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[Resenha publicada no Jornal Opção em 2007]

Na média, “Gilberto Freyre — Uma Biografia Intelectual” (Civilização Brasileira, 657 páginas), de Enrique Rodríguez Larreta e Guillermo Giucci, é muito importante, pois qualifica (e repõe) o debate sobre a obra do sociólogo pernambucano, esclarece o que realmente escreveu e valoriza suas ideias, por sinal, ainda originais. A tese de que a miscigenação é antes positiva do que negativa, um dos grandes “feitos” da sociedade brasileira, foi repensada e cristalizada por “Casa & Senzala”.

Pode-se dizer que Gilberto Freyre “descobriu”, ou redescobriu, o negro no Brasil — o índio era muito mais “valorizado” —, mas sem deixar de entender o espírito dos homens da casa grande (sim, porque os marxistas falam em dialética, mas só têm olhos para entender os pobres, demonizando os ricos).

Gilberto Freyre, autor de “Casa Grande & Senzala” | Foto: Arquivo Publico de Pernambuco

Um aspecto pouco notado é que, ao contrário de outros pensadores brasileiros — e Gilberto Freyre deve ser considerado um pensador, digamos um pensador da sociologia, da antropologia e, quiçá, da história —, que têm o hábito de importar as ideias de outros países, engolindo-as sem mastigar, o intelectual patropi leu o que havia sido publicado nos Estados Unidos (Franz Boas, entre muitos outros), Alemanha, Inglaterra, França, mas, ao examinar uma situação concreta, a formação histórica brasileira, não aplicou as vastas leituras mecanicamente. Tanto que Gilberto Freyre acabou por influenciar os franceses da Escola dos Annales, os pesquisadores que, partindo do que o sociólogo fez com a história brasileira, passaram a examinar o cotidiano dos homens e mulheres para revelar como viviam e produziam.

Guillermo Giucci e Enrique Larreta dizem, com razão, que “Casa Grande & Senzala” é a obra mais importante de Gilberto Freyre, mas a discussão da obra, se não é de uma pobreza franciscana, não é tão rica quanto o Bradesco e o Itaú.

Uma das falhas do livro, ou melhor, do projeto de Guillermo Giucci e Enrique Larreta, é que, ao parar abruptamente em 1936, com o lançamento de “Sobrados e Mucambos”, não permite o conhecimento do debate posterior a respeito do conjunto da obra de Gilberto Freyre, principalmente de “Casa Grande & Senzala” e a celeuma de que o sociólogo era apologista de que o Brasil era uma “democracia racial”.

Faltou expor a recepção crítica de Gilberto Freyre nos meios universitários, sobretudo na sociologia da Universidade de São Paulo, e as divergências entre o sociólogo e o historiador Sérgio Buarque de Holanda foram pouco esmiuçadas (algumas críticas ficaram no campo do folclórico ou das amizades. A crítica quase nunca esteve à altura de Gilberto Freyre, a sociologia brasileira ainda não gerou um Antonio Candido para criticar a obra sociológica e antropológica do intelectual pernambucano).

Talvez minha leitura tenha sido rápida, mas fiquei com a impressão de que Guillermo Giucci e Henrique Larreta tentam conciliar as obras de Freyre e Sérgio Buarque. A bem da verdade apresentam, além das confluências, contradições entre suas obras, mas muito velozmente. Fica-se com impressão de que Sérgio Buarque é um Gilberto Freyre menor, tese da qual partilho, embora Guillermo Giucci e Enrique Larreta, pesquisadores meticulosos e discretos, não digam isto abertamente.

Gilberto Freyre morreu em 1987, e os autores dão a notícia, no epílogo, mas 51 anos da vida de Freyre, durante os quais continuou escrevendo e debatendo, foram ignorados. No livro, Guillermo Giucci e Enrique Laretta não dizem que vão escrever a segunda parte da biografia. Se não escreverem, vão deixar a impressão de que o intelectual Gilberto Freyre nasceu e morreu em 1933, com a publicação de “Casa Grande & Senzala”, ou em 1936, com a publicação de “Sobrados e Mucambos”. Terão entendido que, depois de “Casa Grande & Senzala” — obra que só tem um rival, “Os Sertões”, de Euclides da Cunha; no campo literário, “Grande Sertão: Veredas”, de Guimarães Rosa, é uma espécie de resposta literária (uma interpretação, via literatura, do Brasil) —, Gilberto Freyre esgotou-se? Talvez não. Mas de fato a obra basilar de Gilberto Freyre saiu em 1933 e, com ligeiras variações, ele continuou pensando a partir de “Casa Grande & Senzala”, a obra-matriz.

Gilberto Freyre: formação acadêmica rigorosa e escritor de mão cheia | Foto: Reprodução

Gilberto Freyre conservador: difícil de explicar?

O Gilberto Freyre conservador, que apoiou políticos conservadores, se tornou, posteriormente, um problema difícil de explicar? É provável. Como todo intelectual complexo, de posições sólidas, que não se importava com as modas acadêmicas, é mesmo difícil entender e explicá-lo, o de antes de 1936 e o depois de, digamos, 1964. Mas não é tarefa impossível. Guillermo Giucci e Enrique Larreta certamente precisarão de mais um ou dois volumes para explicar o mais inquiridor intelectual brasileiro. O saldo do primeiro volume, apesar das insuficiências na discussão de “Casa Grande & Senzala”, é extremamente positivo. Diria, até, que o livro é uma delícia, quase um romance sobre a vida de Gilberto Freyre, muitíssimo bem traduzido pela poeta Josely Vianna Baptista.

Inicialmente amado pela esquerda, embora tenha sido mais um rebelde conservador — quase um anarquista — do que um esquerdista, Gilberto Freyre, posteriormente, foi execrado por sua “ex-aliada”. Tentaram fazer picadinho de suas ideias, mas os grandes autores são eternos e, depois de resistiram aos primeiros e segundos ataques, se tornam clássicos. Assim é Gilberto Freyre.

Como a biografia não é destinada apenas ao público acadêmico, interessado em filigranas, é um equívoco manter a ortografia adotada nas décadas de 1920 e 1930. Nisso, claro, Guillermo Giucci e Enrique Larreta inspiram-se no próprio Gilberto Freyre.

A biografia resgata as relações de Gilberto Freyre com H. L. Mencken (o crítico americano que, ao lado de George Jean Nathan e Edmund Wilson, influenciou Paulo Francis) e Amy Lowell (poeta que aprovou uma crítica literária do garoto nordestino), e mostra as passagens do sociólogo pelas universidades Baylor, no Texas, e Columbia, em Nova York, e seu curto período em Oxford, na Inglaterra.

À perfeição, os autores indicam que Gilberto Freyre tirava intenso proveito de sua formação cosmopolita mas sem perder de vista a força da província, sua paixão e objeto permanente de estudo. Evidenciam, também, que os “insights” do sociólogo são importantes, mas provam que era um estudioso obsessivo, que usava seu pouco dinheiro para importar livros e, por isso, vivia quebrado. Não era puramente um literato. Era um “scholar” competente, severo, mas tinha um olho clínico para o subjetivo, sem que isto prejudicasse a objetividade de sua exposição. De certo modo, devido às qualidades literárias de sua narrativa, pode ser nominado de o Antonio Candido da sociologia brasileira (não custa revelar que o crítico literário paulista é sociólogo).

Outro resgate feito por Guillermo Giucci e Enrique Larreta é a respeito de Gilberto Freyre como um dos precursores do ambientalismo no Brasil e crítico do trânsito bárbaro. O ecologista criticava a poda excessiva de árvores. Sobre o automóvel, dizia, entre outras coisas, que o motorista deixava de ver o mundo com mais fluidez. A pressa produziu gerações que não sabiam nada de suas cidades.

Nas instrutivas notas, Guillermo Giucci e Enrique Larreta escrevem que Heloísa Alberto Torres foi vice-presidente do Club de Sociologia, do qual Gilberto Freyre era o presidente. Heloísa Torres não é mencionada no corpo do livro nem no índice onomástico. O índice arrola dois Torres: Alberto e Antônio.

Presente indica vitalidade de Freyre

A vitalidade da obra de Gilberto Freyre é tão grande, ao restabelecer o negro como personagem central na formação histórica da sociedade brasileira, que hoje até novelas, como “Duas Caras”, provocam polêmicas ao pôr um jovem negro e pobre (Lázaro Ramos faz o papel de Evilásio) para namorar uma jovem branca e rica (Débora Falabella é Júlia).

Na quarta-feira, 21, o “Diário da Manhã” publicou reportagem mostrando relacionamentos afetivos entre brancos e negros. A reportagem conta a história de Mônica Cristina Vieira, branca, e de Vinicius Júnior Campos. Os pais de Mônica diziam aos parentes que Vinicius “era negro, mas gente boa”. Laura Rosa, branca, casou-se com Elizeu Rosa, negro, e vivem bem. Um parente de Laura agrediu-o verbalmente, apontando sua negritude. O fato é que, como notou Gilberto Freyre, apesar de conflitos eventuais, negros e brancos se entendem no Brasil, como provam os exemplos citados pelo jornal goiano. Claro, há racismo, e forte.

Uma pena que o jornal não assina o texto do repórter. Felizmente, as ótimas fotografias de Adalberto Ruchelle provam o congraçamento de negros e brancos. O destino do Brasil é mesmo ser mestiço e isto não prejudica o país em nada, como entendeu, pioneiramente, Gilberto Freyre.

Freyre, o pioneiro que superou Borges e Sérgio Buarque

O sociólogo pernambucano Gilberto Freyre leu o romance “Ulysses”, de James Joyce, em 1922, na Europa (em Paris), e escreveu, pioneiramente — antes de, por exemplo, Edmund Wilson —, dois artigos a respeito do romance, no “Diário de Pernambuco”, em 11 de dezembro de 1924 (“James Joyce: o criador de um novo ritmo para o romance”) e em 10 de janeiro de 1926. Sérgio Buarque foi o segundo brasileiro a comentar a prosa complexa do escritor irlandês.

Os uruguaios Enrique Rodríguez Larreta e Guillermo Giucci contam que, “em janeiro de 1925, Jorge Luis Borges deu a conhecer um ensaio sobre o ‘Ulysses’ em seu livro ‘Inquisiciones’, que considerou precursor. ‘Sou o primeiro aventureiro hispânico que aportou ao livro de Joyce’ (‘El Ulises de Joyce’). Borges traduz também a última página do livro. Teria ficado surpreso se soubesse da existência de um texto sobre ‘Ulysses’ publicado em português, num jornal regional, escrito por um jovem quase da mesma idade dele”.

James Joyce: o talento do escritor irlandês foi rapidamente entendido e explicado por brasileiro

Os biógrafos notam que a leitura de Gilberto Freyre “contém agudas observações sobre a relação de ‘Ulysses’ com o despertar do amor físico e a crise religiosa” e “discute” o interesse de Joyce “pela história íntima e a literatura de autorrevelação”.

Trecho da análise de Gilberto Freyre: “Mas ao esteticismo do homem feito prendem-se ainda raízes do misticismo de menino. É assim que no Stephen que em ‘Ulysses’ se analisa e rói no mais podre da consciência e da subconsciência, sente-se ainda o católico-romano do colégio de padres. (…) Dir-se-ia parte da obra formidável que é ‘Ulysses’ uma como reportagem taquigráfica de flagrantes mentais. Do muito que se pensa sem ter coragem de dizer. Do muito que é recalcado na vida mental do homem pelo ‘censor’ da teoria freudiana. Joyce criou uma espécie de método taquigráfico para apanhar esses flagrantes de vida mental interior. Vida sem olhos e sem boca — porém vida. Vida sem disciplina moral. O ‘carnaval’ dos miolos, na frase de Herbert Gorman”. A percepção do fluxo de consciência se dá, em 1924, em cima da hora.

Enrique Larreta e Guillermo Giucci contam que, apesar de não mencionar Valéry Larbaud, pioneiro na crítica da obra de Joyce, Gilberto Freyre “está informado da recepção crítica da obra”. No artigo de 1924, Freyre escreveu: “Ao livro formidável que é ‘Ulysses’ conheci-o em Oxford, onde sua atualidade intensa era a inquietação de certos chás. O puritanismo conseguiu de algum modo abafar-lhe a influência, aliás destinada pela própria natureza do livro a aristocráticos limites. Mas o livro vai vencendo: e até sob as bananeiras do Rio já se vai pronunciando o inglês fácil do nome de Joyce. O inglês de suas obras é que será o difícil de soletrar”.

“‘Ulysses’ traz um ritmo novo para o romance. Nunca se escreveu um romance assim. A análise de vida interior que aí se faz é duma transparência e duma complexidade perturbantes. ‘Ao lado de Ulysses’ — escreve um crítico — ‘o ‘Satyricon’ é apenas o trabalho de uma criança obscena’. ‘It leaves Petronius ouf of sight’ observa o sr. Arnold Bennett. E Ezra Pound exalta-o sobre Cervantes, sobre Flaubert, sobre Proust.”

“Joyce quis tomar do fenômeno da vida um fôlego largo e forte, e para fixá-lo como que adaptou ao romance o ritmo da arquitetura medieval. ‘Ulysses’ é complexo como uma catedral. Não lhe encontro melhor comparação. É a mesma concentração de símbolos e de aspectos da vida. Nas catedrais góticas representam-se vícios, virtudes, o feio, o belo, as coisas da terra e as do céu e as do inferno. ‘Ulysses’ é assim. Um livro duma amplitude que perturba. As vezes parece que é pouco chamá-lo um livro”.

Gilberto Freyre quase se encontrou com Joyce em Paris, em 1922. O relato de Enrique Larreta e Guillermo Giucci: “Um amigo [da poeta] Amy Lowell [amiga de Freyre] foi encontrar-se com Freyre em Paris e levou-lhe cartas de apresentação para Ezra Pound e James Joyce. Porém, Joyce não estava em seu apartamento da Rue Du Cardinal Lemoine, 71 naquele verão. Viajara a Londres com a família para submeter-se a um tratamento oftalmológico. Seus problemas de visão agravaram-se aceleradamente no período final da redação do ‘Ulysses’. O encontro com Freyre não acontece”.

Gilberto Freyre também leu, com entusiasmo, “O Retrato do Artista Quando Jovem”, espécie de ensaio-escada de Joyce para o mais complexo “Ulysses”.