Contradição da política: ao atacar o Iraque, arrancando Saddam Hussein do poder, os Estados Unidos colaboraram, sem que tivessem a intenção, para fortalecer os xiitas, quer dizer, o Irã — o financiador do Hezbollah e do Hamas.

A história dos povos árabes é uma das mais belas, ricas e complexas, porém, devido a fatos recentes, como o terrorismo da Al-Qaeda, do Estado Islâmico e do Hamas, é vista, no geral, de maneira redutora. Quem quiser conhecê-la está disponível em português o excelente livro “Os Árabes — Uma História” (Zahar, 788 páginas, tradução de Marlene Suano), de Eugene Rogan, professor de Oxford. É um estudo nuançado — com largueza de visão — das civilizações árabes.

O livro de Rogan corrige injustiças e esclarece passagens nebulosas da história árabe. A exposição, rigorosa e muito bem-informada, certamente colabora para, se não acabar, reduzir preconceitos contra os árabes.

Vale esclarecer que o livro foi publicado em 2009, mas a introdução e o capítulo 15 são de 2017. A edição brasileira é de 2021.

Concentro-me nas 43 páginas do último capítulo do livro, “Os árabes no século 21”.

A invasão de Israel pelo grupo terrorista palestino Hamas ocorreu em outubro de 2023, então, obviamente, não há registro na obra. Este fato será considerado, a partir de agora, como um dos mais importantes acontecimentos do Oriente Médio no século 21.

Há dois momentos transformadores no Oriente Médio no século 21, de acordo com Rogan: “Os ataques de 11 de setembro de 2001, iniciando uma guerra contra o terror liderada pelos americanos, e as revoluções da Primavera Árabe de 2011. Esses dois marcos vieram para definir o Oriente Médio no século 21. Ainda estamos vivendo com suas consequências. (…) Os anos desde 11 de setembro de 2001 têm sido os piores da história árabe moderna”.

O 11 de Setembro e o Oriente Médio

Em 11 de setembro de 2001, terroristas da Al-Qaeda sequestraram quatro aviões, em aeroportos do “inexpugnável” Estados Unidos e conseguiram jogar dois deles contra as Torres Gêmeas do World Trade Center, em Manhattan. Uma das aeronaves foi dirigida ao Pentágono. A quarta aeronave, que estaria sendo direcionada à Casa Branca ou ao Capitólio, caiu na Pensilvânia. Nos quatro ataques, morreram 2974 pessoas — 2603 nas World Trade Center, 125 no Pentágono e 246 passageiros e tripulantes nos quatro aviões. Os 19 sequestradores eram árabes muçulmanos — 15 da Arábia Saudita, dois dos Emirados Árabes Unidos e um do Líbano — ligados à Al-Qaeda.

O então presidente dos Estados Unidos, o republicano George W. Bush, declarou “guerra contra o terror”. O principal alvo era a Al-Qaeda de Osama bin Laden. Os ataques do Onze de Setembro e a guerra contra o terror colocaram os Estados Unidos e o mundo árabe em rota de colisão.

Muitos árabes aprovaram o atentado contra o gigante Estados Unidos — o Golias “vencido” em seu próprio território. Árabes pontuavam que o país de Bush era indiferente ao sofrimento dos palestinos e dos iraquianos (viviam sob sanções rígidas).

Protegido por uma rede, Bin Laden estava no Afeganistão. “A admiração pelo líder da Al-Qaeda era generalizada em todo o mundo árabe e muçulmano. Osama bin Laden se tornou um símbolo de culto. (…) Os americanos não compreendiam esses pontos de vista e transformaram Bin Laden num vilão, numa personificação do mal absoluto”, assinala Rogan.

A ação dura do Estados Unidos levou os árabes a concluir “que a guerra contra o terror era na verdade uma guerra contra o islã”.

EUA, Israel e Afeganistão

Os Estados Unidos começaram a atacar o Afeganistão em outubro de 2001. O governo Bush operou para arrancar o Talibã do poder porque havia abrigado Bin Laden e para capturar os líderes da Al-Qaeda e destruir suas instalações de treinamento no “território afegão”. Em dezembro de 2001, o Talibã havia caído. Mas Bin Laden e o mulá Omar, líder dos talibãs, escaparam para o Paquistão.

Muçulmanos — cerca de 800 — foram enviados para o Campo de Detenção da Baía de Guantánamo. Não havia nem processo legal. Muitos foram torturados, o que deixou o mundo árabe indignado.

Com um governo aliado no Afeganistão, no lugar de envidar esforços para recuperar o país, os Estados Unidos correram para outra guerra — agora contra o Iraque de Saddam Hussein.

O que o povo afegão tinha a ver com a guerra entre Estados Unidos e Al-Qaeda? Nada. Ou muito pouco. Mas, como postula Rogan, “pagou um preço alto pelo Onze de Setembro”. Mais de 100 mil morreram e milhões foram deslocados.

Havia uma desconfiança geral com os Estados Unidos e vice-versa. Os americanos não confiavam mais nem na Arábia Saudita, considerando que a maioria dos que atacaram o país de Bush era saudita e que fundos privados do país haviam financiado a Al-Qaeda. “Os Estados árabes se viram sob pressões irreconciliáveis após o Onze de Setembro”, registra Rogan.

Aliados dos americanos começaram a ser vítimas do terrorismo. “Entre maio e novembro de 2003, vários atentados a bomba por parte de islamitas radicais abalaram cidades na Arábia Saudita, no Marrocos e na Turquia, deixando 125 mortos e quase mil feridos. Em novembro de 2005, bombas coordenadas destruíram três hotéis em Amã, na Jordânia, matando 57 pessoas e ferindo centenas — quase todas jordanianas.”

O primeiro-ministro de Israel, Ariel Sharon, convenceu Bush “de que os Estados Unidos e Israel enfrentavam uma guerra comum contra o terror.

A Segunda Intifada Palestina

A Segunda Intifada (rebelião) palestina, iniciada em 2000, “havia se tornado cada vez mais violenta na época dos ataques do Onze de Setembro. O uso de atentados suicidas por grupos islâmicos para atingir civis israelenses convenceu o presidente Bush de que os Estados Unidos e o Estado judeu estavam lutando contra o mesmo inimigo. Assim, os americanos fecharam os olhos para as ações israelenses contra seus inimigos islâmicos — a Jihad Islâmica e o Hamas na Palestina e o Hezbollah no Líbano — e a internacionalmente reconhecida Autoridade Palestina. Israel aproveitou ao máximo a complacência dos Estados Unidos para lançar ataques desproporcionais contra o governo e a sociedade palestina que aumentaram enormemente as tensões no mundo árabe”.

A Cisjordânia foi reocupada, em junho de 2002, por ordem de Sharon. O objetivo era “isolar Yasser Arafat e enfraquecer a Autoridade Palestina”, diz Rogan. “Cerca de 3200 palestinos e 950 israelenses foram vítimas de mortes violentas durante a Segunda Intifada (setembro de 2000 a fevereiro de 2005).”

Israel incentivava a ocupação de territórios adicionais na Cisjordânia. “Os assentamentos israelenses se expandiram nos territórios ocupados, e, em junho de 2002, o governo Sharon iniciou a construção de um muro com 720 quilômetros a fim de isolar Israel dos ataques terroristas palestinos. O Muro de Separação penetra fundo na Cisjordânia e representa uma anexação de fato de quase 9% do território palestino na região, afetando negativamente a vida e os meios de subsistência de quase 500 mil palestinos”, expõe Rogan.

O sofrimento dos palestinos irritou o Oriente Médio. “Os atos de Israel e a inação dos Estados Unidos serviram como valiosos dispositivos de recrutamento para a Al-Qaeda e outras organizações terroristas.”

O Quarteto do Oriente Médio

De repente, Bush decidiu mudar de rota. “Bush se tornou o primeiro presidente americano a apoiar uma solução de dois Estados para o conflito palestino-israelense.” O presidente americano exigia, porém, que os palestinos se “afastassem” dos terroristas. Era um recado para o presidente da Autoridade Palestina, Yasser Arafat.

Bush firmou uma parceria com a Rússia, a União Europeia e as Nações Unidas — o Quarteto do Oriente Médio — com o “objetivo de garantir uma solução de dois Estados para o conflito palestino-israelense”.

O projeto do Quarteto do Oriente Médio partia de um tripé. Primeiro, o fim da violência entre israelenses e palestinos. Segundo, a “criação de um Estado palestino provisório dentro de fronteiras temporárias”. Terceiro, palestinos e israelenses deveriam resolver “as questões mais complexas das fronteiras, o futuro de Jerusalém, o status dos refugiados e o destino dos assentamentos israelenses na Cisjordânia e na Faixa de Gaza”. Previa-se que, no fim de 2005, Israel e Palestina declarariam o fim do conflito. Mais um engano dos que, mesmo “estudando” (sem um olhar antropológico, digamos), parecem desconhecer as especificidades políticas, culturais e religiosas dos povos do Oriente Médio.

Entretanto, entre os árabes, prevalecia o ceticismo. Porque, em março de 2003, os Estados Unidos invadiram o Iraque.

Invasão do Iraque e a democracia

Alegando que o regime de Saddam Hussein poderia transferir armas de destruição em massa para a Al-Qaeda, com a qual “tinha” conexão, Bush decidiu invadir o Iraque. Os árabes sabiam que tais “informações” eram falsas (mas os americanos não queriam saber das informações verdadeiras). “Saddam liderava precisamente o tipo de governo que Bin Laden procurava derrubar.” Os árabes concluíram que os Estados Unidos estavam de olho no petróleo do Iraque (um dos maiores produtores globais) e de todo o Golfo Pérsico. “Todos os 22 membros da Liga Árabe, exceto o Kuwait, apoiaram uma resolução condenando a invasão como uma violação da Carta da ONU e exigindo a retirada total das tropas americanas e britânicas do solo iraquiano.”

Os Estados Unidos não atenderam os árabes, derrubaram Saddam Hussein e colocaram no poder a junta governante Autoridade Provisória da Coalizão. A APC entrou em choque com os sunitas. E os xiitas começaram a assumir o controle do país. “O Iraque logo se transformou em um campo de recrutamento para ativistas antiamericanos e antiocidentais.” Surgiu no país a Al-Qaeda do Iraque, que matou, num atentado, o diplomata brasileiro Sérgio Vieira de Castro, que estava a serviço das Nações Unidos em Bagdá. “Até a retirada dos Estados Unidos em 2011, os insurgentes haviam matado quase 4500 cidadãos americanos e mais de 170 britânicos, e ferido mais de 32 mil soldados estrangeiros”, conta Rogan.

Bush postulava que um Iraque democrático seria um incentivo para outros países. Por isso, eleições foram convocadas, com forte presença de xiitas e curdos. Os sunitas boicotaram o pleito. O principal bloco xiita, a Aliança Unida Iraquiana, ficou, dos 275 assentos, com 128 na assembleia nacional. Os curdos levaram 53 cadeiras. Os sunitas ganharam o controle de 48 assentos.

O curdo Jalal Talabani se tornou presidente do Iraque e o xiita Nouri al-Maliki assumiu o cargo de primeiro-ministro. Os sunitas, com escasso poder, aderiram à violência. Começava a guerra de facções. O governo iraquiano e as forças armadas dos Estados Unidos não conseguiram controlar a violência dos grupos. Entre 100 mil e 150 mil civis foram mortos de 2002 a 2011. “Assim como acontecera no Afeganistão, foram os civis iraquianos que arcaram com o verdadeiro custo da guerra contra o terror”, relata Rogan.

O Iraque, aponta Rogan, era, até 2003, “um dos Estados árabes sunitas mais poderosos e servia como um amortecedor para conter a ameaça percebida da República Islâmica do Irã. Depois de 2005, sob governo xiita, passou a ser visto como um aliado do Irã. Os países sunitas vizinhos, liderados pela Arábia Saudita e pela Jordânia, falavam com receio de um ‘Crescente xiita’ que começava no Irã e se estendia pelo Iraque até a Síria (um aliado iraniano desde 1980) e o Líbano, onde as milícias xiitas Amal e Hezbollah desempenharam um papel dominante na política nacional”.

Ao atacar o Iraque, arrancando Saddam Hussein do poder, os Estados Unidos colaboraram, sem que tivessem a intenção, para fortalecer os xiitas, quer dizer, o Irã — o financiador do Hezbollah e do Hamas.

O intervencionismo dos Estados Unidos no Oriente Médio, longe de tornar a democracia relevante, gerou desconfiança e fortaleceu os partidos islâmicos antiamericanos mais atraentes para os árabes. “Em qualquer eleição livre e justa, os partidos mais hostis aos Estados Unidos eram os mais prováveis vencedores”, escreve Rogan.

Hamas chega ao poder… pelo voto

Em novembro de 2004, quando Yasser Arafat morreu, o governo Bush defendeu a tese de que agora os palestinos poderiam escolher líderes não comprometidos com o terror. Em 2005, Mahmoud Abbas, do Fatah, foi eleito presidente com 63% dos votos. Os Estados Unidos aprovaram o resultado das urnas. Mas o primeiro-ministro Ariel Sharon rejeitou negociar com o líder palestino.

Ariel Sharon sugeriu que iria retirar as tropas e os colonos de Israel instalados na Faixa de Gaza. Milhares de soldados davam segurança para 8 mil colonos, que viviam ao lado de 1,4 milhão de palestinos hostis.

Entretanto, ao se recusar a negociar com a Autoridade Palestina e ao deixar a Faixa de Gaza, Israel contribuiu para a criação de “um perigoso vácuo de poder na região e” permitiu “que o Hamas reivindicasse uma importante vitória. Há anos resistindo à ocupação de Israel, o partido islâmico naturalmente recebeu crédito por expulsar os israelenses de Gaza”, diz Rogan.

Na eleição para o Conselho Legislativo da Palestina, em janeiro de 2006, o Hamas conquistou a “maioria absoluta”, com 74 dos 132 assentos e o Fatah obteve apenas 45. Operava-se uma mudança drástica na política palestina — e via voto.

O líder do Hamas (forte em Gaza) era Ismail Haniya, o primeiro-ministro, e do Fatah era Mahmoud Abbas (forte na Cisjordânia). Este era o presidente, mas o Parlamento era controlado pelo Hamas.

O Hamas rejeitou as políticas do Quarteto do Oriente Médio. Radical, Ismail Haniya não reconheceu Israel nem encerrou a resistência armada. Por isso o quarteto cortou a assistência à Autoridade Palestina.

O governo Bush também ficou surpreso com a força eleitoral do partido islâmico Hezbollah no Líbano. E tal força advinha da resistência a Israel e aos Estados Unidos.

Em fevereiro de 2005, terroristas — supostamente com o apoio da Síria — mataram o ex-primeiro-ministro libanês Rafik Hariri. Com a reação popular, a Síria foi compelida a retirar seus soldados e o serviço de inteligência do Líbano.

Nas eleições daquele ano, os grandes vitoriosos foram as forças políticas antissíria. Sob o comando de Saad Hariri, elas ficaram com 72 dos 128 assentos no Parlamento. Mas, ao conquistar 14 assentos, o Hezbollah mostrou que estava no jogo. E partidos pró-Síria também elegeram parlamentares. A hostilidade a Israel e aos Estados Unidos aglutinava as oposições.

Ao atacarem o Estado judeu, o Hamas e o Hezbollah ficavam fortes na Palestina e no Líbano e ganhavam simpatia em quase todo o mundo árabe.

O Hamas e o Hezbollah “acreditavam que combater os sionistas para libertar territórios muçulmanos era um dever religioso. No verão de 2006, os dois partidos intensificavam seus ataques a Israel — com consequências desastrosas para a Faixa de Gaza e o Líbano”, anota Rogan.

“Em 25 de junho de 2006, um grupo de ativistas do Hamas atravessou de Gaza para Israel utilizando um túnel próximo à fronteira egípcia e atacou um posto do exército israelense. Eles mataram dois soldados e feriram outros quatro antes de fugir para Gaza levando como prisioneiro um jovem recruta chamado Gilad Shalit”, diz Rogan.

Tropas israelenses entraram em Gaza e prenderam 64 oficiais do Hamas, oito membros do gabinete palestino e 20 membros democraticamente eleitos do Conselho Legislativo da Palestina.

Retaliando, o Hamas disparou mísseis caseiros contra Israel, que reagiu e bombardeou alvos palestinos. “Onze israelenses e mais de 400 palestinos foram mortos.” O cessar-fogo ocorreu em novembro de 2006.

Combatentes do Hezbollah entraram em Israel, atacaram dois jipes e mataram três soldados, feriram dois e fizeram dois prisioneiros. Forças terrestres israelenses invadiram o Líbano. A força aérea israelense bombardeou o país — “provocando o deslocamento de cerca de 1 milhão de civis”.

Os Estados Unidos, que se recusaram ao ajudar o Líbano, reabasteceram “os israelenses com armas guiadas a laser e bombas de fragmentação”. “Mais de 1100 civis libaneses e 43 israelenses morreram durante os 34 dias de guerra. Morreram 500 milicianos do Hezbollah e 117 soldados israelenses.”

Parte significativa do mundo árabe posicionou-se contra Israel e Estados Unidos — ficando ao lado do Hamas e do Hezbollah.

A letalidade do presidente Barack Obama

Com a era Barack Obama como presidente, iniciada em 2008, os Estados Unidos abriram espaço ao “engajamento construtivo”. O democrata reduziu a presença das tropas americanas no Iraque, “sinalizou que o processo de paz entre palestinos e israelenses era uma prioridade” e decidiu melhorar as relações com o Irã e a Síria.

Rogan contrapõe que, apesar de ter ganhado o Nobel da Paz, em 2009, “Obama permaneceu em guerra no mundo muçulmano durante seus oito anos no cargo”.

Mostrando que era mais falcão do que pomba (dove), Obama “intensificou a presença militar dos Estados Unidos no Afeganistão, que chegou a atingir um pico de 100 mil homens, e só declarou o fim das operações no país em 2014, o que fez da guerra no Afeganistão (2001-2014) a mais longa da história americana”.

O mestre de Oxford relata que “Obama intensificou o uso de ataques com drones letais no Paquistão, na Somália, no Iêmen e na Líbia. Enquanto o presidente Bush havia autorizado cerca de 50 ataques com drones, matando 296 combatentes e 195 civis, Obama aprovou mais de 500 ataques, matando 3040 combatentes e centenas de civis”.

O governo Obama matou, em 2 de maio de 2011, no Paquistão, o chefão da Al-Qaeda — Osama bin Laden.

A Primavera Árabe e a democracia

A Primavera Árabe, iniciada na Tunísia e no Egito, em janeiro e fevereiro de 2011, gestou mudanças significativas. Nas ruas, na Tunísia, no Egito, na Líbia, no Bahrein, no Iêmen e na Síria, as pessoas diziam aos poderosos: “Vão embora!”

As redes sociais foram usadas, de maneira inteligente e articulada, pelos manifestantes — tanto para espalhar a mensagem contra os governos quanto para aglutinar as pessoas.

Rogan frisa que “a ideia de que os Estados árabes eram países homogêneos e de que um mesmo modelo revolucionário poderia servir a todos foi a grande falácia da Primavera Árabe”. Líbia, Bahrein, Iêmen e Síria não eram iguais — eram diferentes. De fato, eram, claro, governados por ditadores.

Mas “o que havia começado como um movimento de libertação logo degenerou na pior crise política e humanitária que afligiu o Oriente Médio nos tempos modernos”.

No Bahrein, os xiitas são maioria, mas com forte presença de sunitas. A população acusava o governo de dividir os muçulmanos, apontava que havia corrupção e expropriação de terras. O governo reprimia brutalmente os dissidentes.

Então, no “dia de fúria”, os organizadores do Movimento Juventude de 14 de Fevereiro articularam protestos pela internet e, depois, saíram às ruas, concentrando-se na Praça da Pérola. O governo atacou e matou manifestantes, que passaram a exigir a abdicação do rei Hamad, ou seja, a queda do regime. Xiitas e sunitas chegaram a se unir nos protestos.

Por causa da resistência crescente do povo, a Arábia Saudita e os Emirados Árabes Unidos enviaram soldados para ajudar o governo do Bahrein a se manter no poder. Operou-se uma repressão brutal. “A vitória do governo sobre os manifestantes da Praça da Pérola no Bahrein marcou o fim da Primavera Árabe como concebida na Tunísia e no Egito. A contrarrevolução começou no Bahrein em março de 2011 e culminaria no Egito em julho de 2013. Se a Primavera Árabe foi feita por cidadãos que perderam o medo dos governos, a contrarrevolução consistia no uso da violência para restaurar o medo. Os levantes posteriores, na Líbia e na Síria, se transformaram em banhos de sangue.”

Líbia de Kadafi e Iêmen de Saleh

Na Líbia, Muamar Kadafi estava no poder havia mais de quatro décadas. No seu “dia de fúria”, os líbios saíram às ruas e “atearam fogo em prédios do governo e delegacias. As forças de segurança usaram munição real” e mataram “mais de 80 manifestantes.”

Em 27 de fevereiro de 2011, a oposição a Kadafi estabeleceu, na cidade de Benghazi, seu Conselho Nacional de Transição. Parte das forças armadas ficou com os rebeldes e parte seguiu apoiando o ditador. A Liga Árabe decidiu apoiar os insurgentes e, com isso, forças da Otan atingiram alvos-chaves da Líbia. “As tropas de Kadafi foram forçadas a recuar de Benghazi sob fogo letal das aeronaves da Otan, apoiadas por aviões de combate da Jordânia, do Catar e dos Emirados Árabes Unidos. A iniciativa havia mudado das mãos da Líbia para as mãos ocidentais. (…) Era a comunidade internacional que buscava o fim do regime.”

Kadafi não apenas caiu. O longevo líder líbio foi linchado. “Entre 2011 e 2015, o conflito matou cerca de 25 mil pessoas e expulsou mais de 100 mil de suas casas. E a Líbia não se tornou uma democracia plena.

No Iêmen, o ditador-presidente Ali Abdullah Saleh caiu, em 23 de novembro de 2011. Havia ficado 33 anos no poder.

A Al-Qaeda, com o nome de Al-Qaeda na Península Arábica, era forte no Iêmen. A gestão de Abdullah Saleh era corrupta e ineficiente. Os que contribuíram para derrubá-lo se instalaram num local que chamaram de Praça da Mudança. Eles diziam “não à corrupção, não à tirania, o povo exige a queda do regime. O apoio ao presidente Saleh começou a desmoronar quando líderes militares e tribais se juntaram às fileiras da oposição.”

O governo reagiu com violência, matando manifestantes. Membros do governo e unidades do exército se aliaram aos rebeldes. Ali Abdullah Saleh caiu e o vice-presidente, Abed Rabbo Mansour al-Hadi, assumiu o comando do país.

Em 2014, os houthis, da comunidade zaidi, variante do xiismo, derrubaram Abed Rabbo Mansour al-Hadi, que havia sido eleito. Mas a Arábia Saudita liderou uma coalizão contra os houthis, que continuaram controlando parte do país. “Até o final de 2015, a guerra havia deslocado internamente cerca de 2,5 milhões de iemenitas; em 2017, o saldo era de cerca de 10 mil mortos e 40 mil feridos. (…) Pior que um Estado falido, o Iêmen havia se degenerado em dois Estados falidos em guerra entre si”, sublinha Rogan.

A Síria do ditador Bashar Assad

O pesquisador de Oxford sugere que “o capítulo mais trágico da história da Primavera Árabe se desenrolou na Síria. A Síria foi um dos últimos países árabes a enfrentar um levante popular em 2011”.

De acordo com Rogan, o presidente Bashar Assad, no poder desde 2000, “desfrutava de um certo grau de legitimidade e apoio público, o que o diferenciava dos demais autocratas árabes”. Ele tinha “uma reputação de reformador — por mais imerecida que fosse”.

Em 2011, adolescentes picharam um muro de Dara: “O povo deseja a queda do regime”. O governo prendeu e torturou 15 meninos com idades entre 10 e 15 anos. Os pais saíram às ruas pedindo a libertação dos garotos e o governo reprimiu os manifestantes, com extrema violência. Ante a reação popular, a gestão de Bashar Assad liberou os jovens, que, na maioria, tiveram suas unhas arrancadas.

Indignados, milhares de sírios decidiram ampliar os protestos e o governo matou dezenas de manifestantes.

“Nos primeiros meses da revolução, sírios de todas as comunidades — muçulmanos, cristãos, alauitas e drusos — se uniram para exigir reformas. Somente quando a revolução degenerou em guerra civil é que o sectarismo entrou em cena”, anota Rogan. O governo da Bashar Assad reagiu duramente. “Em 2016, após cinco anos de guerra”, o número de mortos passou de 400 mil. “Em 2016, o conflito havia deslocado mais da metade da população do país. Cerca de 6,1 milhões de sírios foram deslocados internamente e outros 4,8 milhões buscavam refúgio fora do país — na Jordânia, no Líbano, na Turquia e na União Europeia”. A Primavera Árabe não dera certo na Síria, país de maioria sunita e que conta com o apoio do xiita Irã e da Rússia (“a Síria fornece à Rússia sua única base naval no Mediterrâneo Oriental e uma plataforma para monitorar sinais de comunicação no Oriente Médio. É também o último aliado da Rússia no mundo árabe”).

No início os Estados Unidos, com ecos na Europa, queriam a derrubada do ditador da Síria. Porém, quando o país começou a ser atacado pelo Estado Islâmico (que surgiu no Iraque, “a partir de grupos muçulmanos sunitas”), decidiram ficar com o inimigo supostamente menos perigoso, Bashar Assad.

Fracasso no Egito e sucesso na Tunísia

Rogan afirma que “o capítulo decisivo da contrarrevolução à Primavera Árabe ocorreu no Egito”. Com a queda de Hosni Mubarak, os militares assumiram o controle do poder com o objetivo de “orientar a eleição de um novo governo”.

“A Irmandade Muçulmana, o partido de oposição mais antigo do Egito, emergiu como a agremiação política mais poderosa do país”, diz Rogan. Os articuladores da Primavera Árabe na Praça Tahrir criaram dezenas de partidos políticos, mas sem a consistência da Irmandade Muçulmana, que, nas eleições de novembro de 2011, conquistou a maioria dos assentos, 40%. Outro grupo, mais conservador, o salafista Partido da Luz, também se encorpou. “Com a maioria dos assentos indo para os islâmicos, os egípcios laicos começaram a temer que, em vez de uma Constituição liberal, fossem submetidos a uma Carta islâmica que substituiria as leis civis do Egito pela lei do islã.”

Contrariando o que havia sido acordado, de que não pleitearia a Presidência, Muhammad Morsi, da Irmandade Muçulmana, se tornou presidente, em 30 de junho de 2012. O movimento Tamarod (Rebelião) pediu sua renúncia. “A campanha reuniu os liberais, que foram à Praça Tahrir em uma enorme manifestação pedindo a queda do regime de Morsi.” As Forças Armadas do Egito decidiram depor o presidente eleito, que foi preso.

O governo proibiu a Irmandade Muçulmana e prendeu seus líderes que não conseguiram fugir. Dada a reação de seus membros, “em 14 de agosto de 2013, os militares atacaram dois locais de protestos da Irmandade Muçulmana no Cairo. (…) Usando armas de fogo contra manifestantes civis, as forças de segurança massacraram cerca de mil apoiadores do presidente deposto em um único dia”. A ferro e fogo, os militares domaram as rebeldias — tanto as progressistas quanto as conservadoras. O general Abdel Fattah Sisi foi eleito, em maio de 2014, com 96% dos votos.”

Segundo Rogan, “o preço da mudança revolucionária se mostrou alto demais para o povo árabe suportar — exceto na Tunísia, o único sobrevivente de sucesso da Primavera Árabe”.

Rogan afiança que “a Tunísia foi o único Estado árabe que conseguiu negociar uma transição política pacífica para uma nova ordem constitucional após a revolução da Primavera Árabe”.

Os tunisianos elegeram uma Assembleia Constituinte, em outubro de 2011. “O partido islâmico Ennahda garantiu a maioria das cadeiras (41%), mas, ao contrário da Irmandade muçulmana no Egito, não tentou usar seu poder nas pesquisas para dominar a política do país. Na Tunísia, os islamitas optaram por trabalhar em coalizão com dois partidos centristas e laicos, a fim de preservar um maior grau de coesão nacional. O processo da elaboração da nova Constituição foi demorado, mas caracterizado pela construção de consensos e não pela coerção. A nova carta, adotada em janeiro de 2014, consagra as vitórias do movimento revolucionário nos direitos dos cidadãos e no Estado de direito”, expõe Rogan. Mas o país foi vítima de terrorismo, o que prejudicou a indústria do turismo, seu forte.