Uma análise mal exposta de Guga Chacra chocou Carlos Sardenberg, que criticou o colega e foi criticado

Em tempos conturbados até pessoas civilizadas às vezes perdem o senso e a delicadeza. Discordar de uma ideia ou de uma informação leva a uma guerra verbal de maneira incontrolável. Há diálogos que, a rigor, não são diálogos, e sim monólogos, com uma voz tentando destruir ou esconder a outra. Pensar diferente, e aceitar que há interpretações distintas dos fatos, deveria ser a regra, mas está se tornando a exceção. A agressividade (a violência se se faz verbo) está se tornando incontrolável e, daí, logo passa à desqualificação do “adversário” — ou, mais precisamente, “inimigo”. Pode-se sugerir que há uma guerra, e não apenas nas redes sociais, não declarada. Até quando? Não se sabe qual será o limite. Porque, em alguns casos, nem as leis conseguem “segurar” os “contendores”.

Porém, e quando a batalha envolve jornalistas que, geralmente, são educados e sensatos? Pior: e quando o debate decorre aparentemente de um contender não ter entendido a fala do outro? Em nome da civilidade, não se deve suprimir o debate, até aquele que é acerbo mas respeitoso. O que se cobra é serenidade e respeito ao outro na exposição de opiniões contrárias. Sobretudo, que o pensamento alheio seja examinado com o máximo de cuidado. Às vezes a “batalha” ocorre porque aquilo que se diz é interpretado de maneira errônea e redutora. É o que parece ter acontecido em recente bate-boca, ao vivo, entre os excelentes jornalistas Carlos Sardenberg — chamado carinhosamente pelos colegas de Sarda —, de 74 anos, e Guga Chacra, de 45 anos.

Carlos Sardenberg e Guga Chacra: faltou ouvir atentamente a fala do outro | Fotos: Reproduções

Na quinta-feira, 3, Sardenberg e Guga Chacra se desentenderam, no programa “Em Pauta”, da GloboNews, a respeito da invasão da Ucrânia pela Rússia de Vladimir Putin.

Guga Chacra disse que, ao adotar uma posição realista, Putin, o ex-agente do KGB (ele diz que não há ex-KGB; hoje, por sinal, FSB), não aceita a entrada da Ucrânia na Organização do Tratado do Atlântico Norte. O presidente russo considera que a adesão é “uma ameaça direta à soberania” da Rússia. Uma aliança com a Otan significa, entre outras coisas, proteção militar. No caso, se a Ucrânia já fizesse parte da Nato, os países-membros já estariam, possivelmente, atacando a Rússia. Teriam a obrigação de defender militarmente o país de Nikolai Gógol e Mikhail Bulgákov, autores, respectivamente, dos belíssimos romances “Almas Mortas” e “O Mestre e Margarida”, que contam com excelentes traduções para o português.

Eis a fala de Guga Chacra, mencionando a “teoria realista das relações internacionais”: “Por mais que o ideal seria que a Ucrânia pudesse ser da União Europeia, da Otan, e ser uma democracia liberal, o que não é, ela vai provocar a Rússia, e aí a gente ver o resultado, porque o mundo não é tão justo, pessoas más têm muito poder”.

Vladimir Putin e Ióssif Stálin: irmãos políticos | Foto: Reprodução

De fato, fica parecendo que Guga Chacra, neste raciocínio, está sugerindo que a Ucrânia não deveria ter provocado a Rússia, ao lutar para pertencer à União Europeia e à Otan; como provocou, ganhou o “castigo” que “merecia” — bombas em suas cidades, com centenas de mortes de civis e militares.

A fala enviesada do jornalista, que estava expondo uma ideia, que não é sua, irritou Sardenberg. O veterano quis saber se o colega mais jovem estava defendendo a política de Putin na Ucrânia e se o presidente Volodymyr Zelensky deveria renunciar. A fala de Sardenberg: “Quer dizer que você acha que a Rússia está certa de invadir? Estava sendo ameaçada e que Zelensky tem de abandonar o governo?”

Mulher ferida na Ucrânia | Foto: Reprodução

Exasperado, como de hábito (o que imagino que seja vontade de participar dos debates, de não ficar à parte), Guga Chacra rebateu: “Não, eu não falei isso em momento nenhum”. De fato, não falou. Porém, talvez devido ao tempo curto que se tem em programa de televisão — ainda que o tempo na GloboNews seja maior do que no “Jornal Nacional” —, fica-se com a impressão de que o jornalista realmente estava “justificando” a posição de Putin.

Sardenberg criticou, num tom duro, o que não é de seu feito (ao lado de Mônica Waldvogel, que nunca excede, é um dos mais moderados comentaristas da GloboNews): “Entendo esse negócio de teoria realista, não precisa me dar lição disso. A questão é a seguinte: os países independentes democraticamente decidem ir para a União Europeia ou para a Otan. É decisão deles, é legal, é legítimo. Quem está errada nessa história é a Rússia. Ninguém estava pensando em invadir a Rússia, entre outras coisas, porque ninguém é louco. Não tem aqui no Ocidente um louco que nem lá na Rússia. Agora o que o Ocidente quer e está fazendo, é impedir que a Rússia invada os outros, como Finlândia, Geórgia, Moldávia”.

Volodymyr Zelensky, presidente da Ucrânia l Foto: Irina Yakovleva

Aparentando nervosismo, e com certa razão, Guga Chacra finalmente esclareceu sua posição, o que não havia feito antes. Ele enfatizou que não está entre os defensores da invasão da Ucrânia e qualificou Putin de “ditador sanguinário. “Eu falo o tempo todo aqui nesse programa que o Putin é um ditador sanguinário, que é um absurdo a invasão da Ucrânia. O que estou querendo explicar é que ele não vai aceitar isso, então vai haver uma reação. Lembrando que há outros países que invadem países soberanos. Os EUA invadiram o Iraque e derrubaram o regime da Líbia. Dito isso, é absurdo o que o Putin está fazendo. Por favor, em nenhum momento me associe a qualquer forma de defesa dessa invasão sanguinária da Rússia contra a Ucrânia. [Ademais] expliquei a teoria realista das relações internacionais não para você, mas para a nossa audiência”, disse Guga Chacra.

Tudo indica que, a partir de uma formulação incompleta de Guga Chacra, Sardenberg entendeu mal o que disse o colega. Mas precisava, dos dois lados, tanta exasperação? Claro que não. Apesar de tudo, o debate, ainda que um não estivesse assimilando a fala real do outro, serviu pelo menos para esclarecer as posições de ambos. A rigor, os dois não pensam diferentemente um do outro: são contrários à invasão — ao imperialismo — da Rússia na Ucrânia e consideram que Putin é um pária, ainda que um pária com bomba atômica, que é o que, efetivamente, contém a Europa e a mantém afastada, em termos de participação direta, da guerra.