Eliézer Cardoso de Oliveira

Especial para o Jornal Opção

O sociólogo alemão Max Weber (1864-1920) elaborou um criativo exercício intelectual para os historiadores perceberem as causas decisivas das mudanças históricas substanciais. Trata-se da “possibilidade objetiva”, uma estratégia metodológica que se vale da partícula “se” para pensar um curso alternativo dos eventos históricos.

Weber exemplifica: “Se os persas tivessem vencido a Batalha de Maratona, como seria o mundo atual?” Considerando que a cultura humanística grega foi uma das principais matrizes formativas do pensamento ocidental, caso ela tivesse sido abortada precocemente, o mundo de hoje seria substancialmente diferente. Saber disso permite ao historiador distinguir as “causas fortes” das “causas fracas”, o que é bastante útil no estudo de uma realidade histórica caótica em que tudo pode ser causa e tudo pode ser consequência.

Neste ano em que se completam 200 anos da Independência Nacional, parece muito pertinente fazer uma reflexão sobre as causas decisivas que moldaram o destino histórico do país. Vamos fazer, então, um exercício de possibilidade objetiva para analisar alguns fatos importantes da história nacional. Comecemos, então, no início: e se o Brasil tivesse sido colonizado por um país anglo-saxão, será que seríamos um país desenvolvido como os Estados Unidos? A pergunta parece pertinente, pois a diferença na colonização Norte-Sul foi tema da reflexão, tanto de Sérgio Buarque de Holanda, que mostrou o contraste entre uma mentalidade católica e uma protestante, quanto de Caio Prado Júnior, que ressaltou a diferença entre as colônias de exploração e as colônias de povoamento. Acho que todos entenderam a parte que nos cabe neste latifúndio, mas para não deixar nenhuma dúvida: os católicos e os explorados somos nós

Essas diferenças na formação social do Brasil e do primo rico, apontadas por dois dos mais importantes historiadores brasileiros, fizeram muitos maldizerem a colonização ibérica. Contudo, pensando em termos de possibilidades objetivas, como nos ensinou Weber, não seria lá muito vantajoso se hoje esse texto, por circunstância de colonização, tivesse sido escrito em francês, inglês ou holandês. Primeiro, porque a formação dos Estados Unidos foi uma exceção, já que o país absorveu o melhor do pensamento iluminista, sem ter que passar por uma revolução sangrenta, como a França, e sem ter as amarras de um tradicionalismo retrógado, como a Inglaterra. Qualquer país do mundo que for comparado com o Tio Sam, em termos de êxito econômico e estabilidade política, irá fatalmente sentir-se inferiorizado.

“Aplicação do Castigo do Açoite”, do francês Jean Baptiste Debret | Foto: Reprodução

O mais justo e sensato é comparar a colonização brasileira com a de países mais parecidos com o nosso. Olhemos para Jamaica, Barbados, África do Sul, Índia e Paquistão, colonizados pelo Império Britânico; ou Marrocos, Tunísia e Argélia, colonizados pela França; ou Suriname e Indonésia, colonizados pelos holandeses. Entre os países tropicais esquecidos por Deus, até que não ficamos mal na fita. Ainda falta muita coisa para atingirmos um nível social de uma Austrália, mas, em termos econômicos, estamos entre as dez mais importantes economias do mundo, o que não é pouca coisa. O sociólogo Gilberto Freyre chega ao ponto de afirmar que nós somos a maior civilização dos trópicos e, tudo isso, por causa da flexibilidade da colonização portuguesa, que soube aceitar as contribuições culturais de africanos e indígenas para moldar uma sociedade original.

Além do mais, uma colonização anglo-saxônica não iria garantir um sucesso econômico e social ao Brasil. Uma das poucas vantagens seria a de falar uma língua que, ao contrário da nossa bela e pouco conhecida Flor do Lácio, seria compreendida por grande parte do mundo. Nesse cenário, já teríamos ganhado ao menos um prêmio Nobel de Literatura e a música brasileira dominaria o mundo, com os nossos “Francis Buarque” e “Milton Birth” deixando para trás os Dylan e os Sinatra.

Mas culpar a colonização por quem somos hoje é cair no mito do “ídolo das origens”, uma expressão utilizada pelos historiadores para a explicação dos males do presente a partir de uma causa no passado longínquo. É claro que a colonização portuguesa deixou as suas marcas nas “Raízes do Brasil”. Mas fomos nós brasileiros que construímos nossas “Casas Grandes” e nossas “Senzalas”. Desde que nós nos desmamamos dos portugueses em 1822, muitas oportunidades de mudanças foram perdidas. Afinal muita coisa pode ser feita em 200 anos. O Japão, por exemplo, mudou completamente a sua identidade em menos de 50 anos, quando aposentou as suas espadas de samurai e se tornou uma potência econômica e tecnológica, habitada por um povo pacífico e cordato, que aprecia mais a violência estética dos mangás do que a violência real dos duelos.

Talvez tenha faltado ao povo brasileiro a coragem de cometer um haraquiri identitário, abandonando a postura conciliatória para radicalizar mudanças necessárias. Nunca chutamos o balde pra valer. Com exceção das bebidas e das festas, sempre agimos com moderação. Trocamos o radicalismo da Revolução Pernambucana de 1817 pelo Grito do Ipiranga em 1822.

O nosso período de maior radicalismo social — as Revoltas Regenciais — terminou pateticamente quando se colocou a coroa na cabeça de um menino de 14 anos. O Movimento Abolicionista, a primeira campanha de rua que realmente empolgou o povo, acabou com uma canetada.

O maior teórico do fascismo tropical, Oliveira Vianna, imaginou, bem à brasileira, a Solução Final para eliminar os nossos negros: ele apelou para o patriotismo dos brancos para se casarem com os negros e, assim, por meio do casamento interétnico, branquear a população brasileira com o sangue “superior” dos brancos. Bem antes dos hippies de 1968, fascistas brasileiros já diziam “faça amor, não faça campo de extermínio”. Dizem até que a nossa ditadura foi mais “branda” do que as demais (chilena e Argentina, por exemplo). Não sei se procede, mas que era mais atabalhoada, isso era. O nosso 30 de Abril — o que seria o equivalente ao 11 de Setembro dos americanos — terminou pateticamente com a bomba explodindo no colo do terrorista, lá no Riocentro.

Talvez hoje fossemos um país diferente se, em 1850, não tivéssemos promulgado a fatídica Lei de Terras, que impediu que os negros libertos da escravidão tivessem acesso à terra. Foi uma Reforma Agrária ao contrário, prendendo a terra enquanto se libertava o trabalho. Imaginem como seria esse país, se famílias de negros, desde aquela época, pudessem progredir trabalhando nas suas próprias terras? Ocorreria o que aconteceu com os imigrantes brancos europeus que se enriqueceram, não por serem brancos ou europeus, mas por, simplesmente, terem tido acesso à terra. Nesse caso, a política de cotas racial funcionou perfeitamente para os loiros de olhos azuis.

Talvez hoje fossemos um país diferente se, em 1945, em vez de desmobilizar, tivéssemos incorporados os corajosos pracinhas ao Exército Brasileiro. Isso não só seria um ato de justiça com esses “filhos teus que não fugiram da luta”, mas uma boa estratégia para revitalizar e modernizar o Exército com gente nova e experiente em combate. Aliás, isso foi sugerido pelos oficiais norte-americanos, mas a cúpula do Exército pensava diferente: os pracinhas serviam para enfrentar os alemães — provavelmente o mais disciplinado exército de todos os tempos —, mas não serviam para serem oficiais e ficar atrás de uma mesa de quartel.

Se os pracinhas tivessem sido incorporados ao Exército, trazendo as ideias democráticas que aprenderam na luta contra o fascismo na Europa, talvez não houvesse existido a Ditadura, branda ou severa. Sem essa página infeliz da nossa história, o governo se alternaria entre um Carlos Lacerda e um Juscelino Kubitschek, sem milagres e sem tenebrosas transações.

É a democracia, estúpido! A democracia foi boa para a Atenas da Antiguidade, para os Estados Unidos do século XVIII, para a Europa do Século XIX, para o Japão do século XX. Por que não seria boa para o Brasil do século XXI? Foi a partir da abertura democrática e da Constituição Cidadã que tivemos um país com SUS, concursos públicos e políticas sociais. Os militares entregaram um país com Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) de 0,545, considerado muito baixo, e hoje nós temos um IDH de 0,765, considerado alto. Estamos até melhor do que a China que possui um IDH de 0,761.

Não se engane, caro leitor, com o que você ouvir por aí. A democracia funciona. Aprendemos mais uma vez com os alemães. Por duas vezes, tentaram transformar-se em potência por meio de regimes autoritários: uma com Guilherme, o segundo, outra com o Adolf, o primeiro e o último. Falharam tragicamente. Mas, apesar de vocês, a Alemanha, democraticamente, terminou o século XX como o país líder da Europa Unida, mostrando ao mundo que a cultura dos livros é a mais efetiva do que a cultura das armas.

Nesse momento de reflexão, comemorando os 200 anos de nossa Independência, não deixe que o esforço dos democráticos atenienses que venceram os persas em Maratona tenha sido em vão. Continuemos, devagar e sempre, fortalecendo as instituições democráticas, investindo na Educação e Saúde, procurando reduzir as desigualdades sociais, cuidando da riqueza ambiental.

Se continuarmos assim, um novo país a de vir antes do que você pensa.

Eliézer Cardoso de Oliveira é professor da Universidade Estadual de Goiás (UEG).