Onça-pintada do Morro do Mendanha virou “protagonista” de vídeo de dois anos atrás em “fake news” de portal

Brasileiro é um povo sem memória. Este poderia ser um tópico a mais na lista de 20 “verdades” sobre o Brasil que supostamente um americano teria dito, em uma carta divulgada e viralizada nas redes sociais na semana passada, após (também supostamente) ter casado com uma nativa e morado três anos por aqui. A amnésia coletiva se mostra no fato de que o conteúdo não é nada novo. Bastaria uma pesquisa pelo Google para perceber que a mesma “carta” está na rede pelo menos desde dezembro de 2013.

De qualquer maneira, isso não foi impeditivo para que o assunto voltasse à tona com muita repercussão, por meio do “Diário do Brasil”, uma página de notícias duvidosas – ou página duvidosa de notícias, como queiram. Publicar notícia antiga como se fosse fato novo não é uma boa para páginas que se considerem sérias, embora algumas caiam na tentação de fazer isso como forma de assegurar o cumprimento da meta de visualizações.

Mas o pior cenário é aquele em que a polêmica é noticiada como coisa nova por veículos de informação tradicionais. No caso do relato do americano desgostoso, um desses veículos afetados foi o portal de “O Popular”. Não é a primeira vez, nos últimos tempos, que o “fact checking” tem sido deixado para trás pelo site do jornal. “Fact checking” – ou “checagem de fatos”, em bom português – é apenas uma expressão mais elaborada para um princípio basilar do jornalismo: assegurar-se de que determinado acontecimento ou declaração realmente ocorreu e que foi exatamente daquela forma.

No fim de junho, o portal do Grupo Jaime Câmara se viu obrigado a se retratar sobre a notícia de uma onça-pintada que teria atacado cachorros no Morro do Mendanha – o “gancho” é que desde março há um felino da espécie na área rural da região oeste de Goiânia. O “fact checking” era simples: teria bastado, antes de digitar qualquer nota no site, conferir a data que consta no próprio vídeo em que aparece o animal para saber que o ocorrido se deu em 2015. O descuido levou à situação constrangedora de publicar uma errata. Semanas depois, a precipitação foi com relação à notícia de uma interceptação obtida em investigação sobre prostituição no Distrito Federal. O portal publicou que Jair Bolsonaro (PSC-RJ) e seu filho, Eduardo Bolsonaro (PSC-SP), ambos deputados federais, haviam sido flagrados conversando com agenciadores. Na verdade, foram assessores parlamentares dos dois Bolsonaros e mais o senador Ivo Cassol (PP-RO) os pegos na conversação suspeita. A nota foi corrigida no site de “O Popular”, mas não no do “Jornal do Tocantins”, também do grupo, onde os deputados continuavam a constar como os protagonistas do malfeito até no fechamento desta edição, no sábado, 22.

“O Popular” reproduziu publicação que já tinha sido viral em 2013

Em tempos de uso e abuso dos compartilhamentos nas redes sociais e nos grupos de conversação via aplicativos de celular (como o WhatsApp e o Telegram), o jornalismo precisa marcar posição de contraponto ao que se denominou “pós-verdade”. O chefe da propaganda nazista, Joseph Goebbels, falava que era preciso “fazer ressonar os boatos até se transformarem em notícias sendo estas replicadas pela ‘imprensa oficial’”. É o que hoje faz a pós-verdade: por meio dela, alicerçada em um clima de ódio, o filho de Lula se tornou “dono da Friboi” e o presidente Michel Temer se tornou um satanista. Seria mais simples se o fato de não gostar de determinado político ou de certa celebridade não condicionasse as pessoas a automaticamente reproduzirem tudo de negativo que aparecer sobre seu desafeto.

Mais do que veículos, jornalistas goianos têm caído no perigoso terreno de compartilharem notícias de portais bastante suspeitos. Não é raro ver profissionais conhecidos caindo em “pegadinhas” ou mesmo espalhando correntes. É um desserviço à informação e um reforço à banalização de boatos.

A responsabilidade do profissional da comunicação torna-se maior em um momento no qual, com a universalização da informação e com as redes sociais, todos se consideram, além de compartilhadores, também “produtores de notícias”. Ao mesmo tempo, a imprensa tradicional sofre ataques sobre o próprio conteúdo por parte de quem se considera detratado por ela. Exemplo maior é o presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, que comprou briga com praticamente todos os meios de comunicação mais respeitados do país. Para ele, não são nada mais do que fábricas de “fake news”. A repetição exaustiva dessa expressão por parte de Trump – uma tática que ele adotou justamente por se mostrar eficiente, inclusive para sua eleição –, tem feito uma parte da população passar a acreditar que tudo é realmente inventado.

Trump cria suas próprias verdades e ataca o que chama de “fake news”

Curiosamente, apesar de sua pouca empatia e uma alteridade tendendo a zero, o mesmo Trump conseguiu entender que as pessoas podem fazer exatamente seu jogo de “pós-verdade”. Um dos momentos clássicos (e tétricos) das últimas eleições presidenciais dos EUA foi quando ele acusou o então presidente Barack Obama de ter fundado o Estado Islâmico. Apesar da nítida aberração que dizia, observando o grau de repercussão da declaração e se valendo de um distorcido conceito de liberdade de expressão, o republicano continuou a bradar com veemência a verdade que inventara. Talvez tenha sido esse ódio nonsense que semeou o que lhe deu votos suficientes para chegar à Casa Branca.

O poder da imprensa livre está justamente no respeito que lhe passa a ser devido, justamente por fazer o me­lhor encaminhamento da informação que recebe. Em tempos de polarizações, não perder a verdade como base, independentemente dos posicionamentos editoriais, é não só admirável como necessário à sobrevivência do jornalismo como ferramenta de construção da sociedade. Para cada “fake news” é preciso que haja sempre um “fact checking” pronto para derrubá-lo. A verdade é preciosa demais para se tornar “pós”.