Academia Sueca deve dar o Nobel de Literatura para Francis Ford Coppola, que transformou, com um filme, “O Poderoso Chefão”, de Mario Puzo, num romance fenomenalo-poderoso-chefao-anotacoes-de-coppola

Atenção: fato relevante: o Ministério da Saúde adverte: comece a ler o texto a partir do quinto parágrafo, contando deste. Os dois pontos em sequência são uma homenagem a Carlo Emilio Gadda, o maior escritor italiano depois de Dante e, quem sabe, Pirandello.

Eu, o poeta e jornalista Carlos Willian e o craque Alberto Nery não apreciamos a Academia Sueca, mas não por que não concedeu o Prêmio Nobel de Literatura para Philip Roth e Joyce Carol Oates. Nossa implicância é de outra natureza: nós achamos — na verdade, temos certeza — que, no lugar de Bob Dylan, os escandinavos deveriam ter laureado o americano Francis Ford Coppola, de 77 anos (nascido em Detroit, antes da crise da cidade, só poderia ser Ford). Por dois motivos basilares. Primeiro, porque criou e dirigiu o maior filme da história — “O Poderoso Chefão”, trilogia que começou em 1972 (o jornalista Danin Júnior garante que é o ano de nascimento do cinema). Segundo, porque melhorou — até transformou (há “O Poderoso Chefão” antes e depois de F. F. C.) — o romance do escritor ítalo-americano Mario Puzo. Assim, deve-se dizer que o verdadeiro “autor”, no cinema, é Francis Coppola. Os franceses, de Truffaut a Godard, sabem disso como poucos.

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A Academia Sueca um dia vai aceitar que Francis Coppola, mais Mercedes do que Ford, não é apenas um diretor de cinema, poeta das imagens e o “artista” que mais bem explicou a Máfia; no caso, nem mesmo a glamorização é defeito. A Máfia, apesar de violenta, é mesmo glamorosa. Ressalte-se que o siciliano Bernardo Provenzano, o capo mafioso do mundo real, quando foi preso, na Itália, estava ouvindo a trilha sonora de “O Poderoso Chefão”. Por que, então, não chamar Francis Coppola de escritor, se, de fato, reescreveu “O Poderoso Chefão”, o ponto de partida de Mario Puzo, para torná-lo uma imagem poderosa do capitalismo, e não apenas do americano, como o diretor aprecia sublinhar?

Só nos resta concluir, eu e Carlos Willian, com anuência do Iúri Rincón Godinho — e, às vezes, do pedronavista Marcelo Franco, do ironista Marco Antônio da Silva Lemos e do Lisandro Nogueira, quando não está mesmerizado pelo Ismail Xavier e pelos franceses da Nouvelle Vague —, que Francis Coppola, que anda desgostoso com o Ford, não é chefão, mas é poderoso… escritor. “Autor”, diriam os filhos da terra de Flaubert.

1974 --- Mario Puzo and Francis Coppola on the set of The Godfather Part II --- Image by © Corbis
Mario Puzo e Francis Coppola: o segundo fortaleceu a carreira do escritor | Image by © Corbis

Filme canoniza autor e romance

Como se sabe, até fora da Máfia, “O Poderoso Chefão”, o romance, é um livro interessantíssimo, mas de qualidade apenas média. Mario Puzo era um desses bons escritores do segundo time que a gente, com frequência, esconde seus romances naquela capa falsa de “Ulysses”, de James Joyce, e de “A Montanha Mágica”, de Thomas Mann. Não é, frise-se, um autor incontornável, mas é perfeitamente legível, até adorável. Suas histórias são por demais espichadas, o que mais chateia do que cansa os leitores, aqueles seres que, como os dinossauros, estão em extinção mesmo entre os críticos literários (alguns recorrem não mais aos livros, e sim ao Google, que funciona como cérebro principal, e não substituto). Pois, quando Mario Puzo, despontava para o anonimato, como se fosse o J. G. de Araújo Jorge ou José Mauro de Vasconcelos (que, admito, li com imenso prazer na infância; na adolescência, troquei-o por Júlio Ribeiro, Adelaide Carraro e Jorge Amado — com um prazer inenarrável, se se pode dizer assim) dos americanos, eis que, quase do nada, aparece Francis Coppola, um dos únicos gênios do cinema —quiçá, segundo o Carlos Willian, o único. O “detroitico” adaptou o romance “O Poderoso Chefão”, com Marlon Brando como protagonista (mais tarde, temos Al Pacino). O filme canonizou o romance e seu autor, tornando-o uma celebridade, talvez eterna. Daqui a 100 anos, talvez 666, todos vão se lembrar de Mario Puzo pela película de Francis Coppola. Alguns até dirão: “Ah, ‘O Poderoso Chefão’, o filme de Coppola que deu origem ao livro de Mario Puzo”. É aquele tipo de erro que está certo. O livro “renasceu” a partir do filme.

Os cinéfilos, os poderófilos-chefões, certamente hão de se perguntar: como Francis Coppola conseguiu adaptar um romance pesadão, com uma história de uma violência ímpar, num filme com certa leveza — tanto que a Máfia soa mais simpática, mais, digamos, humana em suas idiossincrasias? Simples: leu o livro cuidadosamente — só na segunda leitura conseguiu captar seu espírito — e fez centenas de anotações. Aquilo que anotou às margens de “O Poderoso Chefão”, o romance de Mario Puzo, sai agora, em novembro, no livro “The Godfather Notebook” (Regan Arts, 784 páginas), com duas edições: a de luxo custa 250 dólares e a comum vale 50 dólares. “Imperdível”, diriam o jornalista João Paulo Teixeira, o mestre Cleiton Scott e o Talmon, o Pinheiro da advocacia.

Francis Ford Coppola, Marlon Brando e Al Pacino: o trio que fez de "O Poderoso Chefão" uma obra icônica, que trascendeu ao cinema
Francis Ford Coppola, Marlon Brando e Al Pacino: o trio que fez de “O Poderoso Chefão” uma obra icônica, que transcendeu ao cinema

Ao comentar o livro, o jornal espanhol “La Vanguardia” assinala que “O Poderoso Chefão” é uma “película mítica”. É. Porque contém todo o cinema e, mais, as fragmentações e contradições da vida. As grandes obras, como “Memórias Póstumas de Brás”, de Machado de Assis, “Em Busca do Tempo Perdido”, de Proust, “Ulysses”, de Joyce, “A Montanha Mágica”, de Mann, “Grande Sertão: Veredas”, de Guimarães Rosa, são universais porque contam a história da civilização, que inclui a barbárie (uma faceta que, longe de ser temporária, é permanente — é do homem, como sabia Mario Puzo e sabe Francis Coppola. No filme, Michael Corleone, o fabuloso Al Pacino, surpreende-se ao concluir que, quanto mais tentava limpar seus negócios, percebia que os negócios ditos limpos eram, se não na superfície, e sim na essência, igualmente sujos).

“La Vanguardia” frisa que Francis Coppola, um artesão do cinema, cuidou milimetricamente (usa-se, no jornal, centímetro; eu, mais exagerado, opto por milímetro) da adaptação. As notas que fazia nas laterais do romance de Mario Puzo (aliás, depois do filme, deveria se dizer: “de Mario Puzo e Francis Coppola”), além dos grifos frequentes, foram decisivas para se captar a essência da história. Francis Coppola admite que, no início, queria “reduzir o projeto”, porque avaliava que era “demasiado comercial”. Porém, artista sensato, decidiu ler o romance pela segunda vez, abrindo-se à história. Na releitura, escreveu a maioria das notas e, sobretudo, mudou de opinião a respeito da prosa às vezes modorrenta de Mario Puzo. Ele revela que descobriu que a história de Mario Puzo, ainda que sem teorização, era “uma metáfora do capitalismo americano por intermédio de um grande rei [Vito Corleone-Marlon Brando] com três filhos” (entre eles, Michael Corleone-Al Pacino).

Segundo o jornal espanhol, “o sistema de anotações que Coppola usou em seu livro era similar ao que Elia Kazan utilizava”. Ele “dividia cada cena em cinco partes: sinopse, os tempos, imagens, tom, tramas e núcleo”. Admirador do grande Kazan (sempre perseguido pelas esquerdas), o diretor de “O Poderoso Chefão” diz que o núcleo é o fundamento do filme. Quem pode explicar isto, com certa galhardia e precisão, é o crítico Lisandro Nogueira, que só não viu ainda os filmes que não foram feitos.

Francis Coppola diz que, quanto mais marcava e sublinhava o romance de Mario Puzo, mais percebia que se poderia fazer um filme que se tornaria, digamos, icônico — uma espécie de patrimônio histórico-cultural da humanidade (até o pão de queijo se tornou patrimônio cultural!). O cineasta afirma que a quantidade de notas que deixou nas páginas do romance significa o quanto determinada cena seria importante para o filme, para firmar a história no cinema. As anotações eram cruciais para “traduzir o romance em imagens”. “O roteiro era realmente um documento desnecessário, porque poderia fazer o filme só com meu livro de notas”, postula Francis Coppola.

Na sua publicidade, a editora Regan Arts frisa que a obra de Francis Coppola é “o mais importante livro não-publicado sobre um dos melhores filmes de todos os tempos”. A obra contém fotografias raras do making of do filme “O Poderoso Chefão”.

Marlon Brando, caracterizado como o mafioso Vito Corlone, e Francis Ford Coppola
Marlon Brando, caracterizado como o mafioso Vito Corlone, e Francis Ford Coppola

Filme transcende o romance

O que o livro prova de mais importante é que um artista, ao adaptar a obra de outro criador, precisa estudá-la com o máximo de atenção, não para traduzi-la fielmente — adaptações fieis para o cinema raramente funcionam bem —, e sim para criar outra obra à altura do ponto de partida. No caso, ao compreender a história à perfeição, Francis Coppola conseguiu transcendê-la e assim, diriam o poeta Adalberto de Queiroz e o contista Paulo Lima, fez um grande filme, que se pode assistir várias vezes, sempre tirando novos proveitos estéticos e, se o cinéfilo quiser, dicas para a vida. O cineasta americano se torna um misto de Marco Aurélio, Sêneca e Montaigne do cinema.

Uma coisa é certa, sugerem os escritores Anderson Alcântara e Aureliano Martins: quem não viu “O Poderoso Chefão” pelo menos duas vezes — sempre de joelhos, em sinal de respeito e amor à arte —, bom sujeito não deve ser. “Mas os dois não disseram isto!”, contrapõe Carlos Willian. Ora, se não disseram, deveriam ter dito. Aliás, ficou dito.