“Uma escritora de estilo pronto; na minha opinião, a mulher que atualmente melhor escreve ficção em inglês.” — Philip Roth

A escritora irlandesa Edna O’Brien morreu no sábado, 27, e os jornais globais, como “The Guardian”, publicaram extensos obituários — reconhecendo seu imenso valor como romancista (20 romances), contista, dramaturga, memorialista e biógrafa (de James Joyce). O Brasil, que adora ser o primeiro a chegar atrasado, publicou reportagens que, a rigor, são recortagens. (Os jornais informaram que a autora de “Byron Apaixonado” morreu de uma “doença prolongada”. Mas creio que, quando se morre aos 93 anos, a verdadeira doença decorre dos males da velhice.)

A resenhista Isabel Lucas, do “Público”, jornal de Portugal, escreveu um obituário curto mas instrutivo.

Isabel Lucas relata que, aos 86 anos — idade em que a maioria certamente se acomoda, à espera do fim —, Edna O’Brien decidiu estudar a violência — estupros — contra meninas na Nigéria. O livro “Menina”, publicado em Portugal, é o relato do que fizeram membros do movimento terrorista Boko Haram. Trata-se de um relato duro da realidade das mulheres no país africano.

Numa entrevista ao “Ípsilon”, suplemento de cultura do “Público”, Edna O’Brien disse: “A minha crença, então e sempre, é a de que o sofrimento imposto às pessoas, homens e mulheres, pode diferir proporcionalmente, na extensão da violência, na variedade dos horrores, mas a emoção e o medo e os sentimentos são comuns a todas as nações e a todas as pessoas, uma vez que nossos terrores existem dentro de nós à nascente. O efeito, ou trauma como é chamado, acontece mais tarde e assume diferentes formas dependendo do caráter inato. Algumas pessoas tentam obliterar, outras dizem que se esquecem e outras tentam gravar”.

Ao publicar seu primeiro livro, “The Country Girls”, em 1960, Edna O’Brien sofreu uma espécie de violência. Por tratar de forma explícita a iniciação sexual de meninas católicas irlandesas, o livro da autora foi proibido de ser vendido nas livrarias de Dublin. Exemplares chegaram a ser queimados, sob duas acusações: “falta de religião e pornografia”. Como a verdade queima tentam apagá-la com o fogo da censura.

Há quem chame Edna O’Brien de “a Colette irlandesa”. Seria “a Joyce de saia” da Irlanda? (Há quem a aproxime de Proust.) Mesmo devendo muito a James Joyce, que contribuiu para ensiná-la a “ler” a realidade, os indivíduos e linguagens, a escritora não é um simulacro. Sua literatura é menos inventiva. Talvez seja possível registrá-la como o simples sofisticado. O que parece simples é altamente elaborado, burilado, refinado. Joyce e vários outros autores, quiçá Laurence Sterne, estão diluídos com mestria — o que resulta numa literatura única.

James Joyce e Nora Barnacle: uma história de paixão, amor e sexo | Foto: Reprodução

A literatura de Edna O’Brien é posicionada, não há dúvida. Mas parece, para os tempos atuais, ter o defeito de não ser panfletária.

Na resenha de “The Little Red Chair” (de 2016), publicada na “New Yorker”, o crítico britânico James Wood (agora no “New York Times”) assinalou que Edna O’Brien “mistura e reinventa formas herdadas, muda da narração em terceira pessoa para a primeira pessoa, reproduz sonhos e monólogos dramáticos”.

O melhor que se faz por um escritor, sobretudo do nível de Edna O’Brien, é publicar suas obras. Há pouca coisa da irlandesa no Brasil, infelizmente. E os livros de crítica literária editados no país raramente a citam. Há, porém, uma exceção.

Reinventar para modificar o passado

Há um livro de Philip Roth, “Entre Nós — Um Escritor e Seus Colegas Falam de Trabalho” (Companhia das Letras, 172 páginas, tradução de Paulo Henriques Britto), que contém uma excelente entrevista de Edna O’Brien.

Edna O’Brien e Philip Roth: a entrevistada e o entrevistador | Foto: Reprodução

Philip Roth entrevistou Edna O’Brien no seu escritório, em Londres. O escritor percebeu uma foto de Virginia Woolf, sobre quem ela escreveu uma peça, “Virginia — A Play”, e um volume da correspondência de Flaubert (a escritora estaria lendo uma carta para George Sand). “Para se animar”, ouve óperas de Verdi.

Observador atento, Philip Roth registra: “Como todas as suas roupas são negras, é impossível não reparar na pele alva, nos olhos verdes, nos cabelos acaju [nota do Jornal Opção: em 1984, ano da entrevista, Edna O’Brien tinha 54 anos, três a mais do que o prosador americano]. As cores não podiam ser mais irlandesas, tal como a cadência melíflua de sua fala”. Uma bela descrição, exceto pela falta de finura do “acaju”. Mas, claro, a verdade raramente é elegante.

Philip Roth assinala que, no livro de memórias “Mother Ireland”, Edna O’Brien usa uma citação de Samuel Beckett, retirada de “Malone Morre”, como epígrafe: “Antes de mais nada, quero dizer que não perdoo ninguém. Desejo a todos uma vida atroz nos fogos do gélido inferno e nas gerações execráveis que hão de vir”.

A frase de Beckett é de uma aspereza que Philip Roth diz não notar na obra de Edna O’Brien. Mas a escritora admite que, quando escreveu o livro, tinha “uma atitude implacável em relação a muitas coisas que aconteceram na” sua “vida”. A citação de “Malone Morre”, dada sua feroz eloquência, era adequada.

Edna O’Brien sublinha que não é (era) “uma pessoa naturalmente dada ao ódio implacável, como também não sou uma pessoa naturalmente dada ao amor incondicional, e em consequência disso muitas vezes entro em choque comigo mesma e com os outros”.

A escritora afirma que era mais implacável com seu pai, Michael O’Brien, um alcoólatra violento. “Mas a morte provoca uma espécie de metamorfose dentro da gente. Depois que meu pai morreu, escrevi uma peça sobre ele que incluía todas as características — a raiva, a sexualidade, seu lado predatório —, e agora meus sentimentos a respeito dele são diferentes. (…) Agora eu o perdoo.”

Lena Cleary O’Brien, a mãe, era amada por Edna O’Brien. Mas ela deixou na escritora “um sentimento de culpa avassalador. Até hoje eu sinto a presença dela atrás de mim, julgando”.

Philip Roth sugere que a obsessão com o passado tem a ver com o fato de Edna O’Brien ser escritora. Ela concorda: “É o preço que se paga por ser escritor. A gente vive atormentada pelo passado — dores, sensações, rejeições. Eu realmente acredito que esse apego ao passado é um desejo insistente, ainda que fadado ao fracasso, de reinventá-lo de modo a modificá-lo”. Na sua opinião, quiçá imprecisa (não escrever a respeito não é equivalente a não lembrar), médicos e advogados “não vivem escavando”.

O autor do romance “Pastoral Americana” nota que Edna O’Brien explora a infância com intensidade, numa mineração profunda. “Sou obsessiva. O período da vida em que você está mais vivo e mais consciente é a infância, a gente passa o resto da vida tentando recuperar aquela consciência acentuada.”

Na infância irlandesa, Edna O’Brien viveu numa fazenda isolada, ao lado de um pai violento e estudou num convento, mas, como pontua Philip Roth, não perdeu “a liberdade mental” que permitiu-lhe escrever com o máximo de clarividência e perspicácia.

Edna O’Brien: sua obra questionadora mexeu com o moralismo “moderno” | Foto: Reprodução

A prosadora alonga-se na resposta: “Minha própria resistência me surpreende, sim, mas não acho que sobrevivi a isso tudo incólume. Não sei dirigir nem nadar; essas atividades estão além das minhas forças. Sob vários aspectos eu me sinto aleijada. O corpo era sagrado como um tabernáculo, mas na verdade nem tanto — o corpo contém a história da vida tanto quanto o cérebro. Eu me consolo com a ideia de que se uma parte é destruída, a outra floresce”.

O criador de “O Complexo de Portnoy” inquire: “Como é que a sua memória mantém vivo esse mundo desaparecido, e por que é que ele não a deixa em paz?”

A autora de “Chica de Campo — Memórias” (Errata Naturae, 423 páginas, tradução de Regina López Muñhoz. O título em inglês é “Country Girl) se explica: “Essas recordações [da infância, da adolescência] me dominam. É algo que simplesmente acontece e me subordina. Minha mão faz o que tem de ser feito e eu nem preciso pensar; aliás, se eu pensasse , o fluxo seria interrompido. É como se uma represa no meu cérebro se rompesse”.

Irlanda: distância é útil para lembrar e descrever

Edna O’Brien conta que não precisava visitar a Irlanda para “resgatar” suas memórias do país. Como, então, descreve a terra dela, de Joyce e de Beckett com tanta precisão, com a ficção recriando a realidade, restaurando o tempo perdido, e sem madeleines?

“Funciona de uma maneira muito mais complexa, por meio do que a gente sonha, do acaso, e, para mim, no caos de emoções provocado por uma relação amorosa e suas consequências”, declara a autora do romance “A Luz da Noite” (Record, 382 páginas, tradução de Maurette Brandt).

O casamento tumultuado com o escritor-irlandês Ernest Gébler, com o qual teve dois filhos, Carlo e Sasha, talvez tenha sido responsável por Edna O’Brien ter optado por viver sozinha, livre para pensar e escrever ficção, memórias, peças.

“Eu reclamo da solidão, mas ela me é tão cara quanto a ideia de me unir a um homem. Já disse muitas vezes que gostaria de dividir minha vida em períodos alternados de penitência, gandaia e trabalho, mas como você certamente compreende isso não funcionaria muito bem num casamento convencional”, frisa Edna O’Brien.

Philip Roth retoma a questão de o escritor “precisar” de uma Ítaca (a de Faulkner era o Mississippi e a de Saul Bellow, Chicago). Não é o caso de Edna O’Brien e outros irlandeses. “Quando você sente que as suas raízes são muito ameaçadoras, muito limitadoras, o jeito é ir embora. Joyce afirmou que a Irlanda é a porca que come sua ninhada. Ele se referia à atitude da Irlanda em relação a seus escritores — ela os ataca violentamente. Joyce e Beckett foram embora para nunca mais voltar, se bem que jamais perderam aquela consciência tipicamente irlandesa. Quanto a mim, se eu tivesse ficado acho que não teria escrito nada. (…) Teria perdido esse bem sem preço que é a liberdade”.

Há um mundo visceralmente masculino na literatura irlandesa: Laurence Sterne, Oscar Wilde, Yeats, Joyce, Beckett, Flann O’Brien, Liam O’Flahearty, James Banville, Colm Tóibín. Por isso, Philip Roth cita Frank Tuohy: “O mundo de Nora Barnacle [a mulher do autor de “Ulysses”] teve de esperar pela chegada da obra de Edna O’Brien. Depois, o americano quer saber a respeito da influência do criador de “Dublinenses”, livro de contos que pode ter influenciado ao menos um conto da escritora, “Tough Men”.

O “encontro” com a obra de James Joyce

“Na constelação dos gênios, ele [James Joyce] o é uma luz ofuscante e o pai de todos. Quando li Joyce pela primeira vez, foi um livrinho organizado por T. S. Eliot. (…) Então me defrontei com ‘Os Mortos’ e um trecho do ‘Retrato do Artista Quando Jovem’, coisas que me deixaram aturdida, não só pelo encantamento do estilo mas também porque eram tão próximas à vida, eram a vida.” “Ulisses”, no início, a assustou — era um romance “inacessível”.

“Hoje em dia considero ‘Ulisses’ o livro mais divertido, brilhante, complexo e menos chato de todos que já li. A qualquer momento eu posso pegá-lo, ler algumas páginas e sentir que acabei de ter uma transfusão de cérebro. Quanto a me sentir intimidada, a questão não cabe — Joyce está simplesmente além dos limites, além de todos nós, lá nas ‘longínquas ilhas dos Açores’ como ele dizia”, sublinha, modesta, Edna O’Brien.

Philip Roth ressalta que, “no centro de praticamente todas as narrativas” de Edna O’Brien, “temos uma mulher, na maioria vezes uma mulher sozinha, lutando contra o isolamento e a solidão”. Mas não há uma formatação literária ideologizada, de acordo com o autor de “O Teatro de Sabbath”, na prosa questionadora da irlandesa.

Edna O’Brien postula que “a posição correta é escrever a verdade, escrever o que a gente sente sem levar em conta o que pensa o público ou uma panelinha específica. (…) Os artistas detestam as posições e desconfiam delas porque sabem que assim que você assume uma posição fixa, você se transforma numa outra coisa — em jornalista ou político. O que eu procuro é magia, e não quero escrever panfletos nem ler panfletos”.

“A filha também deseja a mãe”

Qual é o cerne do desespero feminino? “No mito grego do Édipo e na exploração desse mito feito por Freud, o desejo do filho pela mãe é reconhecido; a filha também deseja a mãe, mas é impensável, no mito, na fantasia ou na realidade, a possibilidade de consumar esse desejo”.

A autora de “Dezembros Selvagens” (Bertrand Brasil, 304 páginas, tradução de Cyana Leahy) pondera que “o homem pode ajudar a lavar os pratos e tudo o mais, mas seu compromisso é mais ambíguo, e ele está sempre olhando para o lado da cerca”. Edna O’Brien está tratando da “promiscuidade” masculina.

Philip Roth ressalva: “Mas as mulheres não são igualmente promíscuas?” Edna O’Brien só concorda em parte, acrescentando outra interpretação: “Às vezes são, mas a promiscuidade não dá a elas a mesma sensação de realização. A mulher, ouso afirmar, é capaz de um amor mais profundo e mais duradouro. Eu acrescentaria também que ela tem mais medo de ser abandonada. Isso não mudou. (…) as mulheres não estão mais seguras em suas emoções do que antes. Apenas sabem lidar com elas melhor. A única segurança verdadeira seria abrir mão dos homens, afastar-se deles, mas isso seria uma pequena morte — ao menos para mim”.

Por que a autora de “Uma Mulher Escandalosa” (Francisco Alves, 162 páginas, tradução de Luísa Lago) “escreve tantas histórias de amor”?, quer saber Philip Roth.

Edna O’Brien diz que, para ela, “o amor substituiu a religião, quanto ao fervor. Quando comecei a buscar o amor terreno (ou seja, o sexo), tive a impressão de estar me separando de Deus. Ao tomar ares de religião, o sexo assumiu proporções um tanto avantajadas. Ele se tornou a coisa central da minha vida, a meta. (…) A excitação sexual estava muito associada à dor e à separação. Minha vida sexual é central para mim. (…) Ela ocupa muito tempo no pensamento quanto no ato, sendo que o pensamento muitas vezes ocupa a posição principal. Para mim, acima de tudo, é algo secreto, que contém algo de misterioso e agressivo. Minha vida cotidiana e minha vida sexual não formam um todo — elas estão separadas. Isso faz parte do meu legado irlandês”.

A liberdade de Edna O’Brien, sobretudo sua liberdade formulada ou pensada, assustava os homens. Philip Roth, aparentemente de maneira brincalhona, sugere que a escritora teria de encontrar um homem como Leonard Woolf, o supostamente tolerante marido de Virginia. Mas a escritora o corrige, de pronto: “Não quero um Leonard Woolf. Quero uma combinação de Lord Byron e Leonard Woolf”. Nada de vida insossa.

[Email: [email protected]]