Gal Costa, o sorriso do gato de Alice

09 novembro 2022 às 18h59

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Everaldo Leite
Especial para o Jornal Opção
Gal Costa foi a melhor voz feminina brasileira nas últimas décadas. Além disso, uma das maiores intérpretes de todos os tempos, fazendo, não raramente, da música alheia, algo que nem o compositor ou a compositora sabia que seria possível. Que voz! Ela foi uma artista dinâmica, consistente e atual, sendo do tempo dos festivais, mas também do tempo dos discos de vinil, da rádio, dos programas de auditório, dos tempos do CDs, da MTV, dos DVDs, do Spotify, do YouTube etc. Diria mesmo que, atenta aos assuntos desconcertantes do momento, foi uma pós-moderna por ofício.
Gal Costa foi também uma tropicalista fundamental e, evidentemente, também posa na capa daquele álbum antológico do tropicalismo, juntamente com Caetano Veloso, Gilberto Gil, Torquato Neto, os Mutantes, Tom Zé e Rogério Duprat. Sim, naquele velho disco que ninguém mais sabe definir o que foi, já que tal indefinição de estilo era mesmo a essência do tropicalismo. Gal está lá, na foto, sentada de vestido amarelo, com sua feição séria. Não era momento de sorrisos, a ditadura militar aos poucos se tornava uma anomalia indesejada. “As folhas sabem procurar pelo sol e as raízes procurar, procurar”, cantavam.

A artista soube compreender seu lugar na música popular brasileira, algo muito relevante. Seu primeiro trabalho junto com Caetano Veloso, o disco “Domingo”, foi uma espécie de sub-bossa nova, um disco um tanto constrangedor, mesmo tendo canções marcantes. Após a fase tropicalista, na verdade, foi quando Gal Costa se tornou a Gal Costa. O tropicalismo durou pouco tempo, abafado pela perseguição política a Gilberto Gil e Caetano Veloso, que se exilaram em Londres, mas, especialmente, por ter sido superado por outras emergências, como a ascensão dos “Secos e Molhados”, dos “Novos Baianos” e de artistas nordestinos como Belchior, Fagner, Ednardo, Zé Ramalho, Alceu Valença, que exploraram inovações nas fronteiras estéticas da música popular. Gal Costa fez o mesmo, sem ser incoerente.
A sua característica transgressora foi se acentuando a cada disco. Em “Índia”, a capa traz a foto do “lado de baixo do equador” da artista, salientando uma roupa íntima bastante ousada. Menores de idade precisavam esconder dos pais a posse de tal LP, que é excelente, é claro. Sendo baiana, houve muita facilidade para que lançasse mão de xotes, forrós, frevos, sem ter de pedir licença, assim como manteve forte relação musical com a bossa nova, os sambas, o rock, o blues e as canções modernas da MPB. Tinha lugar de fala universal. Escutar a discografia de Gal Costa é, realmente, viajar nas ondas “revolutivas” dos estilos musicais e dos discursos intrínsecos da época, desde a década de 1960.

Em “Gal canta Caymmi” a artista aponta para a baianidade de suas melhores e maiores referências. Com esse disco, não havia mais dúvida sobre com quem estávamos lidando. Que voz! Que disco! Se Carmen Miranda fosse da geração de Gal Costa, sentiria forte ponta de inveja. “Nem eu” é para colocar a cabeça no travesseiro e chorar de amor. “Só louco” é para morrer de amor. “Vatapá” é para se sentir nas ladeiras de Salvador. “O vento” é para olhar os saveiros no horizonte. “Rainha do mar” é para se sentir um pescador. A verdade é que somente Gal Costa e Jorge Amado conseguem nos levam para a Bahia sem precisarmos sair de casa. “Você já foi à Bahia, nega? Não? Então vá! Então vá!”.
Os discos que lançou da segunda metade da década de 1970 até os dias atuais foram trabalhos de grande amplitude musical. A morte de Tom Jobim inspirou o disco “Mina d’água do meu canto”, com canções de Chico Buarque e Caetano Veloso. A fase roqueira do próprio Caetano Veloso deve ter incentivado Gal Costa a gravar músicas, fazer shows com uma pegada mais roqueira e lançar o disco “Estratosférica”. Pena não ter gravado um espetáculo com as músicas do disco “Fa-tal: Gal a todo vapor” com essa verve de guitarras pesadas. Teria sido perfeito. Por outro lado, nossa “Tigresa” foi muito competente ao gravar “Gal canta Tom Jobim”, redefinindo o patamar a ser alcançado pelas próximas intérpretes.
Gal, obviamente, foi muito competitiva. Seu estupendo timbre de voz e musicalidade serão por muito tempo um desafio dificílimo para as pretensas concorrentes. Com música não se brinca, é preciso ter critérios, um ótimo arranjador e atender as suas exigências. No disco “O sorriso do gato de Alice”, em minha opinião, tem-se o álbum mais sofisticado de toda a obra de Gal Costa. Maria Bethânia e Marisa Monte, duas outras grandes intérpretes, que lutem para chegar lá. Com canções de Caetano Veloso (que está em quase todos os seus trabalhos), de Jorge Benjor, Gilberto Gil e Djavan, finalmente nos deparamos – esqueça o sentido científico – com o verdadeiro “estado da arte”.
Gal Costa fará falta, por sua capacidade ilimitada de “compor” uma interpretação sobre as composições de outros, mas, também, por deixar sempre claro – com seu sorriso do gato de Alice – até aonde as cantoras podem ir.
Everaldo Leite é economista.