Cara, se quiser fechar o STF, sabe o que você faz? Você não manda nem um jipe. Manda um soldado e um cabo. Não é querer desmerecer o soldado e o cabo, não. O que é o STF? Tira o poder da caneta de um ministro do STF. Se prender um ministro do STF, você acha que vai ter uma manifestação popular a favor do ministro do STF, milhões na rua? — Eduardo Bolsonaro, deputado federal do PL

Em agosto deste ano, a renúncia do presidente Jânio da Silva Quadros completa 62 anos. O caos que desaguou no golpe civil-militar de 1º de abril de 1964 começou com o político que, em 1960, havia sido bancado pela UDN de Magalhães Pinto, Milton Campos, Bilac Pinto e Carlos Lacerda.

A renúncia dever ser considerada como parte de um golpe malsucedido. Jânio Quadros acreditava que, como os militares “não” permitiriam a posse de seu vice-presidente, João “Jango” Goulart, do PTB varguista, ele reassumiria o governo, com poderes praticamente ditatoriais. A volta seria nos braços do povo.

Entretanto, deu tudo errado. João Goulart assumiu a Presidência da República, num arranjo político que, ao criar o sistema parlamentarista, entronizou Tancredo Neves como primeiro-ministro. Jânio Quadros ficou a ver navios e forças ocultas, contam, numa garrafa de uísque. Os maledicentes sugeriam que era “uisquezofrênico”.

O Brasil produziu, por assim dizer, dois golpistas “eunucos”. Quer dizer: dois presidentes que apostaram no golpe, mas não souberam conduzi-lo.

Jair Bolsonaro e Jânio Quadros: a história se repete… como farsa | Fotos: Reproduções

Ao renunciar, sem se conectar com os generais, Jânio Quadros pode ter produzido um micro golpe, mas não o golpe que lhe daria poderes (quase) totais. O que o presidente não sabia, talvez por acreditar que os braços do povo eram mais vigorosos, é que não se faz golpe, ao menos no Brasil, sem os braços poderosos dos oficiais de mais estrelas.

O golpe de 1930, conhecido como Revolução de 30, teve civis no comando, como Getúlio Vargas, Antônio Carlos de Andrada e Oswaldo Aranha, e militares, como tenentes, coronéis e generais, na linha de frente e na retaguarda. A gestão ditatorial do varguismo — de 15 anos (não considero como ditadura apenas o Estado Novo, de 1937 a 1945) — esteve sob a proteção de generais, como Eurico Gaspar Dutra e Góis Monteiro.

Em 1945, os mesmos generais que apoiaram Vargas decidiram derrubá-lo e apoiaram um general, Eurico Dutra, para sucedê-lo, em eleições diretas. O militar acabou sendo eleito por ter sido apoiado, em larga medida, pelo ex-ditador.

Em 1964, civis e militares se irmanaram para derrubar João Goulart. Entre os generais golpistas estavam Castello Branco, Carlos Luís Guedes, Amaury Kruel, Costa e Silva e o indefectível Olímpio Mourão Filho (o Vaca Fardada, que contribuiu, em 1937, com o golpe varguista). Coronéis participaram do putsch, mas não o decidiram nem o comandaram.

Coronéis às vezes são mais radicalizados do que generais, porém, dado o estrito respeito à hierarquia, não se dá golpe de Estado, ao menos no Brasil, sem a presença ativa de generais.

É provável que alguns generais, porém sem presença ativa nos comandos, até apoiassem um golpe bolsonarista. É possível até, que, se Bolsonaro fosse um político com o perfil de estadista — e não um perene integrante do baixo clero político —, vários generais poderiam tê-lo seguido na aventura pró-golpe. Mas não seguiram, e isto é o mais importante.

Dois projetos bolsonaristas de golpe

Fica-se com a impressão — se diz “impressão” porque ainda não há provas diretas da cadeia de comando, isto é, se Bolsonaro orientava, diretamente, o golpismo — de que alguém encomendou planos golpistas para diferentes pessoas. A melhor proposta, por certo, seria posta em prática, dependendo das circunstâncias.

Anderson Torres: ex-ministro da Justiça não deve ser o Chico Ciência de Bolsonaro | Foto: Alan Santos/PR

Por isso foi encontrada uma minuta de golpe com o ex-ministro da Justiça Anderson Torres — policial federal — e um plano mais detalhado no celular do tenente-coronel Mauro Cid, ex-ajudante de ordens de Bolsonaro. Os dois planos, talvez forjados pelo mesmo grupo de golpistas, teriam o dedo de Bolsonaro? O mais provável é que sim. Vale reler a epígrafe, que recolhe uma fala do deputado federal Eduardo Bolsonaro, filho de Jair Messias: “Cara, se quiser fechar o STF, sabe o que você faz? Você não manda nem um jipe. Manda um soldado e um cabo. Não é querer desmerecer o soldado e o cabo, não”. Tais palavras são “digitais”… precisas. E talvez tenha sido a primeira minuta do golpe.

Se havia projetos golpistas, com vezo, digamos, constitucional — na verdade, inconstitucional, mas com arremedos jurídicos, mal alinhavados —, por que, exatamente, não foram levados adiante? Ou melhor, por que Bolsonaro não conseguiu colocá-los em prática? Porque os comandantes das Forças Armadas não quiseram embarcar na aventura da trupe Bolsonaro.

O golpe dos coronéis, orientado por um “capitão” — patente com a qual o indisciplinado Bolsonaro foi reformado —, não deu certo porque o Exército decidiu respeitar a hierarquia. Coronéis não mandam em generais e estes, pelas conversas entre Mauro Cid e o coronel Jean Lawand Júnior, não quiseram participar de nenhuma aventura discricionária. Pautaram-se pela formação democrática, obedecendo à Constituição.

Plano golpista do coronéis Mauro Cid e Jean Lawand

A “Veja” antecipou de sexta-feira para quinta-feira, 15, sua edição de domingo. A revista deu um furo com a reportagem “Arquivos do celular de Mauro Cid detalhem plano do golpe”, assinada por Robson Bonin.

A revista teve acesso a um relatório de 66 páginas da Polícia Federal que esmiuça o projeto golpista forjado pelo entorno de Bolsonaro.

Jean Lawand Júnior, coronel do Exército | Foto: Divulgação

De acordo com o levantamento de “Veja”, o entorno de Bolsonaro “arquitetou um plano que previa anular as eleições, afastar os ministros do STF que supostamente teriam interferido no resultado e colocar o país sob intervenção militar até que um novo pleito fosse realizado. Em outras palavras, engendrou-se um golpe para manter Bolsonaro no poder. O roteiro da trama foi encontrado no telefone do tenente-coronel Mauro Cid, ex-ajudante de ordens do ex-presidente da República”.

Se Mauro Cid sabia, e era tão próximo do ex-presidente, é lógico supor que Bolsonaro sabia. É possível que tenha sido um dos articuladores do golpismo, até porque seria um de seus beneficiários. O principal deles.

O título do Plano do El Cid dos trópicos é “Forças Armadas como poder moderador”. A revista assinala: “O Plano se sustenta numa tese controversa segundo a qual os militares poderiam ser convocados para arbitrar um conflito entre os poderes. A derrota de Bolsonaro, de acordo com muitos de seus apoiadores, teria como causa decisões inconstitucionais proferidas durante a campanha eleitoral pelos ministros do Supremo que também integram o Tribunal Superior Eleitoral (TSE)”.

Não deixa de ser curioso que, ao propor o afastamento de três ministros — Alexandre de Moraes, Cármen Lúcia e Ricardo Lewandowski (recém-aposentado) —, os golpistas manteriam o ministro Dias Toffoli no Supremo, ao lado de dois aliados de Bolsonaro, os ministros Kassio Nunes Marques e André Mendonça.

“Veja” informa que ainda não se sabe quem é o autor do texto. Quem seria o constitucionalista, por assim dizer, de Bolsonaro? A ditadura civil-militar tinha os seus, alguns até competentes. Quem seria o Odorico Paraguaçu — ou, para ser mais preciso, o Chico Ciência — do líder da extrema direita patropi? Anderson Torres ou Frederick Wassef? Talvez não. O texto teria sido forjado por dois generais aliados, requentando ideias do jurista Ives Gandra Martins? Não há informação a respeito. Porém, é mal ajambrado.

Além do indefectível Mauro Cid, o obediente “menino” de Bolsonaro, uma “nova” figura ganha relevo na reportagem. Trata-se do coronel Jean Lawand Junior, subchefe do Estado-Maior do Exército.

Jean Lawand pressiona Mauro Cid para agir e convencer Bolsonaro de que o golpe é viável. “Ele [Bolsonaro] tem que dar a ordem, irmão. Não tem como não ser cumprida”, afirma o coronel. O tenente-coronel responde: “Estamos na luta!”

Mauro Cid explica ao colega ainda mais radical que Bolsonaro só não deu a ordem de intervenção militar porque “não confia no ACE”. Ou seja, o presidente não confiava no Alto-Comando do Exército. Noutras palavras, o comando do Exército — os generais da ativa — não estava envolvido na aventura golpista.

Bastante ativo, se mostrando operacional, Jean Lawand afirma que o general Edson Skora Rosty, subcomandante de Operações Terrestres, teria dito que, se “O EB [Exército Brasileiro] receber a ordem, cumpre prontamente”, porém, “de modo próprio, o EB nada vai fazer porque será visto como golpe. Então, está nas mãos do PR” (presidente Bolsonaro)”. O general afiança que não se lembra da conversa.

Jean Lawand acrescentou: “Se a cúpula do EB não está com ele [Bolsonaro], de divisão para baixo está”.

Então, a notícia mais positiva da reportagem — do levantamento da Polícia Federal — é que o Exército não quis embarcar no golpismo da turma de Bolsonaro, optando pelo caminho democrático. Frise-se que, durante todo o tempo que a imprensa “noticiava” golpismo na cúpula das Forças Armadas, o Jornal Opção, inversamente, insistia no caráter democrático do comando das Forças Armadas.

“Veja” nada menciona a respeito, mas o movimento golpista de 8 de janeiro deste ano pode ter sido uma das últimas tentativas do bolsonarismo para convencer as Forças Armadas de que o golpe era factível. Deu ruim, quiçá com acento — “rúim”.