa de Mar del Plata, ela leu o texto e começou a traduzi-lo. Ditava e o amigo José Bianco escrevia à máquina. “A obra era a alegoria perfeita das ditaduras” e Calígula lembrava Hitler, Mussolini, Franco e Stálin — “megalômanos que julgavam ser deuses”, postula Andrea Calamari. Tendo conseguido os direitos de tradução, com o apoio de Roger Callois, “Sur” publicou o drama do escritor franco-argelino. Camus liberou a publicação, com prazer.

Na segunda metade da década de 1940, Camus sente-se esgotado e deprimido — a ideia de suicídio passa por sua cabeça, com frequência. Então, Roger Seydoux, da Direção Geral das Relações Culturais no Quai d’Orsay, sugere uma turnê pela América do Sul. “A América do Sul o tenta, pois deseja tanto conhecer esse continente quanto fugir de Paris”, conta Olivier Todd, no livro “Albert Camus — Uma Vida” (Record, 877 páginas, tradução de Monica Stahel).

“A viagem de Camus não parece fácil. Ele quer dirigir-se aos oposicionistas e planeja uma conferência na Argentina sob a égide do grupo ‘Sur’, que reúne, ao lado de Victoria Ocampo, intelectuais de peso”, anota Olivier Todd. Aos 59 anos, a grande incentivadora das artes é, de acordo com o biógrafo de Camus, “tumultuosa, cosmopolita, frequenta Borges e [Jules] Supervielle, Ortega y Gasset e Roger Caillois, correspondia-se com Drieu e Waldo Frank. Muito cedo rompeu com os comunistas. A revista é vendida nos Estados Unidos, e muito em Madri e Paris. Com uma tiragem de 4.000 exemplares, antes de tudo literária, ela atrai as suspeitas dos justicialistas. ‘Sur’ publicou ‘A Volta da URSS’ e “A Condição Humana’.”

Em 1948, Camus está irritado com a Argentina, pois sua peça de teatro “El Malentendido” (“O Equívoco”), encenada pela companhia da atriz espanhola Margarita Xirgu, “havia sido censurada pelo regime de Perón sob acusação de ‘ateísmo’”, relatam Laura Ayerza de Castillo e Odile Felgine, no livro “Victoria Ocampo” (Circe, 340 páginas, tradução de Roser Berdagué). As conferências sobre “liberdade de expressão” deveriam ser canceladas.

Mesmo “nervoso”, em 30 de junho de 1949, Camus viaja para a América do Sul, onde dará palestras no Brasil, Argentina, Chile e Uruguai. No navio, viajando de primeira classe, sempre procurava conversar com pessoas mais pobres, que viajavam sem nenhum luxo. Ele apreciava conversar com desconhecidos, e sem se identificar, como se quisesse captá-lo em estado puro, sem a mediação do mito do escritor célebre.

Na Argentina, estava sua melhor amiga na América do Sul, Victoria Ocampo, mas ele não tolerava o governo autoritário e moralista de Perón. Por isso preferiu ficar mais tempo no Brasil.

Na terra de Pelé, que ainda não jogava em clubes (tinha 9 anos), Camus pediu “para assistir um jogo de futebol”. Ficou surpreso com a pobreza dos que viviam nas favelas. Segundo Olivier Todd, “para ele, o Brasil, ‘terra sem homem’, é uma criação de preço desmedido: ‘aqui a natureza sufoca o homem’”. Quando só, lembra da amante, a atriz espanhola Maria Casarès: “Não amou quem não imaginou uma prisão perpétua para aquela a quem ama’”.

O poeta brasileiro ironizado por Camus

Ao conhecer o poeta Augusto Frederico Schmidt, ficou impressionado com seu tamanho e com sua pança: “Não esperava a provação que se seguiria. O poeta chega, enorme, indolente, olhos pregueados, boca caída. De vez em quando inquietudes, uma brusca agitação, depois ele se joga na poltrona e ofega um pouco. Levanta-se, dá uma volta, volta à poltrona. Fala de Bernanos, Mauriac, Brisson, Halévy. Aparentemente conhece todo mundo. Fizeram maldade com ele. Ele não faz política franco-brasileira, mas criou com franceses uma fábrica de fertilizantes. Aliás, não o condecoraram. Condecoraram todos os inimigos da França naquele país. Mas não ele etc. etc.” O relato está na biografia de Olivier Todd (que não menciona o nome do bardo carioca). A história também é contada em “Albert Camus” (Seuil, 694 páginas, tradução de Marianne Verón), de Herbert R. Lottman.

Augusto Frederico Schmidt, poeta brasileiro: pesava 140 quilos? | Foto: Reprodução

Laura Ayerza e Odile Felgine transcrevem trecho de anotação de Camus, que, no Brasil, “ceou com um poeta católico de 150 quilos”. Trata-se de Augusto Frederico Schmidt. O poeta, rico e com motorista (dirigia um Chrysler), disse ao francês: “Somos um povo pobre, miserável, em nosso país não existe luxo”.

Camus sorri e fala com seus interlocutores. Mas não está nada bem: “O que ficou claro para mim ontem, e finalmente, é que desejava morrer”. Depois, anotou: “Obrigado a reconhecer que, pela primeira vez em minha vida, estou em plena ruína psicológica. O duro equilíbrio que resistiu a tudo desmoronou apesar de todos os meus esforços. Em mim, são águas turvas, em que passam formas vagas, em que se dilui minha energia. É o inferno, de uma certa maneira, essa depressão. Se as pessoas que me acolhem aqui sentissem o esforço que faço para parecer normal, fariam pelo menos o esforço de um sorriso”. Olivier Todd diz que, “em público, o ator Camus esconde um homem apavorado”.

No Rio de Janeiro, ao notar a empolgação de Gilda Gabaglia, Camus pede que se aproxime. A brasileira havia lido vários de seus livros. “Ela cita Camus para Camus: ‘Tenho pressa em chegar ao país em que o sol queima as perguntas’”.

Albert Camus é recepcionado por Oswald de Andrade (à esquerda) no Brasil, em 1949 | Foto: Reprodução

No Rio, um participante da Guerra Civil Espanhola, que havia conhecido Camus em Paris, percorreu 100 quilômetros para revê-lo. “Aproveitara para me trazer um maço de cigarros que tinha escolhido porque se aproximava mais do ‘gusto francese’. Fiquei comovido até as lágrimas. A sala me tornara retrátil, mas aquele [homem, seu gesto] me libertava. E, afinal, foi para ele que falei”, escreveu Camus numa carta para sua mulher, Francine.

Na palestra, Camus disse: “A Europa deve reaprender a modéstia. Pois quem tem esperança na condição humana talvez seja um pouco louco. Mas quem perde a esperança nos acontecimentos com certeza é um covarde”. Numa carta para René Char, ele escreve sobre São Paulo: “As térmitas vão devorar os arranha-céus”.

Um dos encontros de Camus na América do Sul é com o poeta espanhol Rafael Alberti. “Sei que ele é comunista, afinal explico-lhe meu ponto de vista. Mas a calúnia fará o resto e um dia irá me separar daquele homem que é e deveria continuar sendo meu camarada”. O relato está no livro de Olivier Todd. Laura Ayerza e Odile Felgine acrescentam outro trecho da fala do escritor: “Estamos na era da separação”.

Camus não quer mas acaba recebendo um cachê de 45 mil francos da Universidade da Bahia. Andrea Calamari diz que, no Brasil, esteve numa sessão de macumba. Oliver Todd anota: “O autor confere uma importância singular à macumba, dança frenética” (não teria sido candomblé? Herbert E. Lottman, na página 479, também fala em macumba).

Villa Ocampo: casa onde Albert Camus ficou tranquilo e relaxado | Foto: Reprodução

Escritor não se submete à censura argentina

De volta à Argentina, a embaixada francesa alerta Camus que a revista “Sur” e Victoria Ocampo não são bem-vistas pelo governo argentino. Os diplomatas não sabem, informa Andrea Calamari, que a escritora e editora “era a única razão para sua visita ao país”.

Em Buenos Aires, ao ser perguntado pelo adido cultural francês sobre o que pretendia falar, Camus responde que “sobre a liberdade de expressão”. O funcionário adverte que deverá submeter o texto à censura do governo. O escritor não aceita se submeter à ditadura argentina, pois considera que “a liberdade de expressão é inegociável”.

Ante a pressão, Camus desiste das conferências e vai para a casa de Victoria Ocampo, em San Isidro, e decide não sair de lá.

Andrea Calamari sublinha que a amizade entre Victoria Ocampo e Camus “se fez a partir das coincidências éticas, políticas e estéticas — acima dos nacionalismos”.

Bioy Casares, Victoria Ocampo e Jorge Luis Borges

Mais tarde, Victória Ocampo disse: “Camus sabia perfeitamente a quem dava sua adesão e por que — aqui como em outras partes do mundo. E sua adesão foi sempre aberta, clara. Não compactuava. Compreendia muito bem, ademais, que nós estávamos já maduros para o simbolismo de ‘A Peste” e que éramos um país paralisado por uma crescente praga; uma praga que minava nosso organismo moral”. A escritora está se referindo ao peronismo.

Camus notou que a casa de Villa Ocampo era no estilo de “E o Vento Levou” e dormiu tranquilamente. Ele notou “o luxo antigo, refinado e confortável. “No outro dia, ao despertar, encontrou no seu escritório cartas que Victoria Ocampo havia deixado mais cedo. Era habitual que Victoria escrevesse a seus hóspedes para fazê-los sentirem-se em casa, mas com uma distância prudente para não avançar sobre sua intimidade”.

No seu diário, Camus escreveu: “V. [Victoria] me envia cartas dentro de sua casa. Depois, os jornais. A imprensa argentina silenciou ou suavizou minhas declarações de ontem à tarde. Almoço com o diretor de ‘La Prensa’ (oposição), tentativas policiais, etc. À tarde, quarenta pessoas”.

Victoria Ocampo e Sur

Andrea Calamari conta que “mais de quarenta intelectuais argentinos não quiserem perder a oportunidade de falar com Camus. Quando todos se forem, os dois comeram a sós, escutaram música (“O rapto de Lucrécia”, de Britten) e poemas de Baudelaire gravados por Victoria”.

Em seguida, Camus recolheu-se para dormir. Está relaxado, tranquilo. No diário, relatou que queria ficar em San Isidro até o dia de seu regresso para a França. “Para evitar essa luta contínua [as palestras, as conversas com as pessoas] que me esgota. Há paz nesta casa”.

Numa carta, postada em Montevidéu, Camus declarou para Victoria Ocampo: “Vivemos há milhares de quilômetros um do outro, mas sabemos muito bem que há uma só pátria”.

Ao voltar para a França, Camus manteve seu contato com a revista “Sur” e com Victoria Ocampo

Quando Victoria Ocampo foi presa, em 1953, no governo de Perón — os dois eram considerados “inimigos” —, houve repercussão internacional. Jorge Luis Borges e outros escritores foram presos e humilhados publicamente. A polícia “saqueou” a sede de “Sur”, na Rua Viamonte, e a casa da editora foi vasculhada. “Camus, que estava na França, foi um dos primeiros a reagir. Considerava ‘um dever de solidariedade’ com ‘uma antiga companheira’ a luta por sua libertação e, com essa finalidade, convidou numerosos escritores — entre eles Mauriac, André Maurois, Roger Martin du Gard e Paulhan — a assinarem uma carta de protesto destinada ao embaixador argentino em Paris, sublinhando a importância da contribuição de Victoria Ocampo à literatura por meio da revista ‘Sur’”.

Em 1956, Victoria Ocampo visitou Paris e agradeceu Camus por ter ajudado a pressionar o governo de Perón por sua libertação. “Foi a última vez que viu aquele homem cuja retidão moral Victoria admirava tanto”, registram Laura Ayerza e Odile Felgine. “Este homem é como uma bússola”, disse a editora de “Sur”.

Revista Sur, Julio Cortázar e Mario Vargas Llosa

Julio Cortázar (da Argentina) e Mario Vargas Llosa (do Peru): “filhos” da revista e da editora “Sur” | Foto: Reprodução

Fundada em 1931, a “Sur” é, possivelmente, a mais importante revista de cultura da América do Sul. Entre seus colaboradores estavam Jorge Luis Borges, Bioy Casares, Silvina Ocampo e escritores de vários outros países, como André Gide, Thomas Mann, Nathalie Sarraute, T. S. Eliot, Paul Claudel, Martin Heidegger, Ezra Pound, André Malraux, Evelyn Waugh, Lawrence Durrell, Henry Miller, Camus, Roger Caillois, Octavio Paz.

Depois da revista, Victoria Ocampo criou a Editora Sur, que publicou García Lorca, Alfonso Reyes, Ernesto Sabato, José Bianco, Juan Carlos Onetti, Horacio Quiroga, Silvina Ocampo, Adolfo Bioy Casares. María Esther Vázquez, no livro “Victoria Ocampo. O Mundo Como Destino” (Seix Barral, 316 páginas), informa que “a editora Sur publicou pela primeira vez em espanhol a D. H. Lawrence em 1933 (algumas traduções de Lawrence pertencem a Leonor Acevedo de Borges, a mãe de Jorge Luis Borges). O mesmo ocorreu com Aldous Huxley, ‘Contraponto’ apareceu em 1933. ‘A Condição Humana’, do comunista André Malraux, que tanto assustava à Cúria, foi publicado em 1936, o mesmo ano da publicação de Jung. ‘Orlando’ e “Um Teto Todo Seu”, de Virginia Woolf, traduzidos por Borges, apareceram em 1937e 1938”. Borges escreveu sobre “Orlando”: “É a novela mais intensa de Virginia Woolf e uma das mais singulares e desesperantes de nossa época”.

James Joyce também foi publicado por Sur. “Ulisses” foi considerado por Victoria Ocampo — quiçá inspirada por Virginia Woolf — como “um esplêndido fracasso” (“esplêndido”, claro, suavizando “fracasso”, porque, como se sabe, o romance se tornou um tremendo sucesso. Portanto, aparentemente, a fala da editora-escritora não é uma crítica). Obras de T. E. Lawrence, Faulkner, Graham Greene, Dylan Thomas, Vladimir Nabokov, Norman Mailer, Jack Kerouac também saíram pela Sur.

Octavio Paz, poeta e ensaísta: Victoria Ocampo fundou um “espaço espiritual” | Foto: Reprodução

Os escritores jovens, como Julio Cortázar e Mario Vargas Llosa, ficavam à espera da revista “Sur” e dos livros publicados pela editora. “‘Sur’ ajudou a nós, estudantes entre as décadas de 1930 e 1940, que buscávamos um caminho, titubeando, com tantos erros, e tantas abjetas facilidades e mentiras”.

Vargas Llosa diz que, no Peru, esperava, com extremo interesse, a publicação da revista. “Era o único meio que se tinha para inteirar-se do que se fazia em matéria literária no mundo”. Na Espanha de Franco, uma ditadura, os espanhóis também eram leitores de “Sur”. “Que dívida temos com ‘Sur’”, disse Rafael Conte.

Octavio Paz (Nobel de Literatura de 1990) deu seu testemunho: “Para quase todos os escritores hispano-americanos a vida e a obra de Victoria Ocampo são inseparáveis da revista ‘Sur’. E ‘Sur’ foi, para nós, templo, casa, lugar de reunião e de confrontação. Como não ver em sua diretora o pilar da casa das letras? Pilar, suporte ou cariátide, Victoria é algo mais: a fundadora de um espaço espiritual. Porque ‘Sur’ não é só uma revista ou uma instituição: é uma tradição do espírito. As literaturas da liberdade dependem sempre dessa ou daquela ideia de liberdade: ‘Sur’ é a liberdade da literatura frente aos poderes terrenos. Algo menos que uma religião e algo mais que uma seita. Victoria Ocampo é um pilar mas não é uma criatura mitológica: tem braços e mãos, vontade e imaginação, cólera e generosidade. E com tudo isso há o fato de que ninguém antes havia feito [uma revista da qualidade da ‘Sur’] na América”.

María Esther Vázquez diz que os chefes de redação de “Sur” foram Eduardo Mallea, o primeiro — com Guillermo de Torre como secretário —, José (Pepe) Bianco (durante 23 anos), Borges, Raimundo Lida, Ernesto Sabato, María Luisa Bastos e Enrique Pezzoni. Mas a “alma” da revista, aquela que conectava escritores e intelectuais, era mesmo Victoria Ocampo, a amiga de Camus. Ela era conservadora, mas, na vida cotidiana, era, digamos assim, revolucionária. Casou-se e teve uma vida livre, com vários amantes, como o escritor francês Pierre Drieu la Rochelle.

E, afinal, quem era melhor escritora: Victoria Ocampo ou Silvina Ocampo (cujos livros, extraordinários, estão saindo no Brasil pela Editora Companhia das Letras)? Por certo, a segunda. Mas, como agitadora cultural e mecenas das artes, a primeira é insuperável.

Conto uma história pessoal: no dia 16 de março de 2013, num sábado, comprei a biografia “Victoria Ocampo”, de Laura Ayerza de Castillo e Odile Felgine, na ótima Livraria Cuspide, na Recoleta, em Buenos Aires. Comecei a ler na Argentina, grifando, como é o meu hábito. Parei de ler, interessado noutro livro, sobre um argentino que financiou a construção da Escola de Frankfurt. Quando voltei ao Brasil, ao retomar a leitura, descobri que várias páginas estavam em branco. Parei de ler na hora, levemente irritado. Só voltei a ler a excelente biografia em 2014, quando voltei à terra do grande poeta Oliverio Girondo (o meu preferido entre os argentinos) e comprei outro exemplar. Antes de adquiri-lo, verifiquei página por página. Já “Victoria Ocampo — El Mundo Como Destino”, de María Esther Vázquez, comprei numa banca de livros usados, na Plaza Itália, em Palermo, Buenos Aires (estava frio: 8 graus). Na mesma banca, achei o livro, de Jeffrey Meyers, que relata que uma brasileira ajudou a publicar o primeiro livro de George Orwell.