Marcos Antonio Ribeiro Moraes

Especial para o Jornal Opção

Tenho sido interpelado com muita frequência, por amigos e conhecidos, em busca de entendimento sobre o que pode explicar, do ponto de vista da psicanálise, o comportamento “bizarro” ou absurdo, dos seguidores do bolsonarismo. Seria uma espécie de surto psicótico, estado de torpor, ou irracionalidade? E eu tenho respondido que se trata, como denominamos em psicanálise, de um estado transferencial. Ou seja, de apaixonamento. Sim, o conceito de transferência, nas formulações da teoria psicanalítica, é apresentado como uma força poderosíssima, operando a favor ou contra o desenrolar de uma análise. Mas Freud, em seu texto de 1912, sobre a dinâmica da transferência, nos diz que, “não é correto afirmar que a transferência aparece mais intensamente e de forma mais desmedida durante a psicanálise do que fora dela”. Na sequência desse ensinamento, ele nos possibilita compreender que, em diferentes instituições, sobretudo onde não se pratica a psicanálise, é possível observarmos relações transferenciais em maiores intensidades, vivenciadas muitas vezes de forma indigna, comparando-as a relações de servidão, onde se verifica o viés indubitavelmente erótico do vínculo transferencial nos diferentes laços sociais. Por fim conclui que a transferência não deve ser atribuída à conta da psicanálise, mas à própria natureza da neurose. A esse respeito, em Psicologia das Massa e análise do eu, já havia sido compreendido que o sujeito, diante das exigências sublimatórias de renúncia do seu ideal de ego, em prol dos processos civilizatórios, prefere projetar um tal ideal, na figura simbólica de uma autoridade, como um pai, “O líder do grupo ainda é o temido pai primevo; o grupo ainda deseja ser governado pela força irrestrita e possui uma paixão extrema pela autoridade”. E Freud segue dizendo que esse modelo de vinculação é de natureza erótica. Que tais vínculos, são também de natureza ambígua, podendo viabilizar processos de sustentação ou aniquilamento do sujeito, quando preso à cega e hipnótica sujeição. Tudo dependerá do campo discursivo em que se passa cada modalidade de vinculação. Sobre esse caráter ambíguo dos vínculos transferenciais, nosso autor também diz, “Do estado de estar amando à hipnose vai, evidentemente, apenas um curto passo. Os aspectos em que os dois concordam são evidentes. Existe a mesma sujeição humilde, que há para com o objeto amado. Há o mesmo debilitamento da iniciativa própria do sujeito”.

Evidencia-se aqui esse caráter ambíguo das forças transferenciais, uma vez que podem se constituir como aliadas do acesso ao saber, por parte do sujeito. Saber sobre o desejo que o sustenta ou que se repete, em seus diferentes vínculos e endereçamento ao Outro. Mas essas forças podem também estar a serviço da inibição do sujeito, relegado ao estado de indiferenciação e massificação, conciliado aos poderes e às forças destrutivas que promovem o fascismo e a barbárie. Posições essas, que nos fazem pensar no que Adorno e Marcuse, teóricos da Escola crítica de Frankfurt, nos ensinam, ao buscarem na psicanálise, entendimento sobre as causas da barbárie vivida nos campos de concentração nazistas. Adorno — refletindo sobre a referida barbárie, fruto do nazismo-totalitarismo, na Alemanha — denomina, por “consciência feliz”, conciliada à realidade e de forma acrítica, essa  postura de grande parte dos que aderiram ao fascismo, ao tomarem Hitler, como um mito. Segundo esse autor, o indivíduo submetido à alienação adere à barbárie tanto passivamente, sem refletir e sem questioná-la, na condição de vítima, quanto ativamente, assumindo o papel dos carrascos que obedecem às leis nazifascistas. Trata-se aqui de uma adesão cega ao coletivo, a figuras autoritárias, míticas e imaginárias, ou ao próprio fetiche da técnica. É a esse respeito que ele se questiona: “Não sabemos, de modo nenhum, com precisão, como o fetichismo da técnica se apodera da psicologia, onde está o limiar entre uma relação racional com a técnica e aquela supervalorização que leva, por fim, a quem inventa um sistema de transporte para conduzir sem tropeço e com a maior rapidez possível as vítimas a Auschwitz, a esquecer qual é a sorte que as aguarda ali”.

 A grande questão que norteia as indagações de Adorno resume-se no desejo de entender o que leva os indivíduos a aderirem, com tanta indiferença, a ideários irracionais que atentam contra a suas próprias vidas ou a de seu próximo. Talvez nesse sentido, possamos compreender, com espanto, como os bolsonaristas — muitos desses, pobres e desassistidos por políticas públicas — defendem a volta da ditadura militar, numa ausência total de reação, diante das graves perdas de direitos sociais que sofremos em nosso país nos últimos quatro anos. Sobretudo no que tange à reforma da previdência, reforma trabalhista, no campo da cultura, meio ambiente, desrespeito aos povos tradicionais, entre outras. Bem como a espantosa indiferença frente a morte de quase setecentas mil pessoas, vítimas da pandemia do coronavírus no Brasil. Se configurando como um verdadeiro genocídio, causado pela estupidez do modelo de gestão militarizada, defendido pelo movimento bolsonarista.

Daí o intrigante desafio, como compreender a relação entre o fetichismo da técnica, o fascínio pelo mito, no funcionamento psíquico desses sujeitos? O que os leva a viverem mergulhados na indiferença em relação a essa barbárie e a nossa atual realidade, com seus gritantes desafios socias? O que justifica tanta passividade diante da barbárie e, ao mesmo tempo, a participação dessas pessoas como algozes para executar as ordens nazistas? Uma das características marcantes da sociedade moderna, do pós-guerra, é a indiferença em relação à dor humana. Talvez esse seja um modo de recalque dessa cena de horror. Nesse ambiente de indiferença é mais evidente que o sujeito seja levado a compactuar com a barbárie, se alistando sob o comando do fascismo ou se calando passivamente. 

O fascismo é, de algum modo, uma ideologia fruto do capitalismo. Sabemos que o clima de indiferença e as condições postas pelo laço social, nessa ordem capitalista, se retroalimentam. Ficando o sujeito afogado em atividades que o mantem sob o controle da produção, em benefício da técnica, num vazio de sentido. As consequências de tudo isso se revertem num modo de vínculo, onde paradoxalmente se percebe o empobrecimento de Eros, ou seja, da capacidade de amar mais e odiar menos. No lugar do desejo de saber, se instala, aliada ao ódio, uma paixão pela ignorância. Chegando ao que Marcuse define como desempenho produtivo de Eros, ligado ao “poder sobre a natureza”. Para Marcuse a destrutividade sublimada, por meio dos imperativos da racionalidade técnica e da autoconservação, pela via das satisfações imediatas das pulsões, significa a dessublimação, que é um conceito caro para esse autor. Nessa ordem, subestima-se o poder agressivo e mortífero das forças pulsionais e de suas consequências anticivilizatórias. O sujeito movido por essas forças dessublimadas busca, inconscientemente, o seu objeto, de forma, rude, indiferenciada, agressivamente ou passivamente. Submisso aos mecanismos de agressão ou repressão. Assim, expressa-se a ambivalência dos vínculos pulsionais, num movimento de fascínio e horror, de alternância entre as forças de vida e morte. Marcuse e Adorno — com base nos referidos conceitos psicanalíticos —, ao reconhecerem a importância dos vínculos eróticos, do poder de fascínio que se encontra à base dos processo de adesão do sujeito à ideários que legitimam e promovem a barbárie, nos possibilitam afirmar que,  a postura fascista não se explica pela ausência de vínculos pulsionais. Mas ao contrário, pela evidência de vinculações dessublimadas, perversas, legalistas e autoritárias, à figura de um mito imaginário.

Marcos Antonio Ribeiro Moraes, psicanalista, é professor a PUC-Goiás e membro da APPOA. É colaborador do Jornal Opção.

Referências

FREUD. Psicologia de grupo e análise do ego. In: Obras Completas. Rio de Janeiro: Imago, 1996g. V.18.

_______. Sobre a dinâmica da transferência. In; Fundamentos da clínica psicanalítica. Belo Horizonte: autêntica , 2019.

HORKHEIMER, M. O; ADORNO, T. W. A indústria cultural: o esclarecimento como mistificação das massas. In: HORKHEIMER, M. O. Dialética do esclarecimento: fragmentos filosóficos. Rio de Janeiro: J. Zahar, 1985

MARCUSE, H. Eros e Civilização: uma interpretação filosófica do Pensamento de Freud. Rio de Janeiro: LTC, 1999.