“Fala, Galvão!” conta boas histórias mas reserva apenas 16 linhas para Ricardo Teixeira, ex-presidente da CBF. ‘Nunca foi um homem de futebol’
“Fala, Galvão!” conta boas histórias mas reserva apenas 16 linhas para Ricardo Teixeira, ex-presidente da CBF. ‘Nunca foi um homem de futebol’

“Fala, Galvão!” (Globo Livros), de Galvão Bueno e Ingo Ostrovsky, são as memórias seletivas — quase hagiográficas — de um narrador esportivo que avalia que o mundo é galvaocêntrico (chega a se tratar na terceira pessoa, como se fosse Pelé). A impressão que se tem é que o jornalista da TV Globo (salário superior ao de William Bonner; é dono de vinícolas no Brasil e no exterior, cria gado) quer ficar bem com todo mundo — até com o ex-piloto de Fórmula 1 Nelson Piquet, antes tido como desafeto. A amizade muito próxima com jogadores de futebol e pilotos de automobilismo às vezes trava a percepção crítica, o julgamento equilibrado. Os amigos e colegas são apontados como “espetaculares”. Descontados os elogios exagerados e os erros de revisão, há boas histórias, sobretudo dos bastidores da Fórmula 1. O mais incensado dos pilotos, e com razão, é Ayrton Senna (1960-1994), apontado como o maior da história.

Aos 22 anos, ao ganhar uma corrida da Fórmula Ford 2000, Ayrton Senna aproximou-se e, chamando o narrador de “seu Galvão”, disse: “Eu vou chegar à Fórmula 1 e o sr. ainda vai narrar muita corrida minha”.

Ayrton Senna — ou “Ayyyyyyrton Senna do Brasiiiiil”, na narrativa das provas para a Globo — ganha 28 das 311 páginas do livro. Nenhum outro piloto ganha tanto espaço.

O piloto era uma fonte privilegiada para Galvão Bueno. Numa cor­rida, nos Estados Unidos, ante a informação de que “os carros da Williams eram mais rápidos” do que os da McLaren, Ayrton Senna cantou a pedra para o narrador: “Tive a in­formação de que o carro deles é muito rápido, mas o câmbio não vai aguentar, não deve passar de 15 voltas”. O funcionário da Globo deu a notícia e, de fato, “o câmbio da Williams de [Nigel] Mansell” quebrou.

No início de sua vida como piloto, Ayrton Senna estava sob pressão de seu pai, Milton Teodor Guirado da Silva. Miltão queria que o jovem “abandonasse o automobilismo”. O piloto insistiu e um sócio do pai, Armando Botelho, passou a se responsabilizar por ele.

Na Fórmula 3, em 1983, Ayrton Senna disputou 20 corridas e “ganhou 12 — nove consecutivas”. Um jornal inglês passou a chamar o autódromo de Silverstone de “Silvastone”. “Nesse ano, transmiti [com comentários de Reginaldo Leme] sua primeira corrida. Foi a única vez em sua história que a TV Globo transmitiu uma corrida de Fórmula 3. Todo mundo já percebia que ali existia um fenômeno.” Mas o futuro “rei” ainda era um plebeu que morava “numa casinha alugada e tinha um Alfa Romeo usado”. Quando recebeu uma multa, por ter estacionado em local indevido, Galvão Bueno teve de pagá-la. Seu prato preferido era espaguete.

Em 1984, Galvão Bueno o reencontra “correndo pela Tole­man”, quase uma carroça perto das outras escuderias. “Ele me vendeu a certeza de que chegaria lá. E eu comprei.” Era um jovem “reservado”. Porém, como piloto, era de “uma segurança enorme e uma cobrança de si mesmo absurda, quase desumana”.

Numa corrida de 1984, na África do Sul, Ayrton Senna marcou seu primeiro ponto e saiu “tão exausto que não conseguia nem andar”. “Reginaldo e eu o ajudamos a chegar ao motor house. E lá, trocamos a roupa dele. Ele estava entrevado de tanto esforço físico e tinha espasmos musculares. Ali, ele entendeu que a Fórmula 1 não era só talento. Fórmula 1 era talento, força mental e condicionamento físico. Foi a partir daí que Ayrton começou a trabalhar com Nuno Cobra e virou um atleta excepcional. Força mental ninguém nunca teve igual a ele. Ele destruía os adversários na mente. E no talento, nem se fala.” O narrador não explica o que quer dizer, exatamente, com “destruía os adversários na mente”.

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Ayrton Senna e Galvão Bueno: os dois se tornaram amigos íntimos e o narrador da TV Globo conseguia informações exclusivas com frequência

Em Mônaco, ainda na Toleman, quase ganhou sua primeira corrida. “A ultrapassagem em cima de Niki Lauda foi histórica. Ele estava em segundo, chegando em Prost, mais duas voltas e assumiria a ponta. As palavras que mais se ouviam nas cabines internacionais de TV vizinhas à nossa para descrever o que Senna estava fazendo eram ‘incredible’, ‘incroyable’ e ‘inacreditável’”. Porém, devido ao temporal, o diretor encerrou a prova. O brasileiro ficou, alegre, em segundo.

Alex Hawkridge, Ayrton Senna e Galvão Bueno foram ao Cassino de Monte Carlo, mas Ayrton Senna, de jogging, foi barrado e teve de pegar um paletó emprestado.

Em 1985, na Lotus, Ayrton Senna conquistou sua primeira vitória, sob forte chuva, no Grande Prêmio de Portugal. No mesmo ano, ganhou em Spa-Francor­champs, na Bélgica (adorava correr em Spa e Mônaco). O piloto comprou uma Mercedes 190, “o carro mais barato da Mercedes”, e, deliciado, dizia: “Paguei minha Mercedes hoje, paguei minha Mercedes!”

Primeiro título

Em 1988, pela McLaren, Ayrton Senna ganha seu primeiro título. Derrotou Prost. “Para mim, o campeonato mais marcante de todos foi esse. Ayrton foi o melhor piloto que já conheci.” O “maior piloto de todos os tempos”. Ao narrar uma corrida no qual ele vencera com certa dificuldade, Galvão disse: Ayrton Senna “é um homem que vive, que acorda, que almoça, que janta e que dorme Fórmula 1 e a sua profissão”.

Reservado na maioria das vezes, Ayrton Senna se transformava na presença de amigos mais íntimos. Era brincalhão. “Íamos sair para jantar e Ayrton bateu na porta do meu quarto. Quando abri, ele jogou um balde de água em mim. Ainda todo molhado, eu só pensava no troco.” Certa feita, o piloto estava com uma namorada, “importada” do Brasil, de nome Edileine, e Galvão Bueno queria devolver o balde de água. Pediu para Reginaldo Leme chamá-lo e ficou escondido. “Vou abrir, espera um pouco”, disse Ayrton Senna. “A porta abriu, eu mandei a água. Só que era ela. Toda arrumada para jantar, maquiada, pintada, chique pra caramba. Um vexame! E ele morrendo de rir atrás da moça.”

Nos anos 1980, em Miami, Ayr­ton Senna pôs “três cadeados no passador de cinto” da calça de Galvão Bueno. “Como é que eu ia tirar o cadeado se não tinha a chave? Tive que embarcar com os três cadeados. O americano não queria me deixar embarcar. E Ayrton dizia: ‘Não deixa ele embarcar, não, ele é louco’. (…) Eu quase não consigo embarcar.”

No Grande Prêmio de Mônaco, em 1988, Ayrton Senna “estava 52 segundos à frente de Prost”, mas “bateu na curva da entrada do túnel”. Galvão Bueno indagou-lhe: “Como é que bateu daquele jeito?” Ayrton, irritado, disse: “Pra você eu vou contar. Eu queria botar uma volta no Prost, uma volta no baixinho”. “Os dois corriam pela McLaren e seria diabólico meter uma volta no companheiro de equipe. Olha só a cabeça do Senna.” O piloto queria que Galvão Bueno explicasse isso aos jornalistas. Acabou sobrando para Reginaldo Leme.

Em 1993, Galvão Bueno perguntou: “Hoje você sofre mais do que se diverte, sofre muito, né?” Vitorioso, sempre na ponta, Ayrton Senna respondeu: “É uma pressão enorme ganhar todas as corridas”. O narrador ponderou: “Você tem que ser feliz. Você tem que se co­brar menos”. O piloto replicou: “Não consigo, Galvão”. “Ele era mais que ídolo, era um herói brasileiro. Ele era o brasileiro que deu certo, vindo de um país onde tudo dava errado. Ele era o Brasil que dava certo.”

No GP da Europa em Donin­gton Park, naquele ano, Ayrton Senna teve como principal rival o francês Alain Prost. “Talvez tenha sido a melhor corrida que ele fez na vida. Ganhou de Prost [debaixo de chuva] — e também de Damon Hill — no braço e na estratégia. Fez as apostas certas de pneus naquela maluquice de chuva, sol, chuva, sol, ao contrário de Prost. Ayrton trocou de pneus quatro vezes; Prost, sete.” Na transmissão para a TV Globo, Galvão Bueno extrapolou: o piloto “não era desse planeta, era um extraterrestre”.

Num determinado momento, disputando a ponta com Prost, Ayrton Senna “entrou pelos boxes de Donington e a equipe McLaren não estava pronta para o pit stop. Ele passou como um louco e foi embora”. Galvão Bueno disse: “Que erro absurdo!” Mais tarde, Ayrton Senna explicou-se para o amigo: “Eu quis fazer um teste e avisei para os caras: vou passar por dentro dos boxes e vocês me dão a cronometragem, porque se o Prost estiver na minha frente, eu passo ele por dentro dos boxes”. Era “pura estratégia”, frisa o narrador. “Naquela época não existia limite de velocidade nos boxes. Ayrton tinha domínio total da corrida, sabia de cada detalhe do que acontecia na pista, era inacreditável”.

Prost e Ayrton Senna eram ad­ver­­sários ferrenhos. “As voltas de clas­sificação” de Ayrton Senna “são ines­quecíveis. Ele ficava dentro do car­ro, ele e Prost, um olhando para o ou­tro, para ver quem saía por último. E Prost saía antes. Ele vinha depois, fa­zia a pole position no último se­gundo. Era cruel com os adversários, mas o mundo da Fórmula 1 é assim. (…) O cara para ser campeão de automobilismo não pode ser bonzinho”.

Ayrton Senna e Prost se respeitavam da mesma maneira que se odiavam nas pistas. “Ayrton era mais rápido, arrojado. Prost era mais frio, calculista. “Na largada do GP do Japão”, em 1990, “Ayrton, de McLaren, literalmente bateu de propósito na primeira curva na Ferrari de Prost. Os dois saíram da corrida. O campeonato foi decidido na primeira curva de Suzuka: bicampeonato de Ayrton. Eu me lembro de ter perguntado depois: ‘Pô, o que você fez? Fechou os olhos?’ Aí ele, cinicamente, falou: ‘Não, Papagaio, eu errei os pedais. Fui pisar no freio, pisei no acelerador’. E saiu dando risada”. Prost já o havia atingido, em 1989.

De um profissionalismo que atormentava os mecânicos, Ayrton Senna “era sempre o último piloto a sair do autódromo. Era um perfeccionista, lia a telemetria de cabo a rabo. Quantas vezes nós jantávamos, ele com aqueles papéis de telemetria na mão, e eu dizendo: ‘O que você está fazendo? ‘Tô vendo as minhas curvas de potência… aqui, ó… tá vendo aqui? Aqui eu vou passar o Prost se ele estiver na minha frente’”.

“Cruel consigo mesmo”, Ayrton Senna “se cobrava num nível próximo ao da loucura. Exigia perfeição a cada instante, e por isso foi o piloto que foi”, diz Galvão Bueno.

Na Itália, em 1994, Ayrton Senna e outros pilotos estavam muito preocupados com a segurança. Havia um “boato de que Ayrton não correria em protesto pela falta de segurança”. Por isso Frank Williams perguntou para Galvão Bueno: “Você, que o conhece bem, acha que ele vai correr amanhã?” O narrador contrapôs: “Frank, eu achei que você o conhecesse melhor. Não é só correr. Ele vai correr e ganhar a corrida”. O chefão da Williams aquiesceu: “É, também penso assim, mas queria mais uma opinião”.

Em Jerez de La Frontera, Galvão Bueno quis saber: “Para você, o que é uma Ferrari?” Ayrton Senna respondeu: “A Ferrari é uma cor, um ronco de motor, um estilo de vida, um carro campeão”. Mesmo sabendo que a Ferrari não estava bem, o narrador sugeriu que aceitasse ser piloto da escuderia italiana. O piloto não quis: “Eu não posso, porque eu já não sou campeão há dois anos [tinha sido em 1991]. Eu não posso ficar mais um ano sem ser campeão. (…) Eu vou para a Williams, vou ganhar o campeonato, vou correr lá dois anos, quero ganhar dois campeonatos para igualar o Fangio, e depois eu vou para a Ferrari. Aí encerro a minha carreira na Ferrari”.

No meio do caminho, diria Carlos Drummond de Andrade, tinha uma curva. Em 1994.