Entrevista com Vladimir Nabokov, um homem da extinta aristocracia russa
19 abril 2020 às 00h00
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Em “Lolita”, primeiro há o prazer da leitura. Um gozo intenso que começa na primeira frase. E apenas cresce, atingindo auges quase insuportáveis
Halley Margon
Especial para o Jornal Opção, de Barcelona
“Lolita”¹ é, de longe, a melhor narrativa romanesca escrita nos Estados Unidos na segunda metade do século 20. Mas devo dizer que, embora isso possa ser considerado mais que um gosto, é apenas uma opinião. Dito isso, confesso que, por preconceito — e, é claro, ignorância —, só fui ler o romance de Vladimir Nabokov (1899-1977) muito, muito tarde, já passado da idade de Humbert Humbert, o que afinal talvez tenha sido uma vantagem.
O preconceito é de fato algo que chama nossa atenção, ainda mais quando o sujeito é bem ignorantão e capaz de dizer coisas assim: ah! não vou perder meu tempo lendo essas bobagens sobre quarentões que se enamoram de menininhas. Que diabos de interesse pode haver num tema como esse? Bom, o idiota no caso era eu mesmo. Até que um dia, como um raio num céu azul, resolvi pegar o livro e ler.
Em “Lolita”, primeiro há o prazer da leitura. Um gozo intenso que começa na primeira frase: “Lolita, luz da minha vida, fogo da minha carne. Minha alma, meu pecado. Lolita: a ponta da língua fazendo uma viagem de três passos pelo céu da boca, a fim de bater de leve, no terceiro, de encontro aos dentes. Lo. Li. Ta.” (Na tradução de Jorio Dauster: “Lolita, luz de minha vida, labareda em minha carne. Minha alma, minha lama. Lo-li-ta: a ponta da língua descendo em três saltos pelo céu da boca para tropeçar de leve, no terceiro, contra os dentes. Lo. Li. Ta”.) E apenas cresce, atinge auges quase insuportáveis (como naquela partida de tênis… meu Deus!), e cresce, e continua até as derradeiras palavras: “Estou pensando em auroques e anjos, no segredo dos pigmentos duráveis, nos sonetos proféticos, no refúgio da arte. E essa é a única imortalidade que você e eu podemos compartilhar, minha Lolita.” (Tradução de Jorio Dauster: “Estou pensando em bisões extintos e anjos, no mistério dos pigmentos duradouros, nos sonetos proféticos, no refúgio da arte. Porque essa é a única imortalidade que você e eu podemos partilhar, minha Lolita”.) Depois, há uma avalanche de iluminações desconcertantes abrindo delicadamente os escaninhos os mais sutis da alma humana, um turbilhão de emoções capaz de capturar o espírito e o coração do leitor e deixá-lo para sempre amarrado na trama dessa insuperável imaginação romanesca.
Nabokov encarna Mefistófeles e, ao aceitarmos o pacto que nos propõe, somos lançados num inédito círculo da existência do qual não haverá como evadir, nunca mais. Felizmente.
Moral pública e todas as outras
“Lolita” foi publicado pela primeira vez em 1955. Era a época do boom do pós-guerra, da extraordinária expansão dos negócios e do consumo nos países do primeiro mundo. Geladeiras, televisores, máquinas de lavar roupa, liquidificadores, torradeiras, automóveis rabo de peixe. A classe média ascendia ao derrame de sonhos ofertados pela maquinaria capitalista em ebulição. O lar se tornava um espaço de construção onírica lotado de bugigangas para preencher o vazio de uma sociedade existencialmente miserável, ainda tremendamente conservadora e de horizontes muito curtos sob quase todos os pontos de vista. Nos Estados Unidos mais que na Europa — não por acaso, Sigmund Freud e a psicanálise nunca conseguiram penetração na sociedade estadunidense.
Os mais rudimentares detratores do romance tacharam o livro de “imoral” e coisas que tais. O que é evidentemente uma bobagem. Nabokov não está preocupado em fazer crítica de costumes, contrapontos morais ou reparações à hipocrisia da sociedade, no momento em que ela começa a se entregar à orgia desenfreada do consumismo ou em qualquer outro momento. A perspectiva do seu olhar tem outra escala de medida e um alcance infinitamente maior.
“Eu não dou a mínima para a moral pública, nos Estados Unidos ou em qualquer outro lugar”, diz ele em 1967, doze anos depois da publicação do romance. Nabokov, na realidade, não dá a mínima para nada nem ninguém que não seja parte do seu círculo ou não pertença ao mundo exclusivo de Nabokov. Ele não faz a mais mínima concessão à cultura ou ao universo mental daquela exuberante gente que frequenta a Universidade Cornell, no Estado de Nova York, onde ministrou suas geniais “Aulas de Literatura”. Mas também nunca trai suas origens de classe, se orgulha dela, continua um aristocrata russo de quem roubaram mais que títulos e propriedades — assim parece pensar. O jovem Vladimir era pouco mais que um adolescente quando os bolcheviques chegaram ao poder e de imediato eliminaram todos os privilégios da aristocracia russa, confiscando terras e propriedades. Em 1919, a família de Nabokov fugiu e se exilou na Alemanha. Em 1940, foram parar nos Estados Unidos.
A revolta contra os atos da revolução que atingem sua família, e a milhares de outras, nunca será deixada para trás. Ao contrário, torna-se uma sombra escura acompanhando eternamente os passos do escritor. Nada de crítica política ou análise histórica (e crítica) da revolução e, sequer, daquilo que viria em seguida: a degenerescência stalinista. É mágoa, que se transforma em amargo rancor, em ressentimento.
E é de se duvidar que Nabokov tampouco desse bola para essa ou qualquer outra imagem que fizessem dele. Estava sempre acima de todos os outros. Demasiadamente acima.
“Meus personagens são escravos nas galés”
Em 1967, aos 78, o já mundialmente famoso autor de “Lolita” (escrito em inglês) concedeu uma entrevista à “Paris Review”. A certa altura o entrevistador pergunta:
“O senhor aprendeu com seus alunos na Cornell? Ser professor lhe ensinou alguma coisa valiosa?”
O que se segue é muito esclarecedor. Nabokov começa respondendo que o método de ensino que utiliza “pressupõe um contato genuíno com (os) alunos” e prossegue, no que poderíamos chamar de puro sarcasmo (ou grossa ironia), afirmando que “na melhor das hipóteses, eles regurgitavam pedaços do meu cérebro durante os exames”. O contato genuíno com os alunos se realiza por meio de aulas que eram “cuidadosamente, amorosamente, escrita(s) à mão, depois datilografada(s)” e que ele lia “tranquilamente em voz alta na classe…”. Confessa, frustrado, que tentou “em vão substituir… a (própria) presença na sala por fitas gravadas a serem tocadas na rádio da faculdade”.
Para a segunda parte da pergunta responde: “Não sei se aprendi algo com o ensino, mas sei que acumulei uma inestimável quantidade de informações interessantes analisando uma dúzia de romances para meus alunos”. A realidade é que, como um genuíno aristocrata russo, Nabokov não se preocupa em dissimular seu desprezo (ou sua alienação) por tudo que não pertença ao mesmo estamento que ele. Desde o berço se habituou a ver o mundo a partir das alturas inalcançáveis da corte. A arrogância natural de sua gente nele cai como uma luva. Na melhor das mãos, aquela que redigiu “Lolita” e as “Aulas de Literatura”², com toda a justiça do mundo, na outra…, decrépita, serve para revelar o anacronismo da classe social à qual pertencia e que os bolcheviques botaram para correr — ou literalmente enterraram.
A psicanálise, cuja matéria-prima é a palavra falada, pede que o paciente se ponha à vontade e fale, deixe fluir tudo que lhe venha à cabeça. O que ocorre (e o que se espera que ocorra) é que às vezes, no meio do discurso, involuntariamente o paciente deixa emergir o que desde sempre vinha guardando, censurando, recalcando. Sem querer (e querendo) ele se revela. Na referida entrevista há coisas assim. E quando se juntam as peças, lá está o homem a quem o mundo e todos os outros devem servir. (A propósito, Nabokov rejeitava radicalmente Freud, a quem chamava “o charlatão de Viena”, e a psicanálise.)
“Meus personagens são escravos nas galés.” Muito bem, para muitos escritores é assim que funciona e não há nada demais na coisa. Trata-se apenas de uma maneira de lidar com o material ficcional. Também para Nabokov, é claro. Mas nele seria um erro parar aí. Porque há ali umas tantas outras pecinhas…³.
Três notas
¹ “Lolita” ganhou três traduções no Brasil. A primeira de Brenno Silveira, publicada pela Editora Record/Círculo do Livro. A segunda de Jorio Dauster, edição da Companhia das Letras. A terceira de Sergio Flaskman, pela Alfaguara.
² A Editora Três Estrelas publicou no Brasil: “Lições de Literatura” (464 páginas, tradução de Jorio Dauster) e “Lições de Literatura Russa” (400 páginas, tradução de Jorio Dauster). O primeiro saiu em Portugal com o título de “Aulas de Literatura” (Relógio D’Água, 446 páginas, tradução de Salvato Telles de Menezes e introdução de John Updike).
³ O Jornal Opção vai publicar um segundo texto (a continuação) de Halley Margon sobre Nabokov.