Gabeira sugeriu que ministro Fernando Lyra enrolasse sobre censura a filme de Godard
25 setembro 2022 às 00h39
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Resenha publicada no Jornal Opção em 2009
O ex-deputado federal Fernando Lyra¹, ministro da Justiça do governo Sarney, lança seu livro de memórias (parciais): “Daquilo Que Eu Sei — Tancredo e a Transição Democrática” (Editora Iluminuras, 302 páginas). Há histórias muito boas, embora o leitor fique com a impressão de que Lyra sabe mais do que conta.
Com a queda da emenda das Diretas Já, a oposição se articulou para lançar candidato a presidente da República, no Colégio Eleitoral. Como presidente do PMDB de São Paulo, o então senador Fernando Henrique Cardoso era um dos articuladores da “pré-campanha”. Lyra acreditava que o príncipe dos sociólogos era um defensor ardoroso de Tancredo Neves.
Num encontro, em Belo Horizonte, Tancredo perguntou para o aliado: “Como está a posição de Fernando Henrique?”
Lyra não titubeou: “Garanto que ele está conosco. Fernando Henrique é meu amigo e jamais negaria sua posição. Ele nos apoia pra valer”.
Tancredo mostrou a Lyra uma entrevista do “príncipe do biquinho” (consequência de ter morado na França) ao jornal “O Estado de S. Paulo”, “com declarações habilmente apoiando Ulysses [Guimarães] ou que levavam a essa interpretação”.
Sem se avexar, o pertinaz pernambucano decifrou o jogo de mestre da dissimulação: “Isso tem uma explicação, doutor Tancredo. Veja que a entrevista foi concedida em São Paulo, numa sexta-feira à tarde. Ulysses também é paulista, como Fernando Henrique², que preside o PMDB paulista. De sexta, à tarde, até segunda, pela manhã, ele está em São Paulo, mas em todos os outros dias da semana ele se encontra em Brasília, onde vai acontecer a eleição para presidente. Por isso, fique tranquilo, ele vota no senhor!”
Como isso não está nos livros do sociólogo, autor de uma obra quase tão “esquecível” quanto a de Paulo Coelho, resta concluir, junto com o príncipe da socialdemocracia patropi, que é melhor esquecer seus textos.
Há um perfil curioso de Golbery do Couto e Silva, um dos pensadores do governo Geisel: “… era louco pelo poder e só o deixou quando não teve mais forças para mantê-lo”. Geisel teria imposto Golbery ao presidente João Figueiredo para garantir a transição democrática, mas, como Figueiredo não era Geisel, dado a articulações intelectuais, enjoou logo do Bruxo geiseliano.
Com razão, Lyra acusa Fernando Henrique de indeciso, de enrolar pra ver como fica, mas ele próprio admite que, ao censurar o filme “Je Vou Salue, Marie”, de Jean-Luc Godard, fez o mesmo: enrolou, enrolou, enrolou e censurou.
A censura ao filme de Godard, feita a pedido do bispo de Aparecida, foi encampada pelo presidente José Sarney, um escritor de “mão cheia” (eu não disse “cofre”) e cérebro de aço (parece não entrar nada lá). Lyra viu o filme e concluiu, com acerto: “Era péssimo. Considerei uma idiotice absoluta da Igreja querer censurar aquela besteira de Godard”. O escritor Sarney choramingava: “A Igreja sempre foi nossa aliada”.
Ao pedir orientação a Fernando Gabeira, o “liberal” 100%, Lyra arrancou uma opinião fernandohenriquista: “Disse que era totalmente contrário à censura, mas ponderou usando argumentos parecidos com o do presidente Sarney: a Igreja fora nossa aliada durante toda a ditadura. O tema requeria cuidado. ‘Se puder, vá levando’, foi o que ele me recomendou. Mas logo que o presidente Sarney censurou o filme, atendendo à Igreja, Gabeira foi o primeiro a fazer uma manifestação de protesto no Rio de Janeiro”. “Esqueçam o que eu disse” parece ser o lema de Gabeira.
A expressão “vanguarda do atraso” foi criada por Lyra para qualificar o presidente José Sarney como o moderno no meio do atraso, mas acabou pegando por aquilo que contém de verdade. O político maranhense é a vanguarda do atraso. O líder do atraso.
Sobre Leonel Brizola, Lyra repete aquilo que Juscelino Kubitschek dizia na década de 1950. Quando Brizola informava que ia visitá-lo, JK arranjava uma viagem inadiável e mandava ministros e outros auxiliares recebê-lo com tapete vermelho. Era um tremendo chato, que falava demais e não ouvia ninguém. Em 1989, candidato a vice-presidente na chapa de Brizola, Lyra descobriu-se peça decorativa. “Em algumas situações, eu ficava com a impressão de que Brizola não dava nenhuma importância a andar atualizado porque nutria a convicção de que seria um vencedor natural, por antecipação. (…) Brizola era um grande líder, mas não gostava de ouvir. Tinha muitos áulicos e poucos companheiros.”
Lyra omite a história de que teria sido amante da mulher do senador (falecido) Marcos Freyre. Há duas versões, e talvez a de Lyra seja a verdadeira. Segundo a polícia, o ex-deputado foi pego com a mulher de Freire num motel. O político pernambucano garante que ele e a mulher do correligionário foram sequestrados com o objetivo de desmoralizá-lo e ao senador, porque os dois eram dois críticos contundentes da ditadura civil-militar.
Ronaldo Caiado é o único político goiano citado (positivamente) por Lyra. Numa fotografia, aparece Maguito Vilela.
Notas atualizadas
¹ Fernando Lyra morreu em 2013, aos 74 anos.
² Na verdade, embora tenha se tornado político em São Paulo, além de ter sido professor da Universidade de São Paulo, Fernando Henrique Cardoso, de 91 anos, nasceu no Rio de Janeiro.