O professor de Oxford e Stanford cobra princípios e denuncia que Google, Facebook, Amazon e Apple estão exercendo uma vigilância semelhante à da Stasi

Timothy Garton Ash, professor de Oxford e Stanford, lança livro no qual sugere princípios (e não regras) para umaconvivência democrática na internet; no momento, sustenta, a liberdade de expressão corre sérios riscos

Numa entrevista a João Céu e Silva, do jornal “Di­ário de Notícias” (“Garton Ash: ‘A internet é o maior esgoto da história mundial’”), de Portugal, na edição de segunda-feira, 6, o historiador britânico Timothy Garton Ash, professor de Oxford e Stanford, diz que a internet é “uma bênção e uma maldição”. “A internet foi um tremendo ganho para a liberdade de expressão e de comunicação em todo o mundo e um momento nunca antes verificado na história do homem. Mas é preciso ponderar que poder comunicar-se através dos smartphones que estão no bolso de cada um é também um perigo pois convive-se com ame­aças de morte, assédio e discursos alucinados. Como escrevo no livro [“Liberdade de Expressão — Dez Princípios Para um Mundo In­ter­ligado”, Temas e Debates, 512 pá­ginas], a internet é o maior esgoto da história mundial, daí que a questão fundamental que quis a­nalisar seja a de como maximizar a oportunidade e de minimizar os riscos”.

Garton Ash sublinha que “a luta global é atualmente pelo poder da palavra e tem lugar num mundo em que centenas de milhares de pessoas ficam todos os dias interligadas online. Verifica-se uma guerra de ideias e pelo controle entre a Europa e os Estados Unidos por um lado e a China pelo outro”. A China censura a internet, mas o controle, como o Muro de Berlim, vai cair. “Levará décadas, mas assistiremos ao momento dramático da queda do grande firewall.”

Uma das principais preocupações de Garton Ash, pesqui­sador que nada tem de apocalíptico, é “o fato de estarmos a lidar com super poderes privados: Go­ogle, Face­book, Amazon ou Ap­ple. Que fazem fortunas através de serviços gratuitos enquanto recolhem uma quantidade impressionante de informações sobre os utilizadores e as vendem a anunciantes. É uma nova espécie de vigilância! O que acontece quando as agências de segurança aparecem unidas a esses superpoderes privados faz com que aquilo que ambas as partes sabem sobre o cidadão seja em muito além do que, por exemplo, a política secreta Stasi [da Alemanha O­riental] extraía com a sua máquina enorme. Considero isso um grande perigo para a liberdade de expressão, que está diretamente ligado à privacidade. A internet cria tanto oportunidades gigantescas como grandes novos perigos”.

É preciso abrir os olhos para o “desafio ético do algoritmo”, sugere Garton Ash. “O exemplo clássico é o noticiário fornecido pelo Facebook, por onde cada vez mais jovens têm acesso ao que acontece no mundo. É aí que o algoritmo ganha muita importância, pois presta-se a influenciar fortemente — como se fosse uma câmara de eco — o que interessa a uma comunidade de amigos e o que se torna um perigo para a democracia”.

O historiador sugere que, se é preciso “regulação em assuntos sobre a privacidade, pedofilia ou pornografia, também é fundamental exigir o compromisso por parte das grandes empresas americanas para com esta questão ética, pois assim teremos mais facilidade em reajustar os seus algoritmos a serem mais transparentes”.

A luta pela adoção de princípios, se parece inglória, é necessária. Princípios, frisa Garton Ash, “são importantes para as sociedades civilizadas e permitem alguma harmonia no convívio. Por exemplo, o de não aceitar a intimidação violenta ou violação de privacidade. Nós, os cidadãos da internet, necessitamos ver esclarecida o que é a rede e temos de pressionar os governos, bem com os super poderes privados e organizações internacionais, para se reunirem em torno de certos princípios”.

O repórter do “DN” pergunta se “a internet tornou o mundo menos democrático”. “Estamos a experimentar uma reação contra o aumento de liberdade e de liberalização da política e da sociedade e às novas possibilidades que a internet ofereceu. O que Putin [da Rússia] ou Erdogan [da Turquia] estão a protagonizar é essa contestação às liberdades. Resta ver como é a resposta das pessoas.” A impressão que se tem é que, embora tenham excesso de informações, os indivíduos não têm uma formação adequada para entendê-las e definir uma posição, digamos, “moral”.

Literacia na internet

A liberdade de expressão precisa ser, mais do que nunca, ensinada. Garton Ash cita o filósofo francês Michel Foucault, que disse que “a liberdade de expressão tal como a navegação têm de ser aprendidas”. Nos “mares tempestuosos da internet”, é preciso esclarecimento e posicionamento. “Devemos ter co­mo objetivo saber que em democracia também se pode conviver com os discursos do ódio. É o que cha­mo de civilidade na navegação no mar alto. Penso que deve e pode ser ensinado até nas escolas algo mais específico: a literacia da internet e da comunicação social. Os jovens são invadidos pela informação nos smartphones e têm de aprender a escrutinar entre o verdadeiro e o falso, o valioso e o lixo.” (Literacia é a capacidade de cada indivíduo compreender e usar a informação escrita; segundo a Wikipédia, a expressão literacia digital “pretende designar o uso eficaz da tecnologia digital, tal com os computadores, as redes informáticas.)

Os jornais, como o “New York Times” e o “Washington Post”, são em geral sérios e escrupulosos na publicação das notícias. “Mas o problema é outro, o de não serem capazes de entrar nas câmaras de eco da internet.” Garton Ash menciona a história, inventada ou vulgarizada pelo presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, de que Barack Obama não teria nascido no país que presidiu. “É uma das leis da propaganda criar uma solidariedade na indignação entre os que ouvem as falsidades.”

A União Europeia pode funcionar como um centro de resistência aos “super poderes privados que as empresas dos Estados Unidos impõem aos cidadãos que estão interligados”. Segundo Garton Ash, a liberdade de expressão está sob “ataque em todo o planeta”, inclusive na Inglaterra, na França e nos Estados Unidos, não apenas na Rússia, China e Índia.

Sobre Donald Trump, que tenta intimidar a imprensa, Garton Ash sublinha que “a imprensa americana e as universidades estão a dar uma boa resposta à situação”. É preciso apresentar respostas eficazes às “notícias falsas da pós-verdade”.

A imprensa tem dificuldade para se tornar uma fonte de esclarecimento, porque tem sido confrontada de maneira direta — não só por Donald Trump, mas também pelos mais sutis poderes privados, que criam uma ideia de que todos estão participando, democraticamente, ainda que, por vezes, manipulados —, mas a comunicação social, na visão de Garton Ash, é decisiva para que a internet seja efetivamente democrática, e não um simulacro de democracia. “A internet possibilitou inúmeras plataformas de liberdade de expressão mas o que daí resulta é uma fragmentação e muitas narrativas emocionais que captam muitas pessoas enquanto se verificou a quebra do modelo do jornalismo tradicional. Ou seja, os jornais estão a lutar pela sobrevivência, e de qualquer maneira, para prenderem os seus leitores online e aumentarem as receitas publicitárias. Estes dois efeitos causaram uma erosão na esfera pública, portanto a tarefa em democracia é ajudar a comunicação social e restabelecer o entendimento de que contar uma história com fatos verdadeiros é importante. Tal como ser capaz de levar a sua versão até às câmaras de eco da internet para que as pessoas prestem atenção. Esse é o grande desafio do atual jornalismo.”