Executivos realistas não deixaram Trump “enterrar” os Estados Unidos entre 2017 e 2021… e o futuro?

21 julho 2024 às 00h00

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O ex-presidente dos Estados Unidos Donald John Trump é um político errático e, no geral, mal-informado a respeito do que ocorre nos Estados Unidos e noutros países, como China, Alemanha, Inglaterra, França, Japão e Coreia do Sul. Mas, diferentemente de alguns adversários, como o presidente Joe Biden, soube estabelecer uma comunicação direta com os eleitores, sobretudo os mais conservadores, mas não só. O líder do partido Republicano agrada milhões de filhos do país da vice-presidente Kamala Devi Harris com o discurso de os Steites para os americanos. O nós contra eles funciona, ao menos em certa medida.
Costumava-se dizer que os democratas eram protecionistas, portanto menos liberais do que os republicanos. Trump, contrário ao que chama de globalismo, é altamente protecionista. Porém, curiosamente, muito de seu nacionalismo protecionista foi barrado por auxiliares que conhecem bem as economias americana e mundial.
O jornalista que derrubou o presidente Richard Nixon, em 1974, Bob Woodward (com os préstimos de Carl Bernstein, entre outros,) escreveu um excelente livro sobre o político que, há poucos dias, levou um tiro numa orelha (logo ele que não aprecia escutar ninguém), “Medo — Trump na Casa Branca” (Todavia, 399 páginas, tradução de André Czarnobai, Paulo Geiger, Pedro Maia e Rogerio Galindo). Neste texto comento apenas dois capítulos (o sétimo e o 17º) da obra, nos quais se ressalta a falta de preparo de Trump para gerir a maior economia do planeta e, ao mesmo tempo, como auxiliares preparados conseguiram segurá-lo — levando, ao menos em parte, o presidente e o país para caminhos mais estáveis.

Talvez seja possível que uma burocracia qualificada, oriunda da iniciativa privada e dos meios militares, governaram por e, em medida, contra Trump. E a favor dos Estados Unidos.
Empresário que não entende o mercado
Eleito presidente, em 2016 (assumiu em janeiro de 2017), Trump começou a convidar executivos e militares para conversar, em geral na Trump Tower. Um dos convocados, o presidente do Goldman Sachs, Gary Cohn, disse, de cara, que “a economia americana em geral” estava “em boa forma”. Mas poderia crescer mais se “certas medidas fossem tomadas”. Ele sugeriu uma reforma tributária “e a remoção dos grilhões do excesso de regulamentação”.
Trump não gostou de ouvir o que Gary Cohn disse em seguida, no registro de Woodward: “Somos uma economia baseada no comércio. Comércio livre, justo e aberto era essencial”. Porém, o republicano “fizera campanha contra os acordos de comércio internacional”.
Gary Cohn acrescentou que, como “os Estados Unidos são um centro de imigração”, era preciso “continuar com as fronteiras abertas”. O banqueiro sublinhou que “o quadro do emprego era tão favorável que os Estados Unidos acabariam por ficar sem trabalhadores em breve. A imigração precisava continuar. ‘Temos muitos trabalhos neste país que os americanos não fazem’”.

Trump não ficou nada satisfeito, talvez tenha ficado com o rosto meio beterraba, contrastando com seu cabelo acenourado.
O presidente do Goldman Sachs disse que as taxas de juros subiriam, “em breve”. Trump disse: “Concordo. Devemos então tomar muito dinheiro emprestado agora e segurar para depois vender e lucrar”. De acordo com Woodward, “Cohn ficou espantado com a falta de compreensão básica de Trump. Ele tentou explicar: se você, como governo federal, pedir dinheiro emprestado através de emissão de títulos, aumentará o déficit americano”.
Trump contrapôs: “Basta fazer as máquinas rodarem. Imprimir dinheiro”. Gary Cohn corrigiu-o: “Não funciona assim. Temos enormes déficits, e eles são importantes. O governo não mantém o balanço desse modo. ‘Se você quer fazer a coisa inteligente — e você tem esse poder —, eu emitiria título do Tesouro de cinquenta e cem anos”.
Ante um Trump atônito, Gary Cohn explicou que “as taxas de juros subiriam por dois motivos. A economia estava ficando muito mais forte e taxas mais altas controlariam a inflação”. O banqueiro frisou que, se estivesse no comando do banco central americano, o FED, “aumentaria as taxas”.
“A carga tributária de 35% sobre as empresas” deveria ser revista, segundo Gary Cohn. “Precisamos alinhar nossa carga tributária com a média, que é de 21% ou 22%.”

O dirigente de banco postulou que os Estados Unidos não podiam continuar permitindo “que as empresas” continuassem indo para outros países. “É errado para os negócios. É errado para os empregos.”
Trump voltou a dizer que seu governo iria imprimir mais dólares. Gary Cohn o cortou: “Você não pode imprimir dinheiro”. Irritado, Trump vociferou: “Por que não?”
Woodward resume o pensamento de Gary Cohn: “O Congresso tinha um teto de endividamento que estabelecida um limite para quanto dinheiro o governo federal poderia tomar emprestado, e aquilo era legalmente vinculante. Estava claro que Trump não entendia como funcionava o balanço do ciclo da dívida do governo americano”.
Trump ofereceu vários cargos para Gary Cohn, que só aceitou ser chefe do Conselho Econômico Nacional da Casa Branca. Com dificuldade, ele operou para racionalizar o governo do republicano, retirando-o do irrealismo econômico gestado pelo populismo do presidente. Trump nem sabe falar a palavra populismo. Diz “popularismo”.
Americanismo versus globalismo

A respeito das relações comerciais dos Estados Unidos com outras nações, como a China, Trump era de uma ignorância espantosa. Ele dizia que o “excesso” de mercadorias da China e do México estava “roubando” empregos dos americanos. Defendeu o “americanismo” e atacou o “globalismo”.
Como não entendia bem a questão do comercial internacional, Trump convocou, para auxiliá-lo, um inimigo do livre mercado, Peter Navarro, PhD em economia por Harvard.
Porém, Peter Navarro encontrou em Gary Cohn, um realista qualificado, um adversário. Na síntese de Woodward, “Gary Cohn estava convencido de que déficits comerciais eram irrelevantes e podiam ser uma coisa boa, permitindo que os americanos comprassem mercadorias mais baratas. Mercadorias de México, Canadá e China estavam inundando o país porque tinham preços competitivos. Os americanos que gastavam menos com esses bens importados tinham mais para gastar em outros produtos, serviços e poupança. Era a eficiência dos mercados globais”.
O conflito entre o “digital” Gary Cohn e o “analógico” Peter Navarro descambou para a baixaria. O segundo chegou a chamar o primeiro de “idiota do establishment de Wall Street”.

Peter Navarro atacou duramente o Tratado Norte-Americano de Livre-Comércio. Para o diretor de política de comércio e indústria e do Conselho Nacional de Comércio, o Nafta favorecia o México e “levava os trabalhadores americanos à pobreza”.
Numa reunião, na qual Trump concordava com o palavrório de Peter Navarro, Gary Cohn perdeu a paciência: “Se vocês calassem a merda da boca e ouvissem, poderiam aprender alguma coisa”. “Merda”, “idiota”, “foda-se” são palavras do vocabulário trumpista.
Gary Cohn entregou a Trump um estudo sobre “economia de serviços”. Mas “sabia que o presidente não o lera e provavelmente nunca leria”.
Então, dura e secamente, Gary Cohn, subordinado ao presidente, sugeriu que Trump tinha uma visão limitada e provinciana das economias americana e global.
“A economia dos Estados Unidos não é mais a mesma. Hoje, ‘mais de 80% de nosso produto interno bruto está no setor de serviços’”.

Muitos negócios desapareceram, sem deixar vestígios. Mas os serviços permanecem vigorosos. Outras atividades foram substituídas: “Starbucks [por sinal, em crise, em 2024], uma manicure e o J. P. Morgan. São todos serviços”.
Gary Cohn levou Trump a admitir que seus principais inquilinos na Trump Tower são empresas de serviços. Então, seu auxiliar insistiu: “Seu espaço de varejo hoje é para serviços. Não são pessoas vendendo sapatos, móveis, equipamentos ou eletrodomésticos. Essa é a América de hoje. Se somos mais de 80% [são 84%] serviços, se gastamos cada vez menos em mercadorias, temos mais renda disponível para gastar ou para fazer uma coisa milagrosa chamada poupança”. Então, o déficit comercial, longe de ser um problema, era positivo para os Estados Unidos, concluiu Gary Cohn, ante um Trump atônito.
Trump disse que, na Pensilvânia, as cidades estavam “desoladas”, por causa da crise do aço. “Ninguém tem emprego lá.” Gary Cohn fez novo reparo: “Cem anos atrás havia cidades que fabricavam carruagens. Todo mundo acabou sem emprego. Elas tiveram de se reinventar. Em Estados como o Colorado, a taxa de desemprego é de 2,6, porque eles vivem se reinventando”. O presidente não aprovou a fala do auxiliar, mas não apresentou argumentos contrários convincentes. O republicano, infenso aos conceitos, é um mestre dos preconceitos (e de seu uso).
O economista de Harvard Lawrence B. Lindsey perguntou a Trump: “Por que o sr. está perdendo tempo pensando em nosso déficit comercial? Devia estar considerando a economia como um todo. Se podemos comprar produtos baratos no exterior e ter um desempenho de excelência em outras áreas, como serviços e produtos altamente tecnológicos, o foco deveria ser este. O mercado global trouxe imensos benefícios aos americanos”.
Dizendo que os Estados Unidos são um país industrial, Trump ressaltou que era preciso fabricar “coisas em casa”. Na verdade, o país ainda é uma grande meca da indústria. Portanto, se fabrica muita coisa em casa.
Woodward assinala, corroborando as análises de Gary Cohn e de Lawrence B. Lindsey, que Trump “se agarrava a uma versão desatualizada dos Estados Unidos — locomotivas, fábricas com imensas chaminés fumegantes, operários atarefados em linhas de montagem”. O auxiliar disse que estudos mostravam que “os trabalhadores americanos não tinham como aspiração trabalhar em fábricas de montagem”.
Certa feita, Gary Cohn levou dados para Trump: “Veja, o maior abandono de empregos — pessoas deixam o trabalho voluntariamente — foi na indústria”. O presidente disse: “Não consigo entender”. Como será que o ex-presidente percebe a incontornável inteligência artificial, que já “devora” velhos empregos?
Mesmo ante um Trump desatualizado, Gary Cohn insistiu: “Posso escolher entre ficar sentado num belo escritório com ar-condicionado e uma escrivaninha ou ficar em pé oito horas por dia. O que o sr. faria pela mesma remuneração?”
Como Trump não aceitava a modernização da economia, com a consequente mudança do perfil do trabalho e do trabalhador — parecendo um cartista do século 19 —, Gary Cohn inquiriu: “Por que o sr. pensa assim?” O presidente respondeu: “Simplesmente penso. Penso assim há 30 anos”. O auxiliar replicou: “Não quer dizer que esteja certo”. Ah, Gary Cohn acabou deixando o cargo por discordar de decisões do republicano no campo comercial.
Há vários outros casos em que Trump mostra-se em profunda desconexão com a realidade, com o novo capitalismo (que sempre se reinventa para não sucumbir), agora agudizado pela inteligência artificial e pelas big techs. Mas fica-se com a impressão de que a história dos Estados Unidos — “a América”, na linguagem de Trump — para os americanos é um discurso que, do ponto de vista eleitoral, ainda pega. Os deserdados da “sorte” — aqueles que o capitalismo deixa para trás, não se preocupam em incorporá-los — acreditam no linguajar, às vezes irrealista, de Trump. Nos seus “milagres”, por assim dizer.
Mas é importante ressaltar que, como os Estados Unidos são uma democracia plena e com executivos de primeira linha — tanto em termos de economia quanto militares —, Trump pode ser controlado. Se for eleito, ficará no poder por quatro anos e, depois, jamais poderá ser presidente do país de novo. (Seria interessante saber quais serão os novos auxiliares de Trump, se o republicano for eleito para um segundo mandato, para as áreas de economia e militar. Desta vez, poderão contê-lo?)
A democracia é assim: é preciso tolerar o que é ruim no poder, desde que seja escolha do povo e, claro, que não se tente impor ideias autoritárias e, até, fascistas. Os Estados Unidos estão “preparados” para Trump, mas o republicano está “preparado” para governar os Estados Unidos num ambiente cada vez mais complexo e complicado — com a China batendo à porta pela hegemonia mundial e a Rússia, com armas nucleares, pondo as manguinhas de fora? A burocracia competente pode “absorvê-lo”, enquadrando-o? Não se sabe. Há o consolo de que Trump é, em termos políticos e de vida mesmo, finito.
Bob Woodward é autor de outro livro sobre Trump: “Raiva” (Todavia, 416 páginas, tradução de Bernardo Ajzenberg, José Geraldo Couto, Pedro Maia e Rosiane Correia de Freitas).
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