Ademir Luiz

O Imperador olhava demoradamente para as teclas pretas e brancas do piano, procurando a melhor combinação. Dedos sujos de tinta, resultado de longas horas de composição, escrevendo e corrigindo a partitura. É madrugada, o palácio está vazio, frio e silencioso. Iluminado por umas poucas velas. Dispensou o mordomo, os outros se dispersaram naturalmente, pelo adiantado da hora. Finalmente está sozinho, algo cada vez mais raro. Aprendeu que quando se nasce príncipe não se possui direito à privacidade, sobretudo quando, em função da chorada morte do irmão primogênito, é alçado à condição de herdeiro do trono, primeiro na linha sucessória. A entourage multiplicou-se geometricamente quando fizerem dele Regente e, depois, quando faz-se Imperador.

Esses lapsos de silêncio e solidão, sabidamente momentâneos, representam um alento, sendo vividos com gosto. Poderia aproveitá-los em uma de suas proezas atléticas ou fanfarronices, tão faladas na Corte e pelo populacho, mas optou por compor o hino patriótico que comentaria sua entrada definitiva na História. Se antes estava condenado à essa mesma história como nota de rodapé por simples direito de nascimento, agora tornava-se um tipo de Pai Fundador e, portanto, protagonista. Tinha essa consciência disso e queria deixar sua marca estética, para além da marca política. Na verdade, musicava um poema já musicado anteriormente por seu mestre. Uma temeridade, sem dúvida, possivelmente um ato de arrogância, mas sentia-se capaz de fazer. Momentos assim podem abrir portas.

O dedo indicador, sujo de tinta, tocou um Dó Maior, talvez aleatoriamente, apenas para não permanecer na imobilidade criadora. As ondas sonoras, como se vento fossem, sopraram as chamas das velas, apagando quase todas. Apenas uma manteve resistência no centro do castiçal. A sala de música tornou-se penumbra. E o Imperador soube que não estava mais sozinho. Seu Pai, e o Frei, o preveniram que esse dia chegaria. Chegam para todos de sua classe. Napoleão não conseguiu mudar isso.

— Imperador… — disso o Recém-Chegado. Estava sentado em uma poltrona à suas costas. Falava como um velho doente de algum país nórdico, arranhando o português lisboeta. Não era a voz ou o sotaque que esperava. Mas o que esperava? Que falasse húngaro? Basco?

O Imperador não respondeu, nem olhou diretamente. Limitou-se ao olhar periférico. O vulto não parecia muito encorpado, nem digno. Talvez estivesse vestido com roupas de caixeiro viajante. Respirou fundo para tentar identificar o cheiro de enxofre das lendas. Não sentiu nada. Talvez um leve odor de tabaco barato. Decepcionante, pensou. Devo olhar? Ainda não. E começou a tocar o início do hino que compunha.

José Bonifácio e D. Pedro I | Foto: Reprodução

— É uma bela melodia! Melhor que a do outro português. Superou o mestre… — falou o Convidado Indesejado. O Imperador não identificou cinismo na observação. Estaria o Senhor das Mentiras falando a verdade? Deveria se orgulhar? Estava bajulando? — Posso ajudá-lo a completar a peça, se achar conveniente. Tenho particular predileção por músicos, como deve saber.   

Agora, sim, precisa responder, por segurança. Negar de forma firme. Um deslize de linguagem e pode estar firmando um pacto sem intenção. Ele é capaz de todas as artimanhas.

— Não, obrigado. Vou terminar sozinho. Falta pouco.

— Certamente, é um homem de talento. O austríaco o ensinou bem. Mas talento musical não basta para fazer todo o resto sozinho…

Foi rápido. Já lançou sua isca de barganha, pensou o Imperador ao mesmo tempo em que acelerou o andamento da música.

— Mais devagar é melhor… — observou o Inimigo, e levantou-se. Caminhou em passos silenciosos, sem peso, até ao lado do Imperador. Tinha mesmo cheiro de tabaco, misturado com água de colônia. Segurou em seu ombro e debruçou-se para ler a partitura. O rosto muito próximo, próximo demais, tornava-se ainda mais indistinguível. O Imperador não se mexeu, apenas os dedos ainda trabalhavam na cama de teclas. O intruso apontou algo na partitura, revelando para o Imperador dedos magros, sem anéis, saindo de uma manga puída. O contato demorou mais alguns segundos, mas o Tentador logo desinteressou-se e se afastou. Estava ali para realizar outros negócios. Música não era a primeira atividade de seu potencial cliente.

Música. Longo silêncio de vozes.      

— As Províncias Cisplatinas… — disse, finalmente aquele que não deveria estar ali.

— Um problema provocado por minha mãe. Cuido eu.

— É um nó político grande demais para ser desatado por diplomacia. Imagino que não vai querer derramar sangue brasileiro nesta empreitada. Salvo engano, você jurou independência ou morte para o Brasil. O Brasil já está independente. Essa máxima poderá ser adotada pelo outro lado. Deixará morrer brasileiros independentes numa aventura? Justo quanto compõe um Hino Constitucional…

— Se o Criador assim o desejar.

— Ele sempre assim o deseja. É como um esporte para Ele. Sou mais comedido neste sentido…

— Se assim diz.

— E se for seu próprio sangue? Sangue da sua família? E se perdesse sua esposa ou outros filhos? E se entrasse em uma luta fratricida com seu irmão? E se tivesse que responder ao dilema de Aquiles? E se… 

— Prefiro não saber.

— Não se precipite, majestade, escute. Não estou fazendo profecias, não tenho esse dom, que está restrito somente a Ele. Escute…

— Escute tu, essa música.

— É bela, mas não é perfeita. Poderia torná-la perfeita, assim como poderia tornar eterno o Império que começa agora…  

— Como foi Roma e os impérios do Oriente? Não, obrigado.

— Não atuei nestes casos, mas tenho lá minha astúcia. Mas garanto que, se o General Francês tivesse me escutado, teria vida mais longa na política. Pelo menos teria vida mais longa. Homens de gênio que se sabem homens de gênio acreditam que se bastam. Mal sabem eles das engrenagens que tudo movem. O senhor seu pai teve mais visão. Conseguimos enganar o Francês…

Certamente, aquilo era uma provocação. Meu Pai, pensou o Imperador, teria me contado.

— Tu sabes que o Francês morreu maldizendo seu Pai. Foi o único que enganou. Eu estava lá, eu ouvi…

— É tudo? — respondeu o Imperador, sugerindo que a audiência deveria acabar.

— Sua neta não será imperatriz… – falou o que deveria sair, ríspido, em um misto de profecia e maldição.

— Então, terei uma neta?

— Vais abdicar. Morrerá tísico. Seus feitos serão escondidos ou deturpados e se tornará uma anedota proferida por hipócritas. Tua Constituição será rasgada. Até mesmo essa música que compõe agora será apagada…

— Basta! — O Imperador fechou os olhos e começou a recitar lentamente, silenciosamente, o próprio nome, cheio de apóstolos, santos e arcanjos. 

— Pedro… de Alcântara… Francisco… António… João… Carlos… Xavier… de Paula… Miguel… Rafael… Joaquim… José… Gonzaga… Pascoal… Cipriano… Serafim…

Abriu os olhos ao recitar o último nome, talvez o mais forte. Quando terminou não havia mais ninguém na sala de música para retrucar.

O Pestilento foi-se, levando consigo o aroma de tabaco e água de colônia. Deixou no Imperador a sensação de que deveria ter olhado diretamente para Ele. Não parecia tão terrível assim. Pela voz fraca, sotaque incerto, cheiro cômico e dedos magros, não parecia ser capaz de suportar um sopapo bem dado. Mas, certamente, fraqueza tão óbvia só poderia ser um truque.

Voltaria? Se voltasse estaria preparado. Deixaria a espada sempre próxima. Não era espada de Serafim, mas serviria. 

Agora precisava terminar a música. Os independentes aguardavam.

Ademir Luiz, escritor e historiador, é professor da Universidade Estadual de Goiás (UEG).

Publicação em livro

O conto “Encontro noturno ao som de piano entre o Príncipe das Trevas e o Imperador da Terra de Santa Cruz” será publicado na coletânea “Estórias da Independência”, organizada por Thiago Lima, pela Editora Chafariz. O site da editora é www.editorachafariz.com