Frase clássica do livro: “Se não estivermos lá também nós, eles acabam fazendo uma república. Se queremos que tudo fique como está, é preciso que tudo mude”

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“O Leopardo”, do escritor italiano Tomasi di Lampedusa, com tradução de José Antônio Pinheiro Machado, de 1983: textos precisos na Língua Portuguesa

Qual é a melhor tradução do romance “O Leopardo” (de 1958), do escritor e príncipe italiano Giuseppe Tomasi di Lampedusa (1896-1957), duque de Parma? Não sei responder com precisão e, para sabê-lo, precisaria saber italiano à perfeição. Tenho quatro traduções, uma delas, feita por Rui Cabeçadas para a Difel, é de 1963. É fluente e tem poucos erros. A segunda tradução, da Nova Cultural (de 2003), pode não ser plágio da versão de Rui Cabeçadas, mas é muito parecida, quase idêntica (ressalve-se que traduções de um mesmo livro não têm como ser, na maioria das vezes, muito diferentes). Trata-se de uma versão corrigida? Pode ser, porém o tradutor é outro, Leonardo Codignoto.

José Antonio Pinheiro Machado é responsável por uma tradução precisa. Trecho da apresentação “‘O Leopardo’ em português”: “A presente tradução do ‘Leopardo’ difere de outras versões existentes em Língua Portuguesa por dois motivos. O primeiro é que tomou com base a última versão da obra, com diversas alterações, que só foi ‘descoberta’ bastante depois de morte do autor. Em segundo lugar, o critério adotado pelo tradutor foi o de respeitar com o maior rigor as delicadas sutilezas do texto de Tomasi di Lampedusa. A construção das frases e a própria pontuação em Lampedusa são bastante complexas: ele usa liberdades muito amplas. Há repetições, redundâncias, omissões deliberadas, variações às vezes quase delirantes que o tradutor não se considerou no direito de ‘copidescar’”. Adiante, a apresentação anota: “O texto que a L&PM tem a honra de agora publicar é o mais próximo do produto final desejado pelo grande escritor”. É importante saber que a tradução da editora do Rio Grande do Sul é de 1983.

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“O Gattopardo”, do escritor italiano Tomasi di Lampedusa, com tradução de Marina Colasanti, de 2000: textos precisos na Língua Portuguesa

A tradução mais elogiada por quem sabe italiano (como o jornalista e pesquisador Elio Gaspari, que nasceu na Itália), a da escritora Marina Colasanti, ganhou o título de “O Gattopardo” (o mesmo do original). É tão (ou mais) fluente (talvez seja melhor dizer modernizada) quanto a de Rui Cabeçadas, entretanto, devidamente anotada, o que não ocorre nas outras, com prefácio de Marina Colasanti e introdução do filho adotivo de Lampedusa. Gioacchino Lanza Tomasi serviu de modelo para o príncipe Tancredi.

Mais recente, a versão de Marina Colasanti é mais agradável, atualiza a linguagem, sem deixar escapar o tom clássico e, às vezes, áspero do texto, e certamente tira proveito tanto das traduções anteriores quanto dos estudos sobre o trabalho de Tomasi di Lampedusa, o que prova seu prefácio. Há problemas, que talvez sejam derivados do fato de que, tendo o país pelo menos três traduções anteriores, Marina Colasanti optou por mostrar-se, no geral, inteiramente diferente. Ela traduz “desceu a breve escada” e Rui Cabeçadas prefere o mais coloquial “desceu a pequena escada”. Rui Cabeçadas é mais preciso. Desconheço alguém de bom senso que diz ou escreve que uma escada pequena é “breve”. Pequena falha, se é uma falha, que não empalidece o belo trabalho de Marina Colasanti. Noutro trecho, Rui Cabeçadas traduz “velho libertino” e Marina Colasanti “moderniza” para “dinossauro libertino”. A tradução de José Antonio Pinheiro Machado é tão fluente, rigorosa e viva quanto a de Marina Colasanti.
Na tradução de um texto clássico do romance, o trecho citado por nove entre dez leitores do príncipe Tomasi di Lampedusa, deixo o julgamento por conta do leitor. A versão de Marina Colasanti: “Se nós não estivermos presentes, eles aprontam a república. Se queremos que tudo continue como está, é preciso que tudo mude. Fui claro?” (Tancredi diz isso para o tio, ou “tiozão”, Fabrizio Salina, na página 57). A tradução de Rui Cabeçadas: “Se nós não estivermos lá, eles fazem uma república. Se queremos que tudo fique como está é preciso que tudo mude. Expliquei-me bem?” (página 32). Tradução de José Antonio Pinheiro Machado: “Se não estivermos lá também nós, eles acabam fazendo uma república. Se queremos que tudo fique como está, é preciso que tudo mude. Consegui me explicar?” (página 35). Versão de Leonardo Codignoto: “Se não estivermos lá, eles fazem uma república. Se queremos que tudo fique como está, é preciso que tudo mude. Fui claro?” (página 42)

“Nós” são os integrantes da aristocracia, que entra em decadência sem perder a elegância, ou melhor, de certo modo perde parte da elegância ao unir-se, pelo casamento, para sobreviver, aos burgueses, novos-ricos, mas não chiques, como Angelica e seu pai, o esperto e grosso don Calogero. A base histórica do romance, que tem como personagens centrais os príncipes Tancredi Falconeri e Fabrizio Salina, é a guerra pela unificação da Itália, a partir de 1860/61. Fabrizio, o leopardo, prepara Tancredi para ser a ponte entre a aristocracia, “nós”, e os burgueses, “eles”. Enquanto ele próprio, embora tenha percepção precisa das mudanças e de que poderia sobreviver, adaptando-se aos novos tempos, prefere guardar as diferenças, não se integrando. Prefere desaparecer porque sabe que Tancredi é ele, integrado, moderno, ao se casar com a bela e rica Angelica. A velha classe só poderia sobreviver “seduzida” pelo dinheiro da nova classe, “antropofagia” que Fabrizio não poderia suportar, embora entendesse o processo como inevitável.

“O Leopardo”, do príncipe siciliano Tomasi di Lampedusa, com traduções de Rui Cabeçadas, de 1963, e de Leonardo Godignoto, de 2003
“O Leopardo”, do príncipe siciliano Tomasi di Lampedusa, com traduções de Rui Cabeçadas, de 1963, e de Leonardo Godignoto, de 2003

No geral, comparadas as traduções, o que não fiz com rigor e detalhadamente, é possível perceber que as de Marina Colasanti e de José Antonio Pinheiro Machado são, mesmo, as melhores, mas, em comparação com a de Rui Cabeçadas, a pioneira, que também é muito boa, são, quem sabe, superestimadas. Mais justo é admitir que a versão de Rui Cabeçadas, com mais de 50 anos, envelheceu, sim, mas como o leopardo Fabrizio Salina, isto é, com certo charme. As versões de Marina Colasanti e de José Antônio Pinheiro Machado são, de certo modo, Tancredi.

O filme “O Leopardo” (com três horas de duração no DVD da Versátil), do conde italiano Luchino Visconti, é uma adaptação, não tenho receio de dizer, perfeita do romance de Tomasi di Lampedusa (cinema é “arte” ou “sub-arte” para preguiçosos, quer dizer, para gente que quer a arte facilitada, dirigida). Visconti extraiu a essência do livro, mas, o que é raro, sem fazer um filme enfadonho, embora narre o fastígio dos nobres. Burt Lancaster está muitíssimo bem como Fabrizio. A crítica Pauline Kael assegura que Alain Delon não está bem como Tancredi, porque, garante, é frívolo demais. Pauline Kael talvez não tenha lido o livro: o personagem Tancredi é exatamente sério e, ao mesmo tempo, frívolo, como o novo tempo que surge, daí adaptar-se melhor do que don Fabrizio.

O escritor, médico e mestre em Filosofia Flávio Paranhos diz que jogaria fora algumas páginas do romance. Marina Colasanti revela que o livro, não tivesse falecido Lampedusa, aos 60 anos, de um câncer de pulmão, em 1957, poderia ser ainda maior. O filho do escritor encontrou sinais de que, como “O Processo”, de Franz Kafka, “O Gattopardo” ficou incompleto. “É um capítulo incompleto que seria constituído por 17 sonetos, dos quais só dois chegaram a ser escritos, além de uma ode e uma introdução. Nele, em forma de poesia, o príncipe Fabrizio revelava sua paixão por Angelica, sentimento que, se tivesse sido levado adiante na estrutura ficcional, teria modificado grandemente o romance, alterando o equilíbrio das relações.”
Felizes são os leitores de um país que tem quatro traduções de um grande romance, como “O Gattopardo”, de Tomasi di Lampedusa.

[Texto publicado em setembro de 2004, no Jornal Opção, e ligeiramente atualizado para republicação.]