Entre 1964 e 1985, longos 21 anos, prevaleceu uma ditadura civil-militar no Brasil. Às vezes, moderada — nos governos de Castello Branco, Ernesto Geisel (frise-se que militares também mataram adversários do regime em sua gestão) e João Figueiredo (vale lembrar do atentado do Riocentro, não punido pelo presidente). Já os governos de Artur da Costa e Silva e de Emílio Garrastazu Médici foram os mais cruentos. Aí prevaleceu, com mais intensidade, a ditadura — o que não quer dizer que, nos períodos de Castello, Geisel e Figueiredo, não tenha havido ditadura.

Negar que houve uma ditadura, no período citado, é negar a história. Mas é lícito chamá-la meramente de regime militar? Minha opção é pela palavra real, o mote justo — ou seja, ditadura. Denominá-la tão-somente de “regime militar” é uma opinião, à qual não endosso, mas quem a expressa tem seu direito.

Jair Bolsonaro e Lula da Silva: direita e esquerda| Foto: Reprodução

Assim como Daniel Aarão Reis e outros historiadores, chamo a ditadura de 1964 de civil-militar. Há militantes da esquerda que preferem escrever apenas ditadura militar. Talvez por dois motivos. Primeiro, para enfatizar seu caráter duro, dado o fator militar. Segundo, porque a palavra “civil” talvez suavize o matiz ditatorial do militarismo. Mas a ditadura não foi iniciada nem governada apenas por militares.

De fato, só generais do Exército, de quatro estrelas, puderam ser presidentes — o que reforça a ideia de “ditadura militar”. Mas civis participaram ativamente do golpe de 1964 e da governança na ditadura. Roberto Campos, Delfim Netto, Mario Henrique Simonsen, Gama e Silva e Leitão de Abreu, para citar cinco figuras estelares, foram decisivos na elaboração do planejamento, na estruturação fazendária e na formatação institucional da ditadura. Então, é possível chamar a ditadura de civil-militar, e não apenas de militar.

Fernando Collor: da Presidência para o Senado | Foto: Agência Senado

O jornalista e apresentador televisual Luiz Carlos Braga, de 62 anos, trabalhou na Globo por quase três décadas (sublinhe-se que o Grupo Globo apoiou a ditadura — era uma das facetas civis, assim como o grupo Folha da Manhã, que edita a “Folha de S. Paulo”). Numa entrevista ao Podcast 61, em novembro de 2022, Braga disse: “Não houve ditadura, mas um governo militar”. Optando por “governo militar” e deixando de lado “ditadura militar”, o jornalista está sugerindo que apoiou e ainda apoia a ditadura civil-militar? É provável, mas ele não é explícito.

Errada ou certa, o fato é que muita gente pensa como Braga. Postulo que está equivocado, mas é um direito dele, na sociedade democrática, pensar como quiser. E é positivo que tenha coragem de se expressar publicamente, o que permite o endosso ou a contestação de suas teses.

Por sinal, até pesquisadores sérios consideram que o governo de José Sarney pode ter sido a “última” das gestões militares. Porque, de alguma maneira, houve uma certa tutela das Forças Armadas, representadas pelo general Lêonidas Pires Gonçalves, que, tendo sido ativo na ditadura, continuou ativo na gestão do emedebista.

Luiz Carlos Braga e Hélio Doyle: jornalistas | Foto: Reprodução

Tendo a avaliar que, do ponto de vista político, o governo de Sarney foi altamente positivo. Porque garantiu, dadas a moderação e a experiência — era um homem de dois mundos, o da ditadura e o da democracia —, a transição democrática.

A prisão e a absolvição de Lula da Silva

No mesmo podcast, Braga disse que o ex-presidente Jair Bolsonaro “teve muita boa intenção” e o comparou ao ex-presidente Fernando Collor. O político de Alagoas teria caído porque declarou que “não precisava do Congresso”. Por isso, de acordo com o jornalista, o Congresso decidiu derrubá-lo.

Se todos cometeram e cometem erros, Bolsonaro merece ser perdoado? É o que se depreende da fala de Braga. Mas, em 2022, quando o podcast foi divulgado, o jornalista sabia dos bastidores das tramas golpistas do ex-presidente? Não sabemos. Um político que planeja se manter no poder, por meio de um golpe de Estado, não merece o “perdão” nem dos eleitores nem da história.

Portanto, considero Bolsonaro pior do que Fernando Collor que, tendo sofrido o impeachment, refugiou-se em sua casa, respondeu aos processos judiciais e retornou, pelo voto, à política. Apesar das denúncias de corrupção, como político, provou ser democrata (arrogante, é certo, mas não golpista).

Glen Valente: bolsonarista criticou Luiz Carlos Braga porque usou uma camisa rosa | Foto: Reprodução

No podcast, Braga comenta sobre Lula da Silva, que, em 2022, ainda não era presidente da República: “Um cara que curto pela história”. O jornalista tem razão: a história do pernambucano de Caetés/Garanhuns é de uma riqueza extraordinária e não pode ser sintetizada pela corrupção que ocorreu em seu governo.

Braga acrescentou: “Me assusta o fato de você ter uma pessoa condenada em várias instâncias ter virado presidente, porque foram anuladas todas as condenações. Aí você pensa, todos esses juízes estavam errados”.

Trata-se de uma opinião lícita, ainda que discutível? É o que parece. A condenação de Lula da Silva foi um “erro judiciário” cometido tão-somente pelo juiz e hoje senador Sergio Fernando Moro? Há pelo menos duas questões a debater. Primeiro, houve mesmo um erro judiciário? Se houve, não deve ser atribuído também às instâncias superiores, como o Supremo Tribunal Federal, que decidiu brecá-lo tardiamente? Segundo, houve ou não corrupção nos governos de Lula da Silva e de Dilma Rousseff? Houve, é claro — tanto que corruptos e corruptores devolveram bilhões ao Erário.

Se houve corrupção, por que as instâncias superiores da Justiça decidiram “ressuscitar” Lula da Silva — absolvendo-o e “condenando” (ou quase) aqueles que haviam condenado o presidente? Tenho a impressão de que, tendo percebido a “ruindade” de Bolsonaro — o golpista —, restou uma opção às elites judiciais: “salvar” Lula da Silva para “salvar” a jovem democracia brasileira. Se o que estou dizendo for verdadeiro, trata-se de uma saída realista e, até, louvável.

Porém, o questionamento de Braga não é apenas dele. Há juristas que dizem o mesmo. Evita-se o assunto, mas ele retornará, com o tempo, ao debate jurídico e histórico.

A eliminação da opinião divergente

Braga era editor-chefe na Empresa Brasileira de Comunicação e apresentador do programa “Repórter Brasil”, na TV Brasil. Não era concursado. Sua empresa fora contratada pela EBC por R$ 28.500,00.

Profissional experiente, filho da melhor escola de jornalismo televisual do país, a Globo, havia sido contratado no governo de Bolsonaro e, em seguida, foi recontratado no governo de Lula da Silva. Tudo ia bem — até que começaram a divulgar o podcast fatídico. Podcast é assim: as pessoas abrem suas caixas mentais e, ao final, costumam se dar mal. É o caso.

O presidente da EBC, o jornalista e professor universitário Hélio Doyle — um profissional correto e preparado —, foi convocado pelo ministro-chefe da Secretaria de Comunicação Social, Paulo Pimenta, que exigiu a demissão de Braga.

A imprensa ventilou que setores do PT, instalados na área de comunicação do governo, exigiram a demissão de Braga.

A demissão, parece claro, se deu por razões ideológicas. Braga seria, na opinião de seus críticos, bolsonarista e duvidou da honestidade de Lula da Silva.

Pode-se dizer que o governo Lula da Silva errou ao demitir Braga. Porque confundiu-se, intencionalmente, Estado, governo e partido. O jornalista poderia ser demitido por incompetência ou redução de custos. Mas ele foi afastado porque o apresentaram como bolsonarista e crítico do presidente da República.

A eliminação de um divergente, usando o poder pessoal, acima do poder do Estado, é um mau começo para quem dirige a comunicação do governo Lula da Silva.

(No governo de Bolsonaro, quando apresentou o telejornal da TV Brasil vestindo uma camisa rosa, Luiz Carlos Braga foi atacado pelos bolsonaristas. O presidente da EBC, Glen Lopes Valente, chegou a dizer que era “coisa de veado”.)