História do pai que matou o filho em Goiânia ecoa narrativa do romance “Indignação”, de Philip Roth
19 novembro 2016 às 10h09
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Para escapar da tirania de um pai amoroso, Marcus Messner vai estudar numa universidade distante, onde apaixona-se por uma garota com problemas mentais e se torna vítima (e agente) do moralismo americano
“Não sabia que existiria a lembrança e muito menos que a lembrança seria tudo. Não é a memória que se extingue aqui, é o tempo. Tudo que existe é o passado rememorado — não revivido, note, na forma direta que as sensações nos trazem, mas apenas reencenado.”Marcus Messner, personagem de “Indignação”, romance de Philip Roth
O que se lerá a seguir não é exatamente uma resenha e, por isso, darei informações que não se fornece em comentários literários, para não atrapalhar possíveis leituras (advirto: se vai ler o romance examinado, não leia este texto). Anuncia-se, para as próximas semanas, ao menos segundo trailers, o filme “Indignação”, de James Schamus. A crítica admite que se trata de uma bela película, ainda que ressalve que Philip Roth continua muito difícil de ser adaptado com, digamos, “fidelidade” para o cinema.
“Indignação” (Companhia das Letras, 171 páginas, tradução de Jorio Dauster) é um dos romances (de formação) curtos de Philip Roth, o maior escritor americano vivo, ao lado da prolífica Joyce Carol Oates (escreve bem até sobre boxe). Não está à altura de “O Complexo de Portnoy”, “O Teatro de Sabbath”, “Complô Contra a América” (quase uma profecia sobre o Pato Donald Trump, que, como Richard Nixon, tem pinta de que renunciará ao mandato) e “Pastoral Americana”. Ainda assim, é uma das pequenas joias da coroa da literatura americana.
Não convém contar, mas, como estaremos ecoando um caso real (leia o último parágrafo) — pois a vida imita a arte na mesma proporção que a arte imita a vida —, deixemos às claras: Philip Roth admite que seu romance é filho, em termos de forma, do romance “Memórias Póstumas de Brás Cubas”, de Machado de Assis, o escritor que, à sua maneira, reinventou a literatura patropi e a Língua Portuguesa-Brasileira. Vá lá: a ironia do mágico do Cosme Velho, enteada da prosa do irlandês Laurence Sterne, está ligeiramente ausente da história americana, que é mais seca, concisa e sem meias-voltas.
O livro de Philip Roth é uma denúncia candente do moralismo americano, sublinha a crítica. Por certo, é. Sobretudo, é literatura de primeira linha. Não se deve exigir que um autor escreva bem, porque escrever bem é o mínimo que se espera de um prosador decente (e até dos indecentes). Mas, putz!, como o autor de “Indignação” escreve bem, tão diferente de outros escritores, que, putz!, como escrevem e pensam mal.
O que se pretende contar, e se conta, é a história de um homem, Marcus Messner. Trata-se quase de um menino. É um judeu, filho único. Trata-se de um gênio escolar, que, no ensino médio e nas duas faculdades nas quais estudou, só tira nota 10. Ele quer se formar em Direito, embora se comporte, na faculdade, como um livre pensador, ateu, citando Bertrand Russell, o de “Por Que Não Sou Cristão” (L&PM, 256 páginas, tradução de Ana Ban), num embate com uma espécie de pró-reitor de assuntos estudantis.
Marcus Messner não quer apenas estudar. Ele quer ficar longe da família, sobretudo do pai, um açougueiro kosher. Messner pai era um bom homem, mas, possessivo, temia perder o filho único. Queria-o por perto, com receio de que algo grave lhe acontecesse. O garoto começou a estudar na Universidade Robert Treat, no centro de Newark, em Nova Jersey. Depois, para ficar mais longe dos pais, entrou para a Universidade Winesburg, em Ohio.
O narrador, Marcus Messner — tão suspeito quanto Brás Cubas, porém mais “verdadeiro”, talvez porque menos sutil do que a personagem patropi —, explica-se: “Eu era um estudante prudente, responsável, diligente, cioso, com notas excepcionais”. Assinala uma coisa que aprendeu com o pai, tirânico em sua loucura em proteger o filho: “… a gente faz o que tem de fazer”.
No livro “Ensaios” (Penguin & Companhia das Letras, 610 páginas, tradução de Rosa Freire D’Aguiar), de Montaigne, há o célebre capítulo “Sobre a afeição dos pais pelos filhos”. O filósofo francês escreve que os pais amam os filhos de maneira obsessiva. “Não é de espantar que, em sentido inverso, o amor dos filhos pelos pais não seja tão grande. Junte-se a esta outra consideração aristotélica: quem faz o bem a alguém ama-o mais do que é amado por ele, e aquele a quem se deve ama mais do que quem deve. (…) As coisas que mais nos custaram nos são as mais queridas. E dar custa mais que receber” (páginas 237 e 238). Adiante, Montaigne anota: “Não devíamos nos meter a ser pais se isso nos amedronta”. O psicanalista francês Jacques Lacan anotou: “O amor é o encontro para dar o que o que não se tem a alguém que não o quer”.
Livrando-se do pai
Ocorre que Marcus Messner (cujo pai lembra a mãe de “O Complexo de Portnoy”, quiçá ligeiramente), apesar do cerco protetor promovido pelo pai (um genitor pós-Kafka, ma non troppo) e da raiva que sentia, também amava o pai, pelo menos até determinado período.
Por que, de repente, o pai de Marcus Messner “enlouquece” de amor pelo filho, avaliando que o mundo o tragará se não estiver por perto para protegê-lo? Nunca se sabe a causa exata dos problemas, diríamos, psico-emocionais. O protagonista assinala: “E o que tinha enlouquecido meu pai era a preocupação de que seu adorado filho único estivesse tão despreparado para os perigos da vida quanto qualquer outra pessoa prestes a se tornar adulto; enlouquecido ao fazer a assustadora descoberta de que um menino cresce, fica alto, supera seus pais, e que não é mais possível mantê-lo sob controle, que é necessário cedê-lo ao mundo”. Tornar-se carcereiro dos filhos equivale, no fundo, a ser carcereiro de si mesmo.
Certa vez, Marcus Messner, o Marc, vai à biblioteca. O pai desespera-se. O pós-adolescente estava lendo, tranquilamente, “Declínio e Queda do Império Romano” (Companhia das Letras, 504 páginas, tradução de José Paulo Paes), o fascinante livro do historiador britânico Edward Gibbon. Ao voltar para casa, com o pai quase infartado, travam uma áspera discussão. “Então, papai, qual é a razão para tudo isso?” O pai responde: “A razão é a vida, onde o menor passo em falso pode ter consequências trágicas”. A frase é de primeira, tem consistência. Mas não se pode viver pelo outro e de acordo com os temores do outro. É impossível tornar-se adulto com extrema proteção. Indivíduos hiperprotegidos às vezes se tornam adultos pueris para sempre. O que Marcus Messner quer é assumir-se como adulto, o que, dentro de sua casa, com o pai forçando-o a ser-permanecer criança, não consegue. Desgarra-se, para se salvar. “Estava ansioso para me tornar adulto, um adulto educado, maduro e independente, exatamente aquilo que vinha causando terror em meu pai”, afirma Markie.
Na universidade, suposto terreno de liberdade, o que Marcus Messner, judeu que não professava a fé judaica, mais fazia era estudar. Não bebia nada, exceto água, não fumava e não usava droga. Em busca de uma identidade, de firmar um eu chamado Marcus Messner, não convivia bem com a maioria dos colegas. Aliás, até convivia, mas não dava muita importância ao que pensavam e como agiam.
Enquanto Marcus Messner estudava a história americana, até 1865 — quando acabou a Guerra de Secessão e o presidente Abraham Lincoln foi assassinado —, os Estados Unidos, no início da década de 1950, movia mais uma guerra, agora na Coreia, contra os comunistas chineses, coreanos e soviéticos. Um dos motivos de estar na universidade era livrar-se de ser recrutado para a batalha na Ásia.
Eva americana
A sociedade americana é puritana, o que não quer dizer pura; não há sociedades puras, o que há, muitas vezes, é uma retórica sobre a pureza, sobre a sua, por assim dizer, “necessidade”. O caso entre o ex-presidente Bill Clinton e Monica Lewinsky provocou comoção nacional, não pelo fato em si, mas por que os americanos (fala-se da média) são moralistas e transformaram um casinho numa coisa monstruosa. Demoniza-se aquilo que se rejeita — mas às vezes se faz, guardando a moral no bolso da calça — comumente para justificar o combate. A história de ambos ganhou uma crítica luminosa no romance “A Marca Humana” (Companhia das Letras, 456 páginas, tradução de Paulo Henriques Britto), de Philip Roth. “Indignação”, além da história de Marcus Messner, um judeu colocando-se no mundo, às vezes hostil, é também a história de uma sociedade, a americana, que busca se “curar” pelo escândalo, por sua denúncia e, claro, a posterior condenação de seus protagonistas. A redenção está na destruição — e não na assimilação ou aceitação — do que é incômodo, diverso.
De repente, quando Marcus Messner começa a adaptar-se à Universidade Winesburg, surge uma espécie de Eva, a bela Olivia Hutton. “Pálida e esbelta, com cabelos castanhos-escuros”, a jovem é uma atração.
Marcus Messner, ainda virgem aos 19 anos, sai para jantar com Olivia Hutton, de 20 anos. Fica mesmerizado. “Relaxe”, afirma a belezura. O garoto admite: “Não sei como relaxar”. Descobrem o sexo, quer dizer, o provinciano de Newark delicia-se com a experiência da parceira, uma ás do fellatio.
A mulher avançada que era Olivia Hutton acaba por escandalizar Marcus Messner. A garota lhe diz: “Fiz aquilo porque gostei muito de você”. O moralista que dominava seu ser, como se fosse seu pai (ele chega a pensar: “Eu era o meu pai, eu me transformara nele em Ohio”), assusta-se. Apavora-se ainda mais ao ouvir: “Passei três meses numa clínica de reabilitação. (…) Queria fazer aquilo [fellatio] para você não porque sou uma vagabunda, mas porque queria te fazer uma coisa boa. Queria te dar aquilo”. Uma mulher falando em dar prazer a um homem! A história revolve a sociedade dos Estados Unidos do início da década de 1950.
O que acontecera é que a moderna Olivia Hutton, apesar de seus problemas mentais, havia conseguido aquilo que o pai e a universidade não haviam conseguido: tornara Marcus Messner um homem, tanto pela descoberta do sexo quanto pela descoberta do “outro”. Até ali, por assim dizer, ele “via-se”; dali em diante, acordou para o outro, ao menos para Olivia Hutton, sobretudo para a diferença entre os seres. “Eu não compreendia ninguém nem nada”, admite o estudante apetente para a ciência mas relativamente inapto para a vida.
Entre apaixonado e assustado, Marcus Messner olha com espanto para um pulso de Olivia Hutton. Ela cortara-o, pois tentara se matar. Era doente, mas também incompatível com a moralidade dominante — masculina — de seu tempo.
Bertrand Russell
Se está feliz, dada a descoberta da paixão ou do amor, Marcus Messner não para nos quartos de seus colegas. Está sempre de mudança de quarto na universidade, alegando inadequação com o comportamento dos companheiros. Um ouve música erudita num volume muito alto, o outro praticamente não conversa. O inferno são os outros, sugere o narrador (seu próprio avaliador). Ao perceber o “problema”, que não é visto assim pelo jovem, o diretor de Alunos, Hawes D. Caudwell, chama-o para uma conversa.
A contragosto, Marcus Messner vai ao encontro de Caudwell, que lhe pergunta porque não informou que era judeu no quesito preferência religiosa. “Porque não prefiro nenhuma. Porque não tenho preferência por uma religião em vez de outra”, contrapõe o estudante, que se prepara para ser advogado ou cientista político.
Inquirido se reza, Marcus Messner sustenta que não: “Não acredito em Deus e não acredito em preces. (…) Sou amparado pelo que é real e não pelo que é imaginário. A oração, para mim, é algo absurdo”. Caudwell fica perplexo e indignado.
Ao ser apontado como intolerante por Caudwell, o estudante insinua que a palavra “in-dig-na-ção” cantava dentro dele. “Certamente não preciso de nenhum deus que me diga como me conduzir. Sou perfeitamente capaz de levar uma vida moral sem acreditar em crenças impossíveis de comprovar e que desafiam nossa credulidade.” É quando cita, para o desagrado do diretor, Bertrand Russell, especificamente o livro “Por Que Não Sou Cristão”. “Se tudo precisa ter uma causa, então Deus precisa ter uma causa. Se é possível existir alguma coisa sem uma causa, tanto pode ser o mundo quanto Deus”, escreveu o filósofo e matemático, que ganhou o Nobel de Literatura.
Marcus Messner diz a Caudwell, os dois irritados, que “o medo, para Bertrand Russell, é o pai da crueldade”. Em seguida, fulmina o atônito diretor: “Devemos conquistar o mundo pela inteligência, diz Russell, e não nos deixando escravizar pelo terror que vem de vivermos nele”. O educador frisa que o filósofo inglês é um “indivíduo amoral”.
Ante a insistência de Caudwell, que não quer compreendê-lo, e sim moralizá-lo, sugerindo que é incapaz de socializar-se, Marcus Messner, como se estivesse enfrentando um segundo pai, esclarece que não é nem “descontente” nem “rebelde”. Logo, aparentemente não de modo intencional — o narrador é sempre suspeito —, o garoto vomita na sala do diretor. Era a repulsa do organismo à “moral” do diretor.
Num ponto ao menos, Marcus Messner concorda com Caudwell: “Onde quer que você vá sempre haverá alguma coisa te atazanando”.
Pacto faustiano
Mais tarde, um judeu consegue contato com Marcus Messner. É Sonny Cottler. Com seu espírito analítico, o filho do açougueiro conclui: “O fato de Cottler, aparentemente, não ter nenhuma fraqueza me deixava com a estranha sensação de que ele era alguém deficiente em tudo”. Hábil, o novo amigo lhe diz: “Se aprender a ser um pouco mais desligado, as coisas vão correr melhor para você na Winesburg. Fique calado, encoste o c… na parede, sorria — e aí faça o que quiser”.
Cottler havia acabado de conquistar Marcus Messner, mas, ao chamar Olivia Hutton de “Rainha do Boquete de 1951” e de “meio doidinha”, levou-o ao paroxismo. Cottler por certo não era leitor da poesia de Emily Dickinson — “A Verdade há de deslumbrar aos poucos/Os homens — pra não cegá-los” — e, apesar de sua beleza e esperteza, era deselegante.
Quando é preciso retirar o apêndice supurado de Marcus Messner, Olivia Hutton cuida dele no hospital, visitando-o todos os dias (e com novos fellatios). A chegada da mãe interrompe a felicidade. Ela informa que o pai do jovem está “ficando louco”.
A mãe de Marcus Messner conta que seu pai tem “medo [e raiva] o tempo todo”. “Estou totalmente confusa sem saber se ele é um homem ou dois.”
Ao ouvir a mãe, que diz que vai se separar, Marcus Messner descobre que, “ao sair de casa, salvou sua vida” e “a vida” de seu pai”. “Porque eu teria dado um tiro nele para fazê-lo se calar. Poderia dar-lhe um tiro agora pelo que estava fazendo com ela. No entanto, o que ele fazia consigo próprio era pior. E como se atira em alguém cujo surto inicial de loucura aos cinquenta anos estava não apenas prejudicando a vida da mulher e alterando irreparavelmente a vida do filho, mas também devastando sua própria vida?” É o que pergunta o estudante-narrador.
Ao ver Olivia Hutton, com a cicatriz num pulso, a mãe de Marcus Messner escandaliza-se. Seu filho querido, o protegido — também dela, e não só do pai —, não poderia viver com aquela mulher, jovem e bela, que havia tentado se matar. Era sair de uma loucura, a do pai, e envolver-se noutra loucura, a de Olivia Hutton. Era preciso viver a (e na) “loucura normal” da sociedade. O conformismo é, afinal, a máquina que produz felicidade, do ponto de vista de alguns.
A mãe de Marcus Messner lhe propôs uma espécie de pacto faustiano: ela continuaria com o seu pai, o “demônio louco”, e o estudante abandonaria Olivia Hutton, a suicida. Fizeram o acordo, que o jovem aparentemente não parecia ter condições de cumprir. Ecoando o marido, a sra. Messner diz: “Você, como filho, é perfeito”. Olivia Hutton merece um julgamento talvez verdadeiro mas cruel: “Ela é uma garota repleta de lágrimas. Dentro dela só existem lágrimas”. E insiste em afastá-la: “… a fraqueza de outra pessoa pode destruí-lo tanto quanto sua força. As pessoas fracas não são indefesas. A fraqueza delas pode ser sua força. Uma pessoa tão instável pode ser uma ameaça para você, Markie, e uma armadilha”. Fica-se com a impressão de que pai e mãe haviam se tornado uma só pessoa, com a diferença de que a mãe era racionalista e o pai uma usina de emoções.
Apesar das objeções de Marcus Messner, a mãe continua a peroração: “Você tem que ser maior que os seus sentimentos. Não sou eu que exijo isso de você; é a vida que exige. Se não, você vai ser levado de roldão pelos seus sentimentos. Eles te levarão até o mar e você não será mais visto”. Racionalista, mas um Messner, quer dizer, um poço de sentimentos — no dizer a mãe judia —, Marcus Messner continua a pensar em Olivia Hutton. “E daí, se cortou o pulso?” “Fui apanhado numa armadilha — fiz uma promessa que não posso romper, mas que, se cumprida, vai me destruir!”
Olivia Hutton some e Marcus Messner sai à sua procura. Ela havia sofrido um colapso nervoso, estava grávida e fora internada “num hospital especializado em tratamento psiquiátrico”, informa Caudwell.
Ao pensar sobre Olivia Hutton, Marcus Messner avalia que sua (dele) retidão, assim como a retidão de sua família, era uma tirania. Como se conversasse com sua mãe, que não estava presente, diz ou pensa: “Mamãe, não examine a família para conhecer a causa [da loucura de Olivia Hutton] — examine o que o mundo convencional não considera permissível”. Ele se recrimina por não ter confiado na garota, seguindo valores moralistas que são americanos, mas não necessariamente de cada indivíduo em particular, tão-somente porque ela tomou a iniciativa de fazer sexo oral.
Mortíssimo (o que eu não deveria contar, mas alertei o leitor desde o início), na Guerra da Coreia — expulso da universidade, por ter contratado uma pessoa para participar do serviço religioso da escola em seu lugar, acaba enviado para a guerra dos Estados Unidos no Oriente —, Marcus Messner, ecoando Brás Cubas, pergunta: “Olivia, você morreu? Me responda! Você foi a única dádiva que Winesburg me concedeu”.
Marcus Messner morre aos 19 anos, em 1952. A Guerra da Coreia terminou em 27 de julho de 1953. O moralismo às vezes devasta a beleza do mundo. É uma das coisas que Philip Roth vem dizendo com sua bela e corrosiva literatura. O romance termina com a lição que o pai do jovem judeu vinha tentando pespegar: “… a forma terrível e incompreensível pela qual nossas escolhas mais banais, fortuitas e até cômicas conduzem a resultados tão desproporcionais”.
Resta esperar o filme “Indignação”, que certamente será exibido, se for, no Cine Lumière, no shopping Bougainville. Comenta-se que, embora não seja uma adaptação perfeita, é a mais qualificada de um romance de Philip Roth. O que não se assinala é que é muito difícil adaptar as histórias do escritor. Seu humor corrosivo, de rara sutileza, é muito difícil de ser levado ao cinema, cuja linguagem é mais, quem sabe, chã e rápida.
Suspanto em Goiânia
O comentário do livro decorre do meu suspanto com um caso que ocorreu na terça-feira, 15, em Goiânia, no dia do aniversário de 127 anos da Proclamação da República. O engenheiro Alexandre José Silva Neto, de 60 anos, matou seu filho único, Guilherme Silva Neto, de 20 anos. Eles não se entendiam, as diferenças eram inconciliáveis. O mais velho não aceitava que o jovem participasse de movimentos políticos e queria que apenas estudasse e fosse “alguém” na vida, como um engenheiro mecânico. Há várias coincidências entre a história do romance de Philip Roth e a história goiana. Alexandre Silva e Marcus Messner eram filhos únicos, eram estudantes universitários e ambos tinham conflitos com os pais (cujas histórias remetem a possíveis danos provocados por esquizofrenia). Um morreu com 19 e o outro com 20 anos. Ambos vítimas de uma ideia terrível e devastadora: “não” se pode aceitar as diferenças, em quaisquer campos, entre os homens. Para eliminá-las, começa-se eliminando indivíduos. A arte imita mesmo a vida, assim como a vida imita a arte. A vida é bela e, ao mesmo tempo, terrível. A arte — como um romance de Philip Roth ou como o quadro “O Grito”, do norueguês Edvard Munch — ilumina isto. Ao ampliar a visibilidade da vida, torna as partes felizes e dolorosas mais atraentes e, quiçá, compreensíveis. Sobre famílias, considerando por vezes que se acha que a do vizinho é sempre pior, vale lembrar o dito do romance “Anna Kariênina” (Cosac Naify, 816 páginas, tradução de Rubens Figueiredo), do russo Liev Tolstói: “Todas as famílias felizes se parecem, cada família infeliz é infeliz à sua maneira”.