Frank Stanford, o poeta que Maria Lúcia Milléo precisa traduzir para o português
12 maio 2024 às 00h00
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Como as brasileiras, as bancas de revistas e jornais da Argentina vendem tudo — até revistas e jornais, cada vez menos. O meu cérebro liberava lágrimas, que não chegavam aos olhos, quando via bancas empobrecidas, com escassas publicações e excesso de souvenirs para turistas.
Numa das bancas, na Recoleta, parei para comprar o “Clarín” e levei também a excelente revista “Ñ” (edição de 27 de abril de 2024), do jornal, que circula aos sábados. Fomos, eu e minha companheira Candice Marques de Lima (que organiza nossas viagens), comer medialunas no café Le Pain Quotidien, no Recoleta Mall.
No café, comecei a comer uma deliciosa medialuna com amêndoas e a tomar leite com chocolate. Abri a “Ñ” e, ao começar a leitura da resenha “Cortando una culebra em dos” (Cortando uma cobra em duas), assinada por Juan Arabia, fiquei, por assim dizer, mesmerizado. Parei de comer. Li todo o texto, traduzi parte dele na minha agenda. Aí, voltei a fartar-me. A medialuna estava ainda mais gostosa.
A resenha trata do lançamento de um livro de Frank Stanford (1948-1978), “Habla Terrena” (Pre-Textos, 106 páginas, tradução e notas de Patricio Ferrari y Graciela S. Guglielmone). É a primeira tradução em livro do poeta americano em espanhol.
Minha ignorância é admitida de pronto: eu não sabia nada sobre o poeta Frank Stanford. Pois, terminada a leitura da resenha, comecei uma peregrinação pelas livrarias de Buenos Aires: Clássica y Moderna, Cúspide, El Ateneo, Eterna Cadencia, Guadalquivir, Librería de Ávila, Librería del Fondo de Cultura Económica, Libros del Pasage, Losada, Waldhuter (agora, só distribuidora, mas com estande na Feira do Livro de Buenos Aires) e Yenny. Nenhuma tinha a obra do bardo “ianque”.
Na Eterna Cadencia, em Palermo, um livreiro, com jeito de lorde inglês do século 19 e bigode refinado, informou que na terça-feira, 7, teria exemplares do livro. Mas era o dia de meu retorno ao Brasil. Então, voltei à Feria do Libro, na Rural — o amplo parque de exposição agropecuária da capital da Argentina —, e, como obsessivo que sou, vasculhei praticamente todos os estandes em busca do livro de Frank Stanford. “O sr. está procurando ouro”, brincou um atendente da Waldhuter. De fato, acertou: a poesia de Frank Stanford me parece, não ouro, e sim diamante. Um diamante para o cérebro e para os sentidos.
Acessei o site da Editora Pre-Textos e, lá, pude ler: “Frank Stanford era um poeta dos poetas. Como Whitman, havia absorvido a ‘jerga de la calle’ [o jargão ou a gíria das ruas], e, desse caos verbal, produziu poesia” de qualidade em apenas uma década. “A magia escondida de sua poesia está na forma como maneja influências tão aparentemente não conectáveis — como a poesia guerreira japonesa, as tradições americanas do jazz e blues, o surrealismo francês e espanhol, as lendas do rei Arthur e de Chaucer, o misticismo zen e os yodels [cantos] populares dos locais mais recônditos do Sul” dos Estados Unidos.
Vários escritores, como Allan Ginsberg, Lawrence Ferlinghetti, Alan Dugan e C. D. Wright, disseram de Frank Stanford e sua poesia: “Eletrizante”, “um verdadeiro poeta”, “um talento raro”.
No site da livraria espanhola Casa del Libro — que visitei em Madri em 2010 —, li sobre a “originalidade” do poeta, sua “imaginação rica em sensualidade e crua seriedade emocional”. Frank Stanford viveu nos Estados do Mississippi (nasceu no “país” de Faulkner), Tennessee e Arkansas.
A obra-prima de Frank Stanford é “The Battlefield Where the Moon Says I Love You”. Logo pensei em Maria Lúcia Milleo Martins, a notável tradutora de Santa Catarina, para transpor o poeta sulista para o português. A publicação de uma coletânea seria bem-vinda — talvez pelas editoras 7Letras, Iluminuras ou Relicário.
Juan Arabia começa sua resenha citando um trecho de um poema de Frank Stanford: “Encontré a la muerte e al amor/ colgados como perros en mi huerto” (traduzo literalmente: “Encontrei a morte e o amor/ pendurados como cachorros em minha horta”).
Suicídio de Frank Stanford, aos 29 anos
Frank Stanford se suicidou, em 3 de junho de 1979, aos 29 anos — com três tiros no peito (usou um revólver calibre 22, como a jornalista goiana Consuelo Nasser).
Meio Rimbaud — até pelo insulamento numa cidade do Arkansas —, o poeta chegou a sugerir que não chegaria aos 30 anos. James McWilliams, biógrafo e autor do prólogo de “Habla Terrena”, sugere que Frank Stanford teria ficado abalado ao saber de um encontro entre sua mulher, Ginny Stanford, e sua amante, a poeta C. D. Wright.
De acordo com Juan Arabia, há uma radicalidade extrema nos versos de Frank Stanford. Ele cita: “Uma niña há quemado/ su tierra salvaje no para la muerte sino para la miel”. Ao mencionar um rio: “tiene ojos/como viales de veneno/ fue por esso que lo miré” (“tem olhos/ como frascos de veneno/ foi por isso que o olhei”).
O crítico de “Ñ” sublinha que, “em Stanford, vale muito a continuidade de sua prosódia, um ritmo que desaba [desploma] verso a verso na busca de uma perfeita originalidade (parecida à de Dylan Thomas), ainda que submetida a esses mesmos e surpreendentes disparos fundacionais. Isto pode ser aferido em quatro grandes pilares e poemas do livro, como “Nana para una niña que dicen no sobrevivirá esta noche”, “El río es un tempo para matar sin prévio aviso”, “Apunté quemaduras” e “Fuego dejado por viajeros”.
Noutro poema, colhido por Juan Arabia, Frank Stanford assinala: “en mi huerto ya no se ara/ en mis cuartos ya no se duerme/ me monté ao techo escondi/ la quinta de una barba el río arrastraba aguas abajo/ fue como una tarde/ en la tendiste una manta para/ una ballena arponeada la espera de que la luna/ se hindiese/ cuando la olí”. Juan Arabia percebe “um giro inesperado, mudando as direções, liberando o cavaleiro de sua noite. (…) Frank, para dizer de maneira mais clara, parecia conhecer bem o outro lado. Sempre escreveu desde as margens, literalmente com a arma no coldre”.
Frank Stanford, frisa o crítico do “Clarín”, escreveu poemas longos e curtos com a mesma qualidade. Entre os curtos, Juan Arabia destaca “Las Proas”: “sujeto el cuchillo bajo las aguas/ as barcas pasan e vão”. E “Pareja”: “alguns búhos [corujas] parten la medinoche queda a mano”.
As vozes do poeta chileno Nicanor Parra e do francês Jean Follain ressoam na poesia de Frank Stanford, assinala Juan Arabia. “Assim como modismos populares do Arkansas rural, de séries televisivas e do misticismo zen.”
James McWilliams escreve, no prólogo do livro “Habla Terrena”, que “Stanford teve muito a ver com sua obscuridade”, quase uma clandestinidade, por certo. Ele praticamente isolou-se em Fayetteville, no Arkansas — longe dos grandes centros, como Nova York. O bardo também não procurava as grandes editoras.
Frank Stanford se tornou mais celebrado quando outros autores começaram a beber em sua poesia — repercutindo-a. “O trabalho de Stanford foi principalmente divulgado e reconhecido posteriormente por outros poetas, como James Whitehead, C. D. Wright, Alan Dugan e Forrest Gander.”
Na revista “Ponto Virgulina”, encontrável na internet, li (e transcrevo) o poema “Algodão que se perde no campo”, de Frank Stanford, com tradução de Mariana Ruggieri.
Algodão que se perde no campo
Frank Stanford
Um pouco de uísque ruim
que eu tomo sozinho
igual você
quando esse vento
venta esse vento
no vão do delta
onde um aparelho de audição
perdido pode ser tomado
por uma larva gorda
quando as constelações negras
te fazem nadar para trás
em círculos de sangue
meninos de estábulo estragam suas mãos
por algum tempo
e um homem que nenhum de nós
pode viver sem
quebra o pescoço
pulando algum morro
perseguindo a raposa
de um quartilho
e um cavalo sangue bom
é libertado de sua angústia
mesmo as jovens irmãs
dos meninos com quem corremos
nós daríamos os nossos dedos
para tocá-las de novo
mas essa guerra
se infiltra em nós
pequeno inseticídio
e os grilos brancos daqueles dias
se desenroscam do anzol
não existem mais peixes
não existe mais isca
os rios são formados pelas lágrimas de fãs esportivos
tentamos derramar um rastro de sal
a desenhar um longo fusível
com um barril de pólvora
tentamos nadar para longe da quadra
como lesmas com guelras
as meninas da outra escola
saltam do ônibus
as nuvens tomam seu peso no gin
há um padrão em tudo isso
como a trama de uma saia
enlouquecemos todos olhando
[Tradução de Mariana Ruggieri]
Cotton You Lose in the Field
Some bad whiskey
I drink by myself
just like you
when this wind
blows as it does
in the delta
where a lost hearing aid
can be taken
for a grub worm
when the black constellations
make you swim backwards
in circles of blood
stableboys ruin their hands
for a while
and a man none of us
can do without
breaks his neck
jumping over some hill
chasing the fox
of a half-pint
and a fine-blooded horse
is put out of its misery
even the young sisters
of the boys we run with
we would give our fingers
to touch them again
but this war
seeps back into us
little insecticide
and the white cricket of those days
drags itself off the hook
there are no more fish
there is no more bait
the rivers are formed by the tears of sports fans
we try to pour a trail of salt
as if making a long fuse
with a gunpowder keg
we try to swim away from the gym
like slugs with gills
the girls from the other school
step off the bus
the clouds are weighed in at the gin
there is a pattern to all this
like a weave of a skirt
we all go crazy from looking