A história da Igreja Católica é, no geral, positiva. Mas nem sempre foi assim. Mas, como o passado distante está relativamente esquecido, pouco se fala dos malfeitos dos cristãos católicos. A venda de indulgências — para garantir uma “vaga” no Céu, digamos — e a Inquisição ainda são discutidas, mas sem nenhuma ênfase.

A Igreja Católica de hoje deve ser julgada pelos equívocos do passado? Em parte, sim. Porque não se deve esquecer a história e é preciso assumi-la. Mas a secular instituição mudou, e para melhor. Sim, há a questão da pedofilia — uma mancha grave.

Mas, no momento, assiste-se o papa Francisco, argentino de Buenos Aires, trabalhando, não para mudar as bases da Igreja Católica, e sim para atualizá-la. Não se pode permanecer medieval em outros tempos. É preciso ter respostas para mulheres e homens dos tempos atuais.

Pintura de Tommy Ingberg

Diferentemente de alguns religiosos, o papa Francisco está preocupado com os acontecimentos de todo o mundo, por saber que os países estão, de alguma maneira, conectados e os indivíduos de todas as regiões merecem respeito e solidariedade. E está discutindo quaisquer temas, como meio ambiente (quer dizer, a sobrevivência das espécies) e a homossexualidade. Ou seja, há uma abertura para o que existe e, no fundo, é incontornável. Respeitar os homossexuais é um imperativo de qualquer sociedade.  

Sobretudo, o papa Francisco não é um fundamentalista religioso. Ele quer influenciar a sociedade, guiá-la para o bem. Mas não está procurando impor a doutrina católica… e não pensa numa teocracia da igreja da qual é o imperador.

A rigor, o papa Francisco é um líder religioso, dos mais admiráveis, e, ao mesmo tempo, político — daí suas palavras sobre as guerras na Ucrânia e na Faixa de Gaza. Nem sempre apresenta o argumento perfeito, mas a vida é assim mesmo. Às vezes o perfeito — o ideal — precisa ser trocado por aquilo que é possível.

Preconceito contra os evangélicos

Pintura de Igor Morski

As igrejas evangélicas estão assimiladas, em termos de respeitabilidade, como a Igreja Católica? Não. Há um preconceito, até um imenso preconceito, contra os evangélicos.

Aqui e ali, verifica-se reportagens e, principalmente, artigos com críticas ao meio evangélico, como se ele fosse uno, e não diverso. Os ritos podem ser parecidos, mas, na ação, nem sempre os evangélicos são iguais.

Há igrejas seriíssimas, como a Igreja Assembleia de Deus, a Videira, a Luz para os Povos (entre outras), assim como pastores, como Oídes José do Carmo (estou entre seus admiradores), de Goiânia, e José Clarimundo, absolutamente respeitáveis e admiráveis. Além do trabalho de evangelização em si, as igrejas agregam diversos tipos de componentes. Por vezes, agasalham muito daqueles que a sociedade deserda, deixando-os ao deus-dará, num desamparo infindo. O espírito de comunidade, de pertencimento, é forte, até mais forte do que na Igreja Católica, entre os evangélicos. Há, por assim dizer, uma irmandade.

Ao contrário do que Karl Marx sugeriu, a religião não é o ópio do povo. Religião, além do fenômeno religioso em si, com suas liturgias, é um fenômeno cultural — a ser estudado com mais seriedade e, quem sabe, empatia. As igrejas evangélicas dão conforto espiritual — necessário num mundo excessivamente materialista e, por vezes, pouco humanista e solidário — e funcionam, muitas vezes, como agências do social.

Pintura de Edward Hopper

Há estudos mostrando o vínculo de religiosos evangélicos com o crime organizado, não apenas no Rio de Janeiro, mas de maneira acentuada no Estado. Porém não se pode estender a denúncia a todos os evangélicos. Pelo contrário, trata-se de uma parcela minúscula, em geral sem sedimentação histórica na sociedade e no meio evangélico.

A chamada teologia da prosperidade — que deu certo na Alemanha de Goethe e Thomas Mann, de acordo com o célebre estudo “A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo”, do sociólogo alemão Max Weber — também é analisada com certo preconceito. Há exageros, é claro. Mas as igrejas evangélicas estão apenas conectadas à sociedade em que vivem seus fiéis. Ou seja, a sociedade capitalista, que incentiva a ascensão individual, o lucro e o enriquecimento. Frise-se que, por outro lado, elas também são distributivas.

O risco da sociedade teocrática

Entretanto, há um “problema” que ocorre até entre as melhores igrejas evangélicas. Assiste-se, no Brasil atual, uma tentativa de controle da política — portanto, das decisões do Estado — por parte substancial dos evangélicos.

A “operação” começou pelo Legislativo. Altamente organizadas, igrejas evangélicas (note-se que não se escreve “as” igrejas evangélicas) decidiram ampliar seu espaço na Câmara dos Deputados e no Senado. Porque, nas duas casas, são elaboradas e aprovadas as leis para toda a sociedade.

Pintura de Vladimir Kush

Organizados, operando como um exército poderoso, os evangélicos começam a determinar parte das ações do Legislativo. O objetivo é, mais do que apenas manietar a política em si, controlar a sociedade, fazendo-a adotar e seguir a ética evangélica.

Porém, se a sociedade não é toda evangélica — há os católicos (ainda a maioria), os espíritas, os membros de cultos e, até, os agnósticos —, o comportamento dela, ditado pelas leis, não tem de ser inteiramente evangélico. É preciso manter uma abertura crucial à diversidade, às forças divergentes, com suas éticas e preferências distintas.

O controle evangélico da política e da sociedade, se porventura acontecer — em alguns casos, está ocorrendo, como na questão do aborto (evangélicos não parecem preocupados nem mesmo com a saúde das mulheres) e na descriminação do uso de maconha —, se tornará autoritário.

Pintura de Wolfgang Lettl

A escalada autoritária, organizada em parte pelos evangélicos — com o apoio da extrema-direita política, da qual o ex-presidente Jair Bolsonaro é apenas a figura mais expressiva (mas há operadores muito articulados no Congresso, às vezes ignorados pela imprensa) —, precisa ser impedida. Porque pode ser tão nefasta para a democracia — para a escolhas e condutas livres dos cidadãos — quanto as tentativas golpistas dos bolsonaristas. A fusion entre religião e política não está servindo à democracia.

Se Bolsonaro tivesse sido reeleito, um de seus objetivos era colocar mais evangélicos no Supremo Tribunal Federal. Chegou a indicar um ministro terrivelmente evangélico — André Mendonça (eventualmente, de maneira paradoxal, moderado, na discussão de alguns temas). Com força no Congresso, se conquistasse maioria no STF — que tem sido um dique aos populistas autoritários —, os evangélicos estariam com a faca e o queijo nas mãos para a instalação de uma sociedade teocrático-fundamentalista. Nasceria a República Teocrática do Brasil. O próximo passo seria (será?) superar a Igreja Católica, arrebanhando parte substancial de seus fiéis, para se tornar a religião dominante do país.

O peso das religiões, notadamente das evangélicas em decisões políticas, sobretudo na operação das leis — da reformatação do campo legal, constitucional —, em aspectos que afetam a todos, está criando um mal-estar na civilização patropi. Mas a sociedade assiste, silente, a uma espécie de tentativa de teocratização. É hora de a sociedade pensar em barrar a teocracia política. O STF, falhando o Legislativo e o Executivo (todos querem absorver o voto dos evangélicos, e o presidente Lula da Silva parece não entender que não tem condições de conquistá-lo), talvez tenha a missão crucial de manter o estado laico — um Estado de todos, livre de controle religiosos.

Há uma extrema-ignorância em ação, mas é um engano acreditar que as ações dos evangélicos não são racionais e dotadas de uma capacidade de articulação impressionante. Às vezes o moderno e democrático são devorados porque subestimam as forças do conservantismo. Fiat lux!