História de um livro sobre jornalismo e guerra que seu primeiro leitor lapidou e reformatou para futuros leitores

24 junho 2017 às 10h26

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Comprei livro sobre coberturas de guerra pelo jornalismo e descobri que seu ex-dono era um grande leitor. Além de comentários, acrescentou artigos esclarecedores

Comprei o ótimo livro “A Primeira Vítima” (Nova Fronteira, 562 páginas, tradução de Sônia Coutinho), do jornalista Phillip Knightley, pelo portal Estante Virtual. O subtítulo brasileiro é: “O correspondente de guerra como herói, propagandista e fabricante de mitos, da Crimeia ao Vietnã”. Há histórias fabulosas e a obra, portanto, é obrigatória para jornalistas ou interessados em jornalismo. Mas o que quero contar é outra coisa.
O Estante Virtual reúne os principais sebos do país, de Norte a Sul, e seus serviços são de excelente qualidade. Tive um único problema: pedi um livro e o sebo enviou dois, alegando que não tinha mais a obra encomendada, um romance da escritora canadense Elizabeth Smart. Um dos livros era de Paulo Coelho, autor que não me interessa. “A Primeira Vítima” chegou certo, sem problemas. O que me impressionou foi o volume em si.
Seu antigo proprietário era, depreendo, um leitor visceral de política internacional. Alguém, não sei se ele, escreveu na primeira página: ‘“A Primeira Vítima’ é um livro super especial. Não se desfazer dele” (o texto é publicado como está no livro). A tinta é azul. Em seguida, com caneta de tinta preta, outra pessoa — a letra é diferente — acrescentou, depois de “desfazer dele”, a palavra “nunca”.
O autor do livro fez uma série de anotações sobre política internacional, atualizando o livro, que é de 1975 — a edição brasileira é de 1978 —, inclusive sobre o ataque da Al-Qaeda às torres gêmeas de Nova York, em 11 de setembro de 2001. Criando uma espécie de livro dentro do livro, o leitor consciencioso escreveu no final do índice: “Artigo de Paulo Francis — 144 e 562. Fui lá verificar. De fato, ele tirou cópias de artigos de Paulo Francis — sobre Stálin e ditaduras (não colocou o título), de 1980, e um segundo, com o título “Há 40 anos, Dia D selou sorte de Hitler” (“Folha de S. Paulo”, de 6 de junho de 1984) — como complemento para se entender o livro de Phillip Knightley. Dentro do livro há uma série de recortes de jornais, com artigos interessantíssimos publicados na “Folha” e no “Estadão”. Um dos artigos, “Militares vencem a guerra contra a imprensa” (“Estadão”, domingo, 2 de abril de 2000), é de Phillip Knightley.
O homem (sim, não era mulher) que leu “A Primeira Vítima” era culto, atento, cuidadoso e detalhista. Era muito bem informado. Não se contentou em ler o livro de Phillip Knightley. Estudou-o e acrescentou informações, ampliando e atualizando as histórias contadas pelo jornalista. A obra custou 50 reais, mas, dada a leitura do proprietário anterior, que avalio tenha sido o primeiro, tornou-se, para mim, muito valioso.
Comovido com o cuidado do leitor, e acreditando que, se vivo, não venderia o livro, que se tornara uma coisa íntima, uma preciosidade — um diamante para o cérebro, que ele ajudara a lapidar, com o acréscimo de informações —, anotei seu nome e procurei informações na internet. Parece que morreu em 2010. Uma pena.
Li o capítulo no qual Phillip Knightley comenta a cobertura jornalística durante a Guerra Civil Americana, entre 1861 e 1865. Era um jornalismo de baixíssimo nível, com falsificações grosseiras. Americanos do Sul e do Norte e ingleses distorciam os fatos abertamente. Ao grifar os trechos que considero mais importantes, até para facilitar a redação de um comentário, faço-o com cuidado, pensando no que diria o dono anterior, que, apesar de colar textos e rechear o livro com artigos soltos, tratou seu exemplar com o máximo de cuidado.
Os papéis velhos dos jornais me fazem espirrar, me deixam alérgico. Mas, não sei por quê, não consigo retirá-los do livro. Penso em arranjar uma caixa para guardá-los, como lembrança de um homem que era bom leitor, que sabia como ler um livro e reformatá-lo, com acréscimos úteis e perceptivos. Ao mesmo tempo, hesito: acho que devo deixá-los lá. Não sei o que farei, mas começo a amar o livro, e não apenas pelas grandes histórias.