Como as brasileiras, as bancas de revistas e jornais da Argentina vendem tudo — até revistas e jornais, cada vez menos. O meu cérebro liberava lágrimas, que não chegavam aos olhos, quando via bancas empobrecidas, com escassas publicações e excesso de souvenirs para turistas.

Numa das bancas, na Recoleta, parei para comprar o “Clarín” e levei também a excelente revista “Ñ” (edição de 27 de abril de 2024), do jornal, que circula aos sábados. Fomos, eu e minha companheira Candice Marques de Lima (que organiza nossas viagens), comer medialunas no café Le Pain Quotidien, no Recoleta Mall.

No café, comecei a comer uma deliciosa medialuna com amêndoas e a tomar leite com chocolate. Abri a “Ñ” e, ao começar a leitura da resenha “Cortando una culebra em dos” (Cortando uma cobra em duas), assinada por Juan Arabia, fiquei, por assim dizer, mesmerizado. Parei de comer. Li todo o texto, traduzi parte dele na minha agenda. Aí, voltei a fartar-me. A medialuna estava ainda mais gostosa.

A resenha trata do lançamento de um livro de Frank Stanford (1948-1978), “Habla Terrena” (Pre-Textos, 106 páginas, tradução e notas de Patricio Ferrari y Graciela S. Guglielmone). É a primeira tradução em livro do poeta americano em espanhol.

Frank Stanford, de óculos escuros, com Allen Ginsberg, Peter Orlovsky e amigos, nos Estados Unidos | Foto: Reprodução

Minha ignorância é admitida de pronto: eu não sabia nada sobre o poeta Frank Stanford. Pois, terminada a leitura da resenha, comecei uma peregrinação pelas livrarias de Buenos Aires: Clássica y Moderna, Cúspide, El Ateneo, Eterna Cadencia, Guadalquivir, Librería de Ávila, Librería del Fondo de Cultura Económica, Libros del Pasage, Losada, Waldhuter (agora, só distribuidora, mas com estande na Feira do Livro de Buenos Aires) e Yenny. Nenhuma tinha a obra do bardo “ianque”.

Na Eterna Cadencia, em Palermo, um livreiro, com jeito de lorde inglês do século 19 e bigode refinado, informou que na terça-feira, 7, teria exemplares do livro. Mas era o dia de meu retorno ao Brasil. Então, voltei à Feria do Libro, na Rural — o amplo parque de exposição agropecuária da capital da Argentina —, e, como obsessivo que sou, vasculhei praticamente todos os estandes em busca do livro de Frank Stanford. “O sr. está procurando ouro”, brincou um atendente da Waldhuter. De fato, acertou: a poesia de Frank Stanford me parece, não ouro, e sim diamante. Um diamante para o cérebro e para os sentidos.

Carolyn Doris Wright: poeta norte-americana | Foto:: Stew Milne

Acessei o site da Editora Pre-Textos e, lá, pude ler: “Frank Stanford era um poeta dos poetas. Como Whitman, havia absorvido a ‘jerga de la calle’ [o jargão ou a gíria das ruas], e, desse caos verbal, produziu poesia” de qualidade em apenas uma década. “A magia escondida de sua poesia está na forma como maneja influências tão aparentemente não conectáveis — como a poesia guerreira japonesa, as tradições americanas do jazz e blues, o surrealismo francês e espanhol, as lendas do rei Arthur e de Chaucer, o misticismo zen e os yodels [cantos] populares dos locais mais recônditos do Sul” dos Estados Unidos.

Vários escritores, como Allan Ginsberg, Lawrence Ferlinghetti, Alan Dugan e C. D. Wright, disseram de Frank Stanford e sua poesia: “Eletrizante”, “um verdadeiro poeta”, “um talento raro”.

No site da livraria espanhola Casa del Libro — que visitei em Madri em 2010 —, li sobre a “originalidade” do poeta, sua “imaginação rica em sensualidade e crua seriedade emocional”. Frank Stanford viveu nos Estados do Mississippi (nasceu no “país” de Faulkner), Tennessee e Arkansas.

Frank Stanford: um poeta que optou por se insular no Arkansas | Foto: Reprodução

A obra-prima de Frank Stanford é “The Battlefield Where the Moon Says I Love You”. Logo pensei em Maria Lúcia Milleo Martins, a notável tradutora de Santa Catarina, para transpor o poeta sulista para o português. A publicação de uma coletânea seria bem-vinda — talvez pelas editoras 7Letras, Iluminuras ou Relicário.

Juan Arabia começa sua resenha citando um trecho de um poema de Frank Stanford: “Encontré a la muerte e al amor/ colgados como perros en mi huerto” (traduzo literalmente: “Encontrei a morte e o amor/ pendurados como cachorros em minha horta”).

Suicídio de Frank Stanford, aos 29 anos

Frank Stanford se suicidou, em 3 de junho de 1979, aos 29 anos — com três tiros no peito (usou um revólver calibre 22, como a jornalista goiana Consuelo Nasser).

Meio Rimbaud — até pelo insulamento numa cidade do Arkansas —, o poeta chegou a sugerir que não chegaria aos 30 anos. James McWilliams, biógrafo e autor do prólogo de “Habla Terrena”, sugere que Frank Stanford teria ficado abalado ao saber de um encontro entre sua mulher, Ginny Stanford, e sua amante, a poeta C. D. Wright.

De acordo com Juan Arabia, há uma radicalidade extrema nos versos de Frank Stanford. Ele cita: “Uma niña há quemado/ su tierra salvaje no para la muerte sino para la miel”. Ao mencionar um rio: “tiene ojos/como viales de veneno/ fue por esso que lo miré” (“tem olhos/ como frascos de veneno/ foi por isso que o olhei”).

O crítico de “Ñ” sublinha que, “em Stanford, vale muito a continuidade de sua prosódia, um ritmo que desaba [desploma] verso a verso na busca de uma perfeita originalidade (parecida à de Dylan Thomas), ainda que submetida a esses mesmos e surpreendentes disparos fundacionais. Isto pode ser aferido em quatro grandes pilares e poemas do livro, como “Nana para una niña que dicen no sobrevivirá esta noche”, “El río es un tempo para matar sin prévio aviso”, “Apunté quemaduras” e “Fuego dejado por viajeros”.

Noutro poema, colhido por Juan Arabia, Frank Stanford assinala: “en mi huerto ya no se ara/ en mis cuartos ya no se duerme/ me monté ao techo escondi/ la quinta de una barba el río arrastraba aguas abajo/ fue como una tarde/ en la tendiste una manta para/ una ballena arponeada la espera de que la luna/ se hindiese/ cuando la olí”. Juan Arabia percebe “um giro inesperado, mudando as direções, liberando o cavaleiro de sua noite. (…) Frank, para dizer de maneira mais clara, parecia conhecer bem o outro lado. Sempre escreveu desde as margens, literalmente com a arma no coldre”.

Frank Stanford, frisa o crítico do “Clarín”, escreveu poemas longos e curtos com a mesma qualidade. Entre os curtos, Juan Arabia destaca “Las Proas”: “sujeto el cuchillo bajo las aguas/ as barcas pasan e vão”. E “Pareja”: “alguns búhos [corujas] parten la medinoche queda a mano”.

As vozes do poeta chileno Nicanor Parra e do francês Jean Follain ressoam na poesia de Frank Stanford, assinala Juan Arabia. “Assim como modismos populares do Arkansas rural, de séries televisivas e do misticismo zen.”

James McWilliams escreve, no prólogo do livro “Habla Terrena”, que “Stanford teve muito a ver com sua obscuridade”, quase uma clandestinidade, por certo. Ele praticamente isolou-se em Fayetteville, no Arkansas — longe dos grandes centros, como Nova York. O bardo também não procurava as grandes editoras.

Frank Stanford se tornou mais celebrado quando outros autores começaram a beber em sua poesia — repercutindo-a. “O trabalho de Stanford foi principalmente divulgado e reconhecido posteriormente por outros poetas, como James Whitehead, C. D. Wright, Alan Dugan e Forrest Gander.”

Na revista “Ponto Virgulina”, encontrável na internet, li (e transcrevo) o poema “Algodão que se perde no campo”, de Frank Stanford, com tradução de Mariana Ruggieri.

Algodão que se perde no campo

Frank Stanford

Um pouco de uísque ruim

que eu tomo sozinho

igual você

quando esse vento

venta esse vento

no vão do delta

onde um aparelho de audição

perdido pode ser tomado

por uma larva gorda

quando as constelações negras

te fazem nadar para trás

em círculos de sangue

meninos de estábulo estragam suas mãos

por algum tempo

e um homem que nenhum de nós

pode viver sem

quebra o pescoço

pulando algum morro

perseguindo a raposa

de um quartilho

e um cavalo sangue bom

é libertado de sua angústia

mesmo as jovens irmãs

dos meninos com quem corremos

nós daríamos os nossos dedos

para tocá-las de novo

mas essa guerra

se infiltra em nós

pequeno inseticídio

e os grilos brancos daqueles dias

se desenroscam do anzol

não existem mais peixes

não existe mais isca

os rios são formados pelas lágrimas de fãs esportivos

tentamos derramar um rastro de sal

a desenhar um longo fusível

com um barril de pólvora

tentamos nadar para longe da quadra

como lesmas com guelras

as meninas da outra escola

saltam do ônibus

as nuvens tomam seu peso no gin

há um padrão em tudo isso

como a trama de uma saia

enlouquecemos todos olhando

[Tradução de Mariana Ruggieri]

Cotton You Lose in the Field

Some bad whiskey

I drink by myself

just like you

when this wind

blows as it does

in the delta

where a lost hearing aid

can be taken

for a grub worm

when the black constellations

make you swim backwards

in circles of blood

stableboys ruin their hands

for a while

and a man none of us

can do without

breaks his neck

jumping over some hill

chasing the fox

of a half-pint

and a fine-blooded horse

is put out of its misery

even the young sisters

of the boys we run with

we would give our fingers

to touch them again

but this war

seeps back into us

little insecticide

and the white cricket of those days

drags itself off the hook

there are no more fish

there is no more bait

the rivers are formed by the tears of sports fans

we try to pour a trail of salt

as if making a long fuse

with a gunpowder keg

we try to swim away from the gym

like slugs with gills

the girls from the other school

step off the bus

the clouds are weighed in at the gin

there is a pattern to all this

like a weave of a skirt

we all go crazy from looking