Ex-governador de Goiás deixou diário relatando sonhos homoeróticos
25 abril 2021 às 00h00
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O general Couto de Magalhães construiu ferrovia, foi sócio do Barão de Mauá e banqueiro. Governou 4 províncias e anotou sonhos homossexuais na língua nheengatu
Pense em Theodore Roosevelt e no marechal Cândido Rondon. Pense no filme “Fitzcarraldo”, do diretor alemão Werner Herzog. Pensou? Pois bem: o general mineiro José Vieira Couto de Magalhães, mais conhecido como Couto de Magalhães (1837-1898), é uma figura histórica extraordinária mas ainda pouco conhecida¹. Se fosse norte-americano, como Theodore Roosevelt, já teria merecido dezenas de biografias, estudos, documentários e filmes. Como é brasileiro, e militar — há certo preconceito no país contra militares, sobretudo depois da ditadura civil-militar de 1964-1985 —, há poucas obras a seu respeito. Estudou no célebre Colégio do Caraça, em Minas Gerais. Foi presidente — governador — das províncias (Estados) de Goiás (de 1862 a 1864, com pouco mais de 20 anos), Pará, Mato Grosso e São Paulo, no século 19. Fitzcarraldo dos trópicos, colocou um navio (desmontado, foi “transportado em carros de boi por 100 léguas de sertões inóspitos”) para navegar no Rio Araguaia. Teve ferrovia, abriu empresa e fundou um banco. Morou em Londres. Era poliglota. Foi pioneiro em muitas coisas. Viveu 60 anos.
Formado pela Faculdade de Direito de São Paulo, em 1859, Couto de Magalhães era um self-made man. Foi escritor, militar, político, gestor, aventureiro e sertanista. Seu romance histórico “Os Guaianás”, de 1860, é um relato sobre a fundação de São Paulo. Dois anos depois, publicou um estudo sobre a revolta de Filipe dos Santos. Em 1863, lançou o aclamado livro de memórias “Viagem ao Araguaia”.
“O Selvagem”, escrito a pedido do imperador Pedro II, é apontado pela historiadora Maria Helena P. T. Machado, da Universidade de São Paulo, como “sua obra mais famosa”. “Enfatizando o estudo da língua como estratégia fundamental para atração pacífica das populações selvagens, Couto apresenta neste livro um curso de língua geral tupi-nheengatu², bem como a tradução de lendas tupis compiladas no decorrer de suas viagens e expedições junto aos índios e mestiços recrutados que as compunham. (…) ‘O Selvagem’ é inquestionavelmente simpático à população indígena e mestiça”, escreve a pesquisadora na introdução ao “Diário Íntimo” (Companhia das Letras, 242 páginas) de Couto de Magalhães.
Couto de Magalhães, por ter forçado a retirada das tropas do paraguaio Solano López do Mato Grosso, é apontado como “herói da Guerra do Paraguai”. Sua ligação política era com Afonso Celso Assis de Figueiredo, o visconde de Ouro Preto.
Maria Helena Machado assinala que Couto de Magalhães se distinguia “pela defesa quase obsessiva da implementação dos meios de transporte e dos estudos indigenistas, no quais se sobressaiu como divulgador do nheengatu, tupi falado no século 19, em especial na Amazônia”. Márcio Couto Henrique, em “Um Toque de Voyeurismo — O Diário Íntimo de Couto de Magalhães: 1880-1887” (Eduerj, 349 páginas), tese de doutorado transformada em livro, assinala: “Homem rico, é considerado iniciador dos estudos folclóricos”.
A luta em defesa dos indígenas sugere uma personalidade romântica. Na verdade, Couto de Magalhães era um empresário e banqueiro capitalista. Altamente pragmático, era desses empreendedores que põem um pé no sonho para alcançar a realidade com o outro pé o mais rápido possível. Atuou como “empresário das vias de comunicação, tanto da navegação a vapor como do transporte ferroviário”. “Tendo fundado a Empresa de Navegação a Vapor do Rio Araguaia em 1868, obteve, em 1875, a concessão, em sociedade com o visconde de Mauá, talvez valendo-se da massa falida deste, da construção da estrada de ferro sul-mineira, ligando Cruzeiro, em São Paulo, à cidade de Três Corações, a Minas and Rio Railway Ltd., vulgarmente conhecida como Estrada de Ferro do Rio Verde. Nessa operação, concretizada entre 1880 e 1881, em Londres, Couto, associado a empresários e banqueiros ingleses — os Waring Brothers —, e numa negociação eivada de dúvidas e conflitos, articulou uma jogada financeira em que foram emitidas, a descoberto, isto é, sem nenhum lastro ou garantia, as ações da companhia ferroviária que se pretendia criar, diretamente ao público. Tendo sido tal estratégia bem-sucedida, a companhia se constituiu cm base no capital acionário de 1 milhão de libras, ao mesmo tempo que o governo brasileiro garantia dividendos de 7%”, relata Maria Helena Machado.
A operação com os ingleses multiplicou o patrimônio de Couto de Magalhães — que já era rico.
Nheengatu e tom intimista
Ao mesmo tempo que ganhava dinheiro, mostrando-se um empresário atilado, dono de ações e capital polpudo, Couto de Magalhães era interessado em ciências e era uma espécie de sertanista. Era considerado até excêntrico. Ele e dom Pedro II eram interessados em “estudos tupinológicos”. “Era crítico ferrenho dos estrangeirismos, lembrando em todas as oportunidades as origens americanas ou indígenas dos hábitos, costumes e nomes correntes que a moda e o bom-tom consideravam de mau gosto. Em seu ‘Curso da língua geral pelo método de Ollendorf’, não se furtou a saudar o imperador e introduzir o assunto apenas em nheengatu. Ainda em 1897, em conferência apresentada na comemoração do Tricentenário de Anchieta, inicia seu texto dizendo: ‘Tupã amogaraiba, yawé ara catú omehê peeme’ — ‘Deus vos abençoe e vos dê também tempos felizes’”, registra Maria Helena Machado.
O “Diário Íntimo” de Couto de Magalhães foi descoberto no Arquivo do Estado de São Paulo por Maria Helena Machado. O fac-símile do “Diário do General Couto de Magalhaes” havia aparecido, em 1974, na Coleção Revista de Histórias. Os relatos davam conta dos anos de 1887-1890. Mas a família havia censurado o diário, e suas passagens mais comprometedoras foram expurgadas. Minucioso, o general-político anotava quase tudo, como doenças, atividades sexuais e a contabilidade de seus negócios. Dava a impressão de que queria “capturar” o essencial do mundo, mas sem perder contato com as miudezas da vida.
O diário publicado pela Companhia das Letras cobre um período curto da vida de Couto de Magalhães. Tem a ver com o tempo em que morou em Londres. Biógrafos deste homem múltiplo apontam que era autor “compulsivo de diários”. “Todos redigidos em tom decididamente intimista, o que justificaria tanto o expurgo sofrido pelo diário já publicado quanto a não-divulgação dos restantes”, afirma Maria Helena Machado. “Ora, é justo o tom decididamente intimista e espontâneo do diário que o torna valioso.”
A scholar Maria Helena Machado nota uma contradição na vida de Couto de Magalhães. Era um capitalista voraz, típico representante do mercado financeiro. Mas, parecido com o norte-americano Henry Thoreau, tinha também uma “visão idílica e sensual da vida livre dos sertões e dos selvagens e mestiços que os povoavam”. O que o torna uma figura ainda mais rica e emblemática.
Couto de Magalhães era preocupado com cuidados médicos e dietéticos. Examinava-se como se fosse uma espécie de cobaia. Observava tudo, e de maneira detalhada, o que acontecia com seu corpo e tomava medicamentos que avaliava como adequados. Lia livros de medicina de maneira compulsiva e talvez seja possível sugerir que fosse um médico prático. “Couto fala de dispepsia, flegmasia e broncorreia, autoprescrevendo-se medicamentos como alcalinos, Epsom salt ou nux vômica, que constam” dos tratados médicos de Armand Trousseau e Maximilien Paul Émile Littré. Ele era leitor também do médico Hipócrates e do poeta latino Horácio.
Num registro de 30 de agosto de 1880, Couto de Magalhães anota, depois de uma noite ruim: “Estava cheia de terrores vagos, e entre outros de que eu podia ser acometido de epilepsia e cometer algum crime! De manhã estava ainda apreensivo e cismático; às doze a densidade da urina subiu a zero; no entretanto, eu fiz um estudo detalhado da moléstia e cheguei à conclusão [de] que nem tinha nem era provável tê-la. Tudo desapareceu como por encanto; o receio foi-se; a sensação esquisita do braço esquerdo desapareceu; voltou a saúde e a tranquilidade; fui ao Regents, remei; dormi tranquilo”.
Maria Helena Machado sublinha que, “continuamente aterrorizado com seu estado de saúde e com o descontrole mórbido de seus órgãos e funções vitais, Couto dedicava-se, com afinco, a encontrar a chave do bem-estar mediante uma análise sistemática do corpo e de suas reações”. Mas ele era realmente “doente”? A historiadora diz que, objetivamente, não. Subjetivamente, sim. Ele admita um problema: “nervosismo”. Tinha a ver com sua sexualidade — mais complexa do que problemática? Aparentemente, sim.
Os sonhos homossexuais
Homem do século 19, integrante de duas elites, a do dinheiro e a da cultura, o político e general tratou sua sexualidade de maneira íntima e espontânea³. Pesquisadora conscienciosa, Maria Helena Machado afirma que é preciso tratar o relato de Couto de Magalhães com “uma aproximação cuidadosa e empática, avessa a sensacionalismos e julgamentos moralistas, que destruiriam a riqueza do diário”. Apropriadamente, a pesquisadora menciona que o texto do brasileiro se assemelha às anotações do diplomata irlandês Roger Casement (1864-1916), que, há pouco tempo, teve sua história registrada no romance “O Sonho do Celta”, do escritor peruano Mario Vargas Llosa.
Atuando como diplomata da Inglaterra, Roger Casement denunciou a selvageria dos belgas no Congo e as condições de trabalho terríveis dos trabalhadores que extraíam látex na Amazônia peruana. Deve ser considerado como um dos pioneiros dos direitos humanos. Deixou diários íntimos, com relatos sobre sua atração sexual por homens. Isto o diminui? Em nada. Pelo contrário, o torna mais rico como ser humano.
Quando se trata de relatos sobre sua sexualidade, Couto de Magalhães prefere escrever não em português ou inglês (idioma que dominava bem). O diário atribui centralidade à questão da sexualidade. O autor mescla passagens em tupi-nheengatu com a utilização de códigos pessoais.
“O uso de uma língua estrangeira e hermética”, frisa Maria Helena Machado, “no caso o tupi-nheengatu, surge aí como recurso distanciador e mediador dos materiais reprimidos, que dessa maneira afloram de forma elíptica, permitindo o registro daquilo que estava obviamente proibido de ser expresso na linguagem corrente dos princípios morais e religiosos. No entanto, destaque-se que a pulsão sexual, seus prazeres e desconfortos se encontram presentes no relato: a uma homossexualidade que se manifesta em sonhos, rememorações e fantasias, acresce-se uma preocupação frequente com os órgãos sexuais e seu funcionamento e a presença concreta, embora notavelmente opaca em termos afetivos, de Lily Grey, amante constante de Couto com quem ele vivia uma experiência de intimidade sexual”.
Nas fantasias, Couto de Magalhães menciona indígenas, negros, cafuzos, tapanhunos como “seres sensuais”. No entender de Maria Helena Machado, “o que se inscreve aí é a sensualidade do narrador e suas fantasias, aprisionando numa teia de passividade e despersonalização de corpos que não chegam a constituir seres. Em outras palavras, seria essa narrativa sensual, ao mesmo tempo, um discurso de poder, capaz de transformar o outro na matéria flexível com que as fantasias do autor podem ser preenchidas”.
Maria Helena Machado nota que Couto de Magalhães percebe “a autonomia dos sonhos” e “sua misteriosa capacidade de condicionar as ações despertas”.
“É interessante observar a maneira como o autor do diário intuiu existência de impulsos e estímulos fora do alcance do consciente e os persegue, registrando minuciosamente seus sonhos”, pontua Maria Helena Machado. Couto de Magalhães escreveu sobre seus sonhos bem antes do surgimento da psicanálise e da publicação do livro “A Interpretação dos Sonhos” (de 1900), do psicanalista austríaco Sigmund Freud (1856-1939). “Couto parece sensível ao fato de os sonhos serem importantes para a compreensão da vida mental e dos estados emocionais dos indivíduos.”
A complexidade da vida íntima de Couto de Magalhães — que tinha relacionamento com mulheres e sonhava com homens —, e seu registro detalhado, ainda que codificado, tornam seu diário “ainda mais valioso”, sugere Maria Helena Machado. “O que mais surpreende na interpretação que Couto de Magalhães faz dos próprios sonhos é exatamente a ausência de julgamentos morais”, enfatiza Márcio Couto Henrique, no seu belíssimo livro.
“Além de consistir em um documento original no panorama da historiografia brasileira, as anotações de Couto de Magalhães expressam um emaranhado íntimo de sentimentos, pulsões e pensamentos que refletem, de maneira bastante arguta, alguns dos desafios com os quais se defrontaram as elites do Império brasileiro em face do advento da modernidade, com seu corolário de inquietações e angústias, até agora considerados exclusivos das classes médias dos países centrais. Claro está que tais questões — descoberta da sexualidade, individualidade, libertação feminina, homossexualidade — colocavam-se ao lado de muitas outras, relativas ao âmbito das decisões políticas e econômicas contra as quais as elites brasileiras se debateram, e devem ser analisadas nos quadros de um universo mental mediatizado pelas experiências do colonialismo, da escravidão e da presença das populações não brancas, idilicamente concebidas como selvagens ou mais realisticamente encaradas como inferiores e fadadas ao desaparecimento, senão genético ao menos cultural”, disserta Maria Helena Machado.
No diário, postula Márcio Couto Henrique, Couto de Magalhães faz uma “peregrinação ao mundo interior”. Os escritos desvendam “o processo de constituição de uma individualidade adequada à modernidade do fin de siècle e seus desafios”. Ele “exemplifica, acima de tudo, a tensão das elites brasileiras que, com base na vivência da realidade colonial, tinham que enfrentar as pressões de um mundo em rápida transformação”, disseca Maria Helena Machado
Couto de Magalhães não se casou, mas teve filhos — o que, claro, prova seu relacionamento com mulheres. Não há registros de que tenha se relacionado sexualmente com algum homem. Mas os sonhos revelam “desejo” explícito de ter contato físico com homens. Um prazer a partir de, supostamente, fantasias.
O antropólogo Luiz Mott, professor da Universidade Federal da Bahia, assinala: “Se não praticou o ‘amor dos bugres’, não resta dúvida que foi um homossexual latente, um gay enrustido ou, popularmente, bicha mal resolvida”. O mais provável é que fosse “bissexual” — um homem com interesse sexual variado, com desejo sexual por mulheres, o que era “aceito”, e por homens, o que não era aceito (na Inglaterra, o escritor Oscar Wilde foi condenado e preso por ter relações com um jovem). Há uma tendência a “exigir” que o indivíduo seja homossexual ou heterossexual, como se a sexualidade fosse um catálogo de ideias e práticas fixas — quando é mais variada do que imagina a vã filosofia dos normativos. Márcio Couto Henrique pondera que os sonhos e o fato de ter se mantido solteirão não permitem “concluir por sua homossexualidade”. “O fato de um homem ter sonhos homoeróticos e registrá-los num diário pessoal não faz um homossexual.” O doutor em história sugere que é preciso “inserir a dúvida no enunciado íntimo”.
Contra o possível excesso da exposição de Luiz Mott — quiçá uma busca de “novos” companheiros de jornada —, Jorge Hurley relata que Couto de Magalhães se sentia atraído pelas mulheres paraenses e escreveu poemas inspirados por elas. Leia trecho de um deles: “Na sombra do assahi,/Dos ingazeiros em flor/Tapuynha me esperava/Tapuynha meu amor!/Adeus Carolina, Carola,/Teu olhar é uma esmola!”
Helena de Queiroz Ferreira Lopes e Vera Lúcia Vilhena Toledo sustentam que a designação de “Morro da Viúva”, no Itaim Bibi, em São Paulo, se deve à viúva Gabriela, amante do general Couto de Magalhaes. “Solteirão convicto, reconheceu em seu testamento a paternidade de três filhos naturais”, aponta Márcio Couto Henrique. Não criou José (que teria sido intelectual, como o pai), Pedro e João. Quando descobriu que Lucas não era seu filho, havia sido enganado, não abandonou o menino. Helena Lopes e Vera Toledo informam que o general teve um filho mameluco com uma índia do Pará. “Trouxe o menino para São Paulo e o registrou com nome de José Couto de Magalhães”, relatam as pesquisadoras.
Sobre o relacionamento com uma mulher, no Pará, província (Estado) da qual era presidente (governador), Couto de Magalhães anotou que ela não lhe deixou “saudades”. Entre suas amantes estavam Maria dos Anjos e a inglesa Lily Gray.
Numa passagem do diário, feita em Londres, em 1880, Couto de Magalhães relata: “Tenho ultimamente discutido comigo mesmo se há ou não vantagem em ter a companhia de uma mulher. Há dois anos que eu conservo tal companhia e realmente não tenho juízo formado. No Araguaia eu tinha essa companhia, e uma vez só me não vieram saudades disso. A que tive no Pará igualmente não me deixa saudades; a que tive em Londres a mesma coisa. Para o meu gênio independente e pontual é um pesadelo, escravidão disfarçada em que me tira grande parte de meu tempo e que me dá uma compensação pouco satisfatória”.
Márcio Couto Henrique avalia que a insatisfação de Couto Magalhães com as mulheres não é prova de sua homossexualidade. “Trata-se de uma insatisfação comum a muitos outros homens de sua época e que não tem a ver apenas com um descontentamento com a figura feminina, mas sim com um modelo de casamento que se pensava limitar a plena satisfação dos indivíduos. Ao agir assim, esses homens rebelavam-se contra o ideal burguês.”
O antropólogo inglês Peter Fry afirma que “Bom Crioulo”, de Adolfo Caminha, “é candidato ao título de primeiro romance ‘gay’ na literatura brasileira”. “O diário do general Couto de Magalhães é o primeiro diário íntimo em que um homem brasileiro revela sensibilidade ao tema do homossexualismo, conforme podemos verificar no registro de seus sonhos eróticos”, afirma Márcio Couto Henrique.
Alguns sonhos homoafetivos
Os sonhos descritos por Couto de Magalhães apontam uma “homossexualidade latente”, admite o cauteloso Márcio Couto Henrique. Luiz Mott nota o “relato de uma dezena de sonhos com forte presença do falo”. O general “registrava as partes mais ‘picantes’ dos sonhos em nheengatu”. “Para evitar riscos. (…) De fato, o universo onírico do general era quase exclusivamente povoado por figuras masculinas. Brancos, negros, caboclos, índios, tapuios. Alguns eram figuras ilustres da época, como Homem de Mello e Joaquim Nabuco. Mas também aparecia gente simples como Chiquinho Caiapó do Araguaia, o crioulo Brás, o tapuio Dionísio e o escravo Aarão.”
“Chama a atenção a forma livre e completamente subjetiva com que Couto de Magalhães registrava seus sonhos, confrontando a si mesmo com a moral de sua época”, anota Márcio Couto Henrique. Registro do sonho com Capitolino, que o general conheceu em 1887: “No sonho oikó***pupé sak. San. Ipuxuna sakanga pupé apohu ramé sak. Iche ce rori catu. Arame iche onhahen ixupe: chaput. Chan. ndo x.pu — Ahe osuachará? Icatú; antes, porém, vamos fumar. Procurando o fumo e papel para os cigarros acordei” (os asteriscos são a forma que Maria Helena Machado encontrou para substituir os códigos de Couto de Magalhães).
“Em português, os trechos em nheengatu correspondem a ‘ele pegava *** dentro o galho preto e endurecido enquanto eu também pegava seu galho dentro e estava muito alegre. Então falei para ele: quero que amarres minha mão. — [Ao que] ele respondeu: está bem”, anota Márcio Couto Henrique. “A palavra sakanga ou rakanga significa galho em nheengatu, mas ele a utilizava no sentido metafórico de pênis.”
Num sonho com Leonardo, Couto de Magalhães diz que sente “grande alegria” ao encontrá-lo. Em nheengatu, o general escreve: “Eu quero fazer sexo com ele, e ele comigo”. Márcio Couto Henrique sugere que “nenhum sonho é definido por ele como desonesto, imoral ou licencioso. (…) Nenhum esforço é feito no sentido de combater suas paixões e resistir-lhes, seja dormindo, seja acordado. De fato, Couto de Magalhães parecia mesmo sonhar com os próprios prazeres. O registro cuidadoso de seus sonhos eróticos ou a construção de uma narrativa onírica erótica parecem indicar um processo de repetição, prolongamento e estímulo dos prazeres vividos e/ou sonhados. Depois de registrar uma sequência de sonhos eróticos homossexuais, o general fez a seguinte observação: ‘As sensações de todos esses sonhos foram todas tão reais como se as cenas pelas quais eu passei neles fossem reais’”.
“Sonhar é trabalhar com o cérebro quando o cérebro deveria estar repousando”, escreve Couto de Magalhães. “O ‘Diário Íntimo’ do general nos mostra outra via de acesso ao prazer excluído do casamento: os sonhos”, acredita Márcio Couto Henrique.
Couto de Magalhães também sonhava com mulheres. Num dos sonhos, diz que passou “a mão no seio da mulher”. Trecho em nheengatu: “Eu sonhei que estava fazendo sexo com uma mulher preta”. Depois anota: “Eu estava bem escondido fazendo sexo! [É] Muito gosto***. Enquanto eu tirava de seu caroço [vulva]***, ela ficava como um animal”.
Num registro, Couto de Magalhães conta ter sonhado com Timóteo, um homem de Goiás. Teria sido “ativo” no relacionamento onírico. O registro, em nheengatu, é: “Eu quero muito fazer com ele, meu galho preto endurecido quer estar escondido no ânus p.”
Noutra passagem do diário, em nheengatu, Couto de Magalhães anota: “Eu quero fazer sexo com um mestiço, com um preto; eu falo que o membro viril do preto foi tirado de dentro”.
Num sonho com Herman da Silva, um conhecido de Londres, Couto de Magalhães anota em nheengatu: “Depois estávamos numa casa; dava com meu galho*** em sua barriga; depois […] para fazer sexo em sua perna. Dei a cabeça de meu galho preto, [ele] chupa bem […] não acabei”.
Noutro sonho, com um “negro árabe”, Couto de Magalhães registra, em nheengatu: […] Ele está na água enlouquecido*** e chupa bem, vê-me dar o galho duro, grande, preto […] Ele está comigo […] Ele *** está”.
“Em momento algum ele se confessa envergonhado ao registrar essa conduta em seus sonhos eróticos, embora, em ambos os registros de felação em seus sonhos, apareça na condição de quem recebe o sexo oral. Nesse sentido, Couto de Magalhães, ao afirmar o prazer como um único fim diante de qualquer outro valor, encaixava-se na definição de libertinagem”, postula Márcio Couto Henrique.
O “Diário Íntimo” é “um exercício de liberdade”, afiança, com razão, Márcio Couto Henrique.
Os trechos do diário em tupi-nheengatu foram traduzidos para o português pelo professor Auxiliomar da Silva Ugarte, que contou com o apoio do pai, Hermes Ugarte, “que tem o nheengatu como língua nativa”. Em Goiânia, na Universidade Federal de Goiás, há uma professora que conhece a língua. Trata-se de Aline da Cruz (leia o comentário da mestre abaixo).
Couto de Magalhães morreu em 1898, “em consequência das complicações da sífilis. Morreu justamente na cidade que ele definiu como ‘inviável’ para passar o resto de sua vida”. Monarquista liberal, era favorável à causa abolicionista.
O Estado do Tocantins homenageia o notável empreendedor com o nome de uma cidade, Couto Magalhães, que conta com 5 009 habitantes.
Notas
¹ O médico e pesquisador Hélio Moreira é autor de uma biografia romanceada: “Couto de Magalhães — O Último Desbravador do Império” (Kelps, 267 páginas). O pesquisador e ficcionista comenta sobre homossexualidade (página 178) e sobre o navio que o empreendedor pôs para navegar no Rio Araguaia (páginas 215 e 216). O encontro com o escritor Bernardo Guimarães está registrado nas páginas 107, 108, 109, 110 (e mais algumas).
² No Império, usava-se “presidente” e “província”. Só na República, e mais tarde, passou-se a usar “governador” e “Estado”.
³ Márcio Couto Henrique registra, na página 15 do livro “Um Toque de Voyeurismo — O Diário Íntimo de Couto de Magalhães: 1880-1887”: “A língua geral amazônica, conhecida a partir do terceiro quartel do século 19 como nheengatu (do tupi ie’engatu — língua boa), desenvolveu-se inicialmente no Maranhão e no Pará, com origem na língua do povo tupinambá, que habitava todo o litoral maranhense no século 17. Essa língua foi utilizada na Amazônia até o início do século 20”. (Leia mais abaixo.)
4 Há outro livro que examina os escritos íntimos: “Um Herói nas Entrelinhas: O Diário Íntimo de José Vieira Couto de Magalhães — 1880-1887” (Paco e Littera, 198 páginas), de Patrícia Simone de Araújo, doutora em História pela Universidade Federal de Goiás.
Milhares falam em Nheengatu no Brasil e na Venezuela
A professora Aline da Cruz, da Universidade Federal de Goiás (UFG), escreveu no Facebook (e autorizou a publicação no Jornal Opção):
“Que bela reportagem do Jornal Opção sobre os sonhos homoeróticos do general Couto de Magalhães, que, a despeito do título, não era militar de carreira, mas advogado e político, como explica o historiador Bessa Freire (UFRJ), grande especialista na história social do Nheengatu.
“Chama muita atenção e causa mesmo indignação a nota ao final da reportagem, retirada do livro do historiador Marcio Couto Henrique (UFPA), que diz que o Nheengatu ‘foi utilizada na Amazônia até o início do século XX’.
“O Nheengatu é falado por falantes monolíngues em toda extensão do Rio Xié; como primeira língua de dezenas de comunidades no Baixo Rio Içana, e Alto Rio Negro, com falantes inclusive na Venezuela. Em menor número, há falantes também no Médio e Baixo Rio Negro, Médio Rio Amazonas, no Tapajós.
“Infelizmente, não há dados precisos sobre o número de falantes. Em 2011, após percorrer os rios Xié, parte do Içana até Assunção, e parte do Alto Rio Negro, e dar aula para 74 falantes da língua, estimei em 6.000 falantes em São Gabriel, com base nas conversas com alunos, nas visitas a comunidades e em dados do DSEI. A mesma estimativa dada pela Unesco. Mas esse número não leva em consideração os falantes de tantos outros municípios.”