Há homens importantes que não se tornam “históricos” por falta de registros. Então, se tornam indivíduos “menores”, figurando, no máximo, nos rodapés. Mas há livros que são capazes de “devolver” ou “fixar” tais pessoas na história. De recolocá-las na gesta coletiva.

Quem anda pelo bairro de Campinas, em Goiânia, descobre um edifício imponente no qual funciona o Colégio Pedro Gomes. Mas quem foi e, de alguma maneira, é Pedro Gomes?

Era um professor; portanto, a homenagem é justa, adequada. Pedro Adalberto Gomes de Oliveira (1883-1955 — viveu 73 anos) era professor e escritor. Um homem simples e decente, nada afeito a ganhar dinheiro.

Legou aos leitores brasileiros dois livros: “Na Cidade e na Roça”, de 1924, e “O Pito Aceso”, de 1942. Este é o mais famoso. Deixou uma obra inédita — “A Flor da Caraíba”.

Pedro Gomes era contista, ou “causista” — um contador de causos. Seus livros não são pretensiosos, em termos literários-estéticos. Mas são registros filológicos e etnográficos. O escritor captura, com certa mestria, a linguagem e os costumes do povo goiano na sua conexão entre cidade e campo. Com suas obras, quis fixar, e certamente o conseguiu, como viviam e falavam os goianos de seu tempo. Ele sabia que o passado vive no presente. Assim como os mortos habitam os vivos.

Pedro Gomes: autor de “Na Cidade e na Roça” e do clássico “O Pito Aceso” | Foto: Reprodução

Mestre que deu aulas por quase 50 anos, Pedro Gomes andava esquecido. Mas o médico e escritor Ademir Hamú decidiu recuperar sua história. Aqui e ali, sente-se, por assim dizer, o cheiro de hagiografia no livro “Pedro Gomes” (Chafariz, 156 páginas). Entretanto, só o esforço de recuperar uma boa história, de um homem de valor — franciscano em termo de finanças —, torna o livro importante.

“Pedro Gomes” pode não ser denso, falta a metodologia científica dos trabalhos acadêmicos ou a expertise de biógrafos como Lira Neto e Ruy Castro, mas abre as portas para pesquisas mais exaustivas. Ademir Hamú devolve-nos um professor-escritor que merece ser conhecido e reconhecido.

No belo prefácio, uma mini-biografia, o pesquisador e doutor pela Universidade de Salamanca Antônio César Caldas Pinheiro antecipa algumas coisas positivas do livro.

Escritor, músico e cantor

Pedro Gomes nasceu, em 1882, na Cidade de Goiás, então capital do Estado. Estudou no Lyceu de Goiás e, aos 17 anos, se tornou professor de 18 operários. Deu aulas em Curralinho (Itaberaí), foi delegado de polícia e secretário do Lyceu de Goiás.

Ao assumir a cadeira de Português no Lyceu de Goiás, Pedro Gomes publicou seu primeiro livro, “Na Cidade e na Roça”. Saiu pela Companhia Gráfica Monteiro Lobato. No mesmo colégio, lecionou História Universal e da Civilização. Na Escola Normal Oficial deu aulas de Português. Com o professor Nicéphoro Pereira Silva, fundou o Educandário Silva Gomes.

Em Goiânia, para onde se mudou em 1937, Pedro Gomes deu aulas no Lyceu e, para reforçar o orçamento, ministrava aulas particulares. Era um homem pobre.

Pela Empresa Gráfica Revista dos Tribunais, Pedro Gomes lançou, em 1942, o livro “O Pito Aceso”. No prefácio, Antônio Caldas conta que “o título o escritor buscara em Curralinho, onde a rua do lupanar tinha o sugestivo nome de Pito Aceso”. O que, diria um freudiano, é bem sugestivo.

Homem múltiplo (também apreciava a pesca e, como Hemingway, a caça), Pedro Gomes era músico. “Dominava violão, cavaquinho, flauta e clarineta”, anota Ademir Hamú. “Gostava de cantar, caçar e era um exímio marcador de quadrilhas, em francês.” Apreciava música erudita e caipira. Ele cantava (e tocava ao violão) “Saudade de Matão”. Apreciava catira e “recortados”.

Filha de Pedro Gomes, Sônia Oliveira disse a Ademir Hamú: “Meu pai foi um sábio. A vida na roça o fascinava. Era um admirador dos ‘causos’ contados pelo nosso caipira”. E fumava muito. “O dia inteiro.” Era distraído.

Os alunos eram apaixonados pelas aulas e brincadeiras de Pedro Gomes. “Sempre reservava os últimos minutos de suas aulas para contar alguma anedota interessante. Era o momento mais esperado de suas aulas.” Sônia Oliveira sublinha que era bem-humorado, humanista e tinha horror ao mal. “Dizia não ter religião.”

Autor do “Dicionário Analógico da Língua Portuguesa” — espécie de “bíblia” para o historiador Sérgio Buarque de Holanda e para o compositor Chico Buarque —, o Professor Francisco Ferreira dos Santos Azevedo era amigo de Pedro Gomes. Sônia Oliveira conta: “Pai e professor Ferreira viviam brincando. Um dia, pai vinha do mercado trazendo um frango. Professor Ferreira viu e falou alto para a esposa: ‘Ginita, conta os frangos aí no quintal para ver se não falta um’. Ao que pai respondeu: ‘Olha, Ferreira, o vendedor de frangos mandou saber quando você vai pagar os frangos que comprou fiado’”.

Ademir Hamú colhe trecho do livro “História da Instrução Pública em Goiás”, de Genesco Ferreira Bretas, que menciona Pedro Gomes: “Pequenino, magrinho, modesto, humilde, de voz pausada e sorriso constante nos lábios. (…) Andava de chinelas, porque, dizia, o dinheiro não dava para comprar sapatos”.

Críticas de Jubé, Mendonça Teles e Antônio Caldas

Bisneto de Pedro Gomes, Pedro Adalberto Gomes Neto, doutor em Filosofia, diz que o autor de “O Pito Aceso” é “o primeiro regionalista goiano”. Ele “ousou escrever sobre a cultura da nossa gente dentro do seu próprio manifestar. Ele não se ausentou para escrever por lembrança, mas pôs-se no caminho nele estando, descrevendo em seus causos o que ele mesmo via”.

O comentário de Gomes Neto é pertinente, mas o primeiro grande regionalista goiano certamente é Hugo de Carvalho Ramos. Mas, no sentido de falar de dentro, como insider, talvez a análise seja precisa.

Antônio Geraldo Ramos Jubé, poeta e crítico literário, escreve sobre o escritor: “Pedro Gomes dizia-se simplesmente um contador de histórias. Na maioria de seus contos, visa ao aspecto cômico, risonho da vida. Sua língua, correta, fluía natural, despida de artifícios. Sua obra contém belas páginas, dignas de antologia, tanto pela simplicidade estrutural da narrativa direta, como pela malícia da observação e registro de costumes e tipos locais, apanhados com fidelidade”.

Gilberto Mendonça Teles: poeta e crítico literário | Foto: Euler de França Belém/Jornal Opção

Ramos Jubé capta bem o fato de que Pedro Gomes se preocupava com a precisão do registro factual, com o detalhamento do que via e ouvia. Talvez até por ser professor, ele ia além do mero fazer literário.

Ao analisar “Na Cidade e na Roça” e “O Pito Aceso”, Ramos Jubé pondera: “No plano estético, a obra de Pedro Gomes não alcança o nível de ‘Tropas e Boiadas’ [de Hugo de Carvalho Ramos]. Mas é igualmente considerável, propiciando um valioso dado para o estudo da evolução do gênero em nosso Estado”. O crítico percebe o caráter etnográfico e filológico da obra do escritor. O que a distingue da literatura de Hugo de Carvalho Ramos, que era mais refinada. As preocupações do escritor que se matou aos 25 anos eram mais, digamos, literárias.

O poeta e pesquisador Geraldo Coelho Vaz diz que “Pedro Gomes foi o primeiro a publicar, como goiano e residente no Estado, um livro de contos”. E Hugo de Carvalho Ramos?

O crítico e poeta Gilberto Mendonça Teles segue as pegadas de Ramos Jubé: “Podemos imaginar duas linhas de desenvolvimento do conto em Goiás: uma, com tendências eruditas e refinamento literários, tendo as suas origens na obra de Hugo de Carvalho Ramos (1917); outra, mais popular e com menores possibilidades literárias, com os seus inícios nos causos de Pedro Gomes (1924) e, mais remotamente, em Crispiniano Tavares (“Contos Inéditos”, 1910)”.

Gilberto Mendonça Teles arrola Pedro Gomes entre os escritores “primitivistas”. “Essa linha se caracteriza pela falta de consciência artística, predominando as vivências primárias dos conflitos, numa ficção rasante, expressa sem maiores cuidados estilísticos.”

Pedro Gomes (é o homem que aparenta ser mais alto, de testa larga) | Foto: Reprodução

No livro “O Conto Brasileiro em Goiás”, Gilberto Mendonça Teles admite que Pedro Gomes explora “com certa habilidade o linguajar goiano”. O crítico enfatiza que se trata de “bom contador de histórias”.

“A maioria de seus contos” se caracteriza “por um tom anedótico que, não raras vezes, impedia sua maior realização literária. Faltou-lhe maior força criadora para a construção de uma obra mais polida. Deixou-se levar, talvez, pela facilidade com que escrevia e se consentiu demasiadamente no pitoresco e na simplicidade exagerada, não se dando conta de que a literatura, embora aproveitando os temas populares, é, antes de tudo, um instrumento de cultura, exigindo trabalho e uma constante aprendizagem de técnica e linguagem”, postula Gilberto Mendonça Teles.

O crítico acrescenta, com aspereza: a literatura de Pedro Gomes “não passa de um regionalismo romântico e primitivo, idealizando a roça em oposição à cidade”. Gilberto Mendonça Teles pontua que “O Pito Aceso” é melhor do que o primeiro livro: “Possuindo melhor estrutura e muito mais sabor literário”.

A transcrição da crítica rigorosa de Gilberto Mendonça Teles sinaliza que, embora a biografia escrita por Ademir Hamú seja “a favor”, não é hagiográfica.

Menos severo mas, ainda assim, perspicaz, Antônio Caldas afirma que os livros de Pedro Gomes “conservam muito da vida sertaneja dos matutos e mesmo dos habitantes da cidade”.

Antônio Caldas acrescenta que “esse modo de vida sertaneja foi descrito com mestria por Pedro Gomes. A transcrição da linguagem do homem sertanejo é uma preciosidade para os filólogos. Sua obra é excelente material para se elaborar um estudo filológico do falar goiano”. Penso o mesmo: a avaliação do pesquisador é pertinente.

Colégio Pedro Gomes, em Goiânia | Foto: Reprodução

Na “Revista Oeste”, de julho de 1942, o professor Carlos de Faria escreve a respeito de “O Pito Aceso”: “Tem estilo. E sua maior virtude é a simplicidade, a par da clareza. De Pedro Gomes pode-se dizer que escreve como fala”.

Num parecer, Vasco dos Reis escreveu sobre “O Pito Aceso”, na síntese de Carlos de Faria: “Constitui originalidade digna de menção a simplicidade com que pinta os sugestivos quadros e emoldura os tipos e as paisagens de um passado que contrasta, de modo tão violento, com a hora atual”. O livro contém 29 contos.

Zoroastro Artiaga escreveu sobre o escritor: “Pedro Gomes gosta imensamente da poesia repentista, do gênero de literatura humorística e do satirismo poético”.

“Tura” de agricultura, não de literatura

Curiosamente, Pedro Gomes era crítico de suas publicações. Não lhes dava muita importância. “Não escrevi o livro [“Na Cidade e na Roça”] para fazer literatura. Acho que o Brasil necessita mesmo de ‘tura’, mas é agricultura. (…) Escrevi meu livro para fixar aspectos da vida de Goiás e para que não se registrassem coisas nossas como sendo de outro lugar”, disse para Bernardo Élis. Ele pagou a impressão do livro para a editora de Monteiro Lobato.

Pedro Gomes escreveu: “Excusado é procurar nelle [“Na Cidade e na Roça”] sonoridade de linguagem ou belezas de formas literárias. (…) Não sou litterato. (…) Não foi escripto por escritor, mas por mau descrevedor” (a grafia original é preservada).

Quando publicou “O Pito Aceso”, Pedro Gomes alertou o leitor, de maneira irônica: “Não receio a crítica; a sã, a crítica sensata e inteligente não perceberá minha passagem pelo mundo das letras; a outra, a daqueles que fazem carreira deitando pó nos olhos dos basbaques, a crítica do idiota, esta me trará compensação por fazer circular este livro. Gosto tanto de rir…”.

Antônio César Caldas: analista da obra de Pedro Gomes | Foto: Divulgação

Como, sendo pobre, o autor conseguiu pagar a edição de seu primeiro livro? Pedro Gomes conta o que fez — o que o torna pioneiro em relação ao sistema atual (crowdfunding): “De antemão, fiz uma lista e vendi os livros. Quem queria, assinava a lista. Bati muito perna, mas paguei facilmente”. Já a edição de “O Pito Aceso” foi paga pelo governo do Estado, por intermediação de Carlos de Faria.

No livro “Goiás em Sol Maior”, Bernardo Élis fala de uma visita que fez a Pedro Gomes, em meados da década de 1950: “Achei o escritor com o mesmo aspecto de sempre: magríssimo. Sua fisionomia era boa e, espiritualmente, era o mesmo homem engraçado, chistoso, de uma mordacidade meio ingênua”.

Como estava adoentado, Pedro Gomes disse a Bernardo Élis: “Olhe, quase que você chega tarde, pois acho que não vou longe”. O autor de “Ermos e Gerais” escreve: “A impressão que tive foi que ele esperava a morte assim como quem paga um imposto: de má vontade”.

Para satisfação do leitor, Ademir Hamú transcreve três contos de “Na Cidade e na Roça” (“O recruta”, “O João Maria”, “Joaquim Pandiló”), dois contos de “O Pito Aceso” (“Vancê” e “Mil e tantos” — ambos divertidos e bem-escritos) e um conto de “A Flor da Caraíba” (“Intoxicado”)

Ademir Hamú, médico e pesquisador dedicado | Foto: Facebook

Mais no final do livro, Ademir Hamú relata que Pedro Gomes era casado com Lídia Xavier de Almeida. Ela sabia espanhol e italiano, era uma grande leitora e tocava piano. O casal teve sete filhos. Um deles, o jornalista Irorê Gomes de Oliveira, trabalhou em “O Popular”, no “Cinco de Março” e na “Folha de Goyaz”.

A história do Colégio Pedro Gomes

O governador Coimbra Bueno e o secretário de Educação, Hélio Seixo de Britto, fundaram, em 1947, o Colégio Estadual de Campinas. “Foi a primeira instituição de ensino secundário mantida pelo poder público estadual na região do bairro de Campinas”, conta Ademir Hamú.

O Colégio Estadual de Campinas foi transferido, em 1956, pela professora Lígia Maria Coelho Rebelo, para a Avenida Sergipe. Passou a ocupar, registra Ademir Hamú, “um local espaçoso e moderno, em uma gleba de terra destacada da Fazenda Abajá, nos arredores de Campinas, de propriedade de Eduardo Bilemjian, um dos primeiros fotógrafos de Goiânia, natural da Armênia”.

A partir de 1961, a escola mudou de nome: nascia o Colégio Estadual Professor Pedro Gomes. “Na gestão de Lígia Maria Coelho Rabelo, o colégio experimentou ensino de excelência e, para fazer parte do seu quadro discente, era necessário exame de seleção”, diz Ademir Hamú. “O Colégio Pedro Gomes representa um marco na educação gratuita no Brasil. Mais de 100 mil alunos” passaram pela escola.

Dou uma dica ao sério pesquisador Ademir Hamú. Suas fotografias deveriam ser retiradas do livro. Porque não têm a ver com o tempo de Pedro Gomes. Soa a uma espécie de anacronismo, digamos, surreal.