Folha de S. Paulo contrata Ricardo Kotscho para escrever reportagens especiais

30 janeiro 2018 às 12h15

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Jornais publicam mais notícias e esquecem a grande reportagem. A “Folha” pretende retomar a publicação de reportagens de alta qualidade
Aos 69 anos, Ricardo Kotscho é um dos mais notáveis repórteres do país. Trabalhou no governo do ex-presidente Lula da Silva, entre 2003-2004, como secretário de Imprensa e Divulgação da Presidência da República. Saiu incólume — o que é raro. Felizmente, saiu a tempo, pois ensaiava uma defesa impossível do lulopetismo, como se fosse ideólogo — da estirpe de André Singer —, o que, em definitivo, não é. Prestes a completar 70 anos, vai escrever reportagens para a “Folha de S. Paulo”.
Trata-se de um grande acerto do jornal da família Frias, dirigido pelo jornalista Sérgio Dávila. O leitor da “Folha” certamente vai ler grandes reportagens e muito bem escritas. Quem deixa de ler uma reportagem de Ricardo Kotscho? Ninguém, por certo. Nem mesmo aqueles que, devido ao fato de ter trabalhado com Lula da Silva, passaram a abominá-lo. O que alguns não entendem é que Ricardo Kotscho é um grande repórter e, como tal, não distorce informações. Ele merece o título de Sr. Reportagem. (Critiquei o livro “Do Golpe ao Planalto — Uma Vida de Repórter”, mas nunca deixei de reconhecê-lo como um modelo de profissional.)
Ricardo Kotscho vai trabalhar para a “Folha” como colaborador. “Fiquei muito feliz com essa oportunidade de voltar ao jornal depois de tanto tempo. Vai ser a terceira vez”, disse ao J&Cia. “Só não dá para ser já porque ainda não me recuperei daquele tombo que levei no final do ano. Assim que o médico me liberar, vou voltar pra rua, que é o meu lugar. Quem tiver alguma boa sugestão de pauta, que não seja política nem desgraça, pode me mandar. Voltarei a contar histórias da vida real.”
O currículo de Ricardo Kotscho inclui passagens notáveis por vários veículos de comunicação, como “Estadão”, “Folha de S. Paulo”, “Jornal do Brasil”, “IstoÉ”, “Época”, TV Globo. Ele foi correspondente na Alemanha. Ganhou quatro Essos de Jornalismo.
Leia abaixo resenha sobre livro de Ricardo Kotscho que escrevi em 2006, quando foi lançado. Talvez seja excessivamente dura, mas verdadeira. Lembro ao leitor que meu texto foi escrito há 12 anos. Kotscho retomou sua caminhada de repórter e deixou de lado a assessoria política.
Poder devorou o repórter Ricardo Kotscho
Quem espera revelações sensacionais do livro “Do Golpe ao Planalto — Uma Vida de Repórter” (Companhia das Letras, 368 páginas), de Ricardo Kotscho, terá de tirar o Lulinha da chuva. Não há, em nenhum momento, o tom explosivo de “Minha Razão de Viver”, de Samuel Wainer, nem a riqueza de informações de “Chatô”, de Fernando Morais. O texto é muito bom, escraviza o leitor, mas, para dizer pouco, falta contexto histórico, apresentado apenas de relance. Daí alguns leitores terem dito que o livro, apesar de bem-escrito e contar histórias interessantes, é decepcionante.
“Do Golpe ao Planalto” é a história de um repórter correto e, vá lá, criativo. Desses que têm uma vocação humanista e não estão preocupados, digamos assim, com o chamado jornalismo investigativo (talvez mais destrutivo do que investigativo — por falta de uma gota de humanismo. A ânsia de, à força, corrigir o homem, de ter tudo explicado, é uma tarefa mais para ditadores do que para repórteres). Se fosse historiador, Kotscho certamente seria adepto da história das mentalidades. O forte do livro, que não será comentado aqui, é a sua história de repórter, com muitos acertos e alguns equívocos, que o autor admite sem tergiversar (cita até certa covardia pessoal). A pior parte, porque mais emocional e política (que não é o forte do repórter), é o posfácio, que será comentado rapidamente. Muitos certamente vão dizê-lo ingênuo ou, como está na moda, idealista. Talvez seja melhor assim, pois Kotscho não é um profissional desonesto. Pelo contrário, é de uma seriedade exemplar. Um repórter da velha guarda, no melhor dos sentidos.

A crença de Kotscho em Lula parece coisa de parvos, o que o repórter não é. Tudo indica que a paixão dele pelo petista o cega. Mesmo assim, o repórter, quando a razão aflora, o que ocorre raramente, percebe o Lula real. Por não amar o poder, e amar a família, Kotscho deixou o disputado cargo de secretário de Imprensa e Divulgação da Presidência da República (o repórter-primeiro amigo conta que, por telefone, ainda tenta influenciar o governo Lula, quer dizer, não está inteiramente afastado do Collor de Garanhuns). É a sua explicação para abandonar o barco de Lula. Ele sustenta que, quando estava ao lado do rei, não sabia nada de mensalão e Marcos Valério. Era da cozinha de Lula, como Delúbio Soares e José Dirceu, mas, como o presidente, não sabia de nada. É provável que, no poder, Kotscho tenha deixado de ser repórter. O poder costuma devorar a alma dos grandes repórteres. Kotscho não me parece a figura do execrável bajulador, do tradicional dobrador de joelhos, mas, no poder, na presença do rei, perdeu o senso. O livro mostra que ainda não o recuperou, mas está próximo de reconquistá-lo. Kotscho é sério, mesmo quando está atraído mortalmente pela serpente Lula. Na ótima revista “Brasileiros”, Kotscho parece ter reencontrado o equilíbrio.
Afastado do governo, mas não de Lula, Kotscho diz que tinha alguns pressentimentos: “O principal era que o presidente, a vida toda habituado a aplausos e elogios, a ouvir muita gente antes de tomar uma decisão, postergando-a, esperando que os problemas se revolvessem com o tempo, não estivesse psicologicamente preparado para enfrentar uma onda daquele tamanho. Querendo agradar a todos, Lula talvez não soubesse perceber a tempo e reagir à altura quando o vento virasse contra ele. Se nos períodos de calmaria qualquer contrariedade ou problema menor já o deixava irritado além da conta, eu temia que sua reação diante de uma crise mais séria acabasse agravando-a. O governo e o presidente primeiro demoraram a entender a gravidade da situação e depois reagiram mal, partindo da defesa para o ataque sem uma estratégia definida”.
Adiante, mais uma estocada, talvez a possível, pois Kotscho e Lula continuam amigos: “Após algum tempo de perplexidade, dei-me conta de que a reação do presidente e do governo fora ainda mais danosa à imagem de ambos do que a crise em si, já bastante traumática. Quando a ficha finalmente caiu, meses depois das primeiras denúncias, Lula parecia ter voltado à época das assembleias dos metalúrgicos, achando que poderia resolver tudo no gogó, nos discursos de palanque. Reagiu com o fígado, o que é um veneno em política. Começou a viajar mais pelo país e para o exterior, em vez de pôr a casa em ordem e preparar sua tripulação para enfrentar a tempestade na mídia e no Congresso Nacional”.
É o máximo que Kotscho se permite de crítica a Lula. Seu livro inaugura, de certo modo, uma espécie de bibliografia positiva do presidente petista, assim como o livro do senador e economista Aloizio Mercadante.
No final do posfácio, Kotscho revela um diálogo que manteve com o sociólogo Fernando Henrique Cardoso, quando este era presidente da República:
— Presidente, o senhor conseguiu a reeleição, já está no segundo mandato, por que não dá um murro na mesa e governa do seu jeito, com quem achar melhor para o país?
— Você está maluco? Se eu fizer isso, meu governo acaba no dia seguinte.
A citação a Fernando Henrique Cardoso, algo sutil, é um lembrete aos que atacam Lula por ter mantido (ou manter) uma relação fisiológica com políticos tradicionais. Noutras palavras, Kotscho sugere que não é possível fazer diferente. O realismo de Kotscho, que às vezes posa de romântico, tem o objetivo de “perdoar” os “erros” de Lula e, por isso, é lamentável. Como se vê, quem explica Lula não é Kotscho, e sim Raymundo Faoro, o de “Os Donos do Poder” (espécie de biografia das elites políticas brasileiras).
“Do Golpe ao Planalto” é um excelente livro para estudantes de jornalismo e repórteres que estão começando na profissão. Por exemplo: Kotscho diz que reportagens feitas por telefone, sem contato com o mundo real, empobrecem a qualidade tanto das informações quanto do texto. Ele tem razão: os contatos por telefone, por mais que sejam eficientes (pela rapidez), esfriam as relações e raramente permitem que o repórter “entre” na intimidade dos entrevistados. Nada vale mais do que uma conversa olho no olho (mente-se com mais facilidade por telefone do que cara a cara). Bob Woodward, um dos repórteres que contribuíram para a queda de Richard Nixon, raramente conversava com sua principal fonte, Garganta Profunda, por telefone. Num tempo de grampos multiplicados, o telefone é a geladeira das conversações.
Sugiro uma ligeira mudança no (sub)título do livro: “Do Golpe ao Planalto: Uma Vida de Repórter e Assessor de Lula”. Sim, porque, de algum modo, mesmo a distância, Kotscho continua como auxiliar, ainda que informal, de Lula. O próprio livro é uma assessoria qualificada. Uma pena, pois Kotscho é mesmo um repórter brilhante e íntegro. Mas qual integridade resiste às necessidades e seduções do poder?