Gilberto Mendonça se une ao Ministério Público e à Prefeitura de Bela Vista para fazer biblioteca

03 outubro 2015 às 12h08
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Com obras raras e coleções completas, o acervo era pretendido pelas universidades nas quais o crítico literário e poeta dá aulas há mais de meio século na Europa e no Rio
Nilson Gomes
O poeta e crítico literário Gilberto Mendonça Teles, goiano que mora no Rio de Janeiro desde que voltou do exílio imposto pela ditadura militar, estava com 10 mil livros em casa quando teve mais uma ideia, dessa vez não traduzida em poema ou ensaio. Colocou a imaginação para trabalhar em ritmo de Carlos Drummond de Andrade e se decidiu: “Vou levar todos esses exemplares para Bela Vista”, referindo-se a uma aprazível cidade a meia hora de Goiânia em pista duplicada. O planejamento era antigo, mas a decisão foi tomada na hora, pois havia vários caminhos melhores que a pista para o município: com obras raríssimas, coleções completas, anotações, o acervo era pretendido pelas universidades nas quais GMT dá aulas há mais de meio século na Europa e no Rio. Coimbra e UFRJ que o perdoassem: fretou um caminhão, colocou o que coube e mandou para Goiás. Claro, a carroceria não comportou tudo, “apenas” 6 mil volumes de poesia, conto, romance… Antes de o motorista chegar ao destino, o escritor estava com um caminhão de problemas: não havia em Bela Vista lugar apropriado para receber a doação. Começava uma novela que se desenrola na sexta-feira, 9 de outubro, com a inauguração da Biblioteca Pública Municipal Celuta Mendonça Teles.
Desde então, aconteceu tanta coisa ruim que o escritor deseja até esquecer. Para rememorar: ele doou o que poderia ter sido vendido; o material iria para não se sabe onde, em vez de acolhido por uma renomada universidade; e seria cuidado por não se sabe quem, ao contrário de profissionais categorizados em Portugal ou no Rio. Ainda assim, GMT manteve o propósito. O primeiro entrave foi o local. Precisava ser uma casa e quem tem uma casa para dispor? Gilberto, um professor, estava doando seu patrimônio; milhares de políticos e empresários ricaços não enfiavam a mão na algibeira para tirar um níquel sequer, mesmo para aluguel, pois na biblioteca de Bela Vista mal cabiam os mofados volumes das prateleiras caindo aos pedaços. Se fosse para pagar um show de música brega, eles leiloariam bois e pagariam o máximo, mas para livro não se dignaram a dispor do mínimo.
Passaram-se quinze anos. Década e meia pelejando para dar a seu acervo o merecido lugar: as mãos dos meninos de Bela Vista, menino que ele foi ali nos anos 1930, andando por aquelas ruas, jogando bolinha de gude naquelas praças. Cadê os meninos pressionando o poder público por uma biblioteca? Bolinha de gude? Nem em botequim da Roselândia, o maior distrito da cidade. Criança brincando na praça? Que praça? Juventude lendo os livros? Década e meia sonhando em formar novos professores do seu nível, mais celebrado em países de outros continentes que na terra do pequi. O poeta de versos criativos, às vezes brincalhões, sempre bem elaborados, foi envolvido num drama que não tem graça alguma: a burrice dos agentes públicos e a obtusidade dos demais endinheirados. Detalhe: não se fala aqui exclusivamente do pessoal de Bela Vista, mas do Estado de Goiás.
[Carlos Drummond de Andrade, Gilberto Mendonça Teles e Plínio Doyle]
Nesses quinze anos, diversas pessoas com cargos públicos ficaram sabendo do “caso dos 10 mil livros”. Algumas tentaram resolver, nenhuma resolveu. A prefeitura local se declarou sem condição de abrir nova biblioteca, pois não cuidava sequer da já existente. Este que vos escreve tentou interceder. Autoridades locais e regionais diziam que “ninguém lê não” ou “já tem uma biblioteca ali na praça e ninguém vai” ou “o povo não ia aceitar gastar dinheiro com biblioteca quando o que o pessoal aqui precisa é de asfalto”. Era assessor do senador Demóstenes Torres, leitor de Gilberto. Fui com Gilberto falar com ele. Topou destinar emenda de sua cota para ajudar a instalar a biblioteca. Após a conversa, homenageou GMT na Tribuna do Senado, de onde saiu para papos infindáveis sobre ele com os senadores José Sarney, Marco Maciel, Eduardo Suplicy e Mão Santa, todos também leitores de GMT. Atualmente, nenhum deles está mais no Senado e os livros continuavam como os sírios, procurando abrigo. E a verba destinada por Demóstenes? Alguém deixou perder. A informação é que foi a prefeitura, que culpava o ministério, que… o certo (aliás, o errado) é que perderam a emenda e os livros continuavam num campo de refugiados.
No governo do Estado, o interesse foi também nenhum. Diversos ocupantes de cargos na área foram avisados da situação. Alegavam falta de dinheiro. Nada da biblioteca. Para encurtar a conversa, vamos direto para o presente. Bela Vista, finalmente, tem um secretário de Cultura, Rodrigo Teixeira, que não é jeca. E a biblioteca saiu. O prefeito Eurípedes do Carmo fez parceria com o Ministério Público e reformaram o prédio da antiga Câmara de vereadores, com 262 metros quadrados, no Centro da cidade. MP entrou com R$ 70 mil, a prefeitura com outros R$ 130 mil e ali estão 10 mil livros, os 6 mil que Gilberto enviou no caminhão há trocentos anos e 4 mil da biblioteca que tanto os antecessores de Rodrigo usaram como desculpa para nem alugar um local para o acervo. Agora, com um teto, GMT vai enviar os outros 4 mil livros.
Gilberto já recebeu todos os grandes prêmios com que um escritor nacional pode sonhar, do Machado de Assis ao Juca Pato de “Intelectual do Ano”. É membro da Academia Brasileira de Filosofia e por um voto não foi o segundo goiano na Academia Brasileira de Letras. Tem dezenas de obras publicadas pelo mundo e, finalmente, vai pôr um ponto final na novela dos livros. O evento, agendado para começar às 7 da noite, vai ter show de Marcelo Barra e outros cantores. Mas estou querendo mesmo é ouvir a voz miúda de um poeta graúdo recitando seus versos na biblioteca para a qual nem seu nome quis: vai ter o da mãe, Celuta, que naquele bairro deu à luz um dos maiores intelectuais da história e certamente o maior que Goiás já emprestou ao Brasil e o Brasil à Europa. E que para ganhar um cantinho em Bela Vista teve de esperar quinze anos. Se ao menos os tivesse passado jogando bolinha de gude…
Nilson Gomes é jornalista.