Dra. Nilma foi carvalho frondoso e árvore que frutificou no MP goiano e na vida de cada um que tocou
09 abril 2021 às 22h48
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Dra. Nilma equivale a conselheira, com as palavras que acompanham: lealdade, atenção, simplicidade de trato e autoridade moral, respeito e capacidade de compreensão
Marcelo Franco
Ainda estudante de Direito, com toda aquela empáfia que só um aluno de primeiro ano de curso universitário pode ter, acompanhei minha mãe a uma cerimônia de casamento qualquer, na Igreja do Ateneu São João Bosco. Ser motorista era a minha função, apesar de eu — estudante que pouco estudava, já confessei — pensar que ali estava como par daquele grupo que se reunia.
Dizem que tenho memória privilegiada. Não sei. O fato é que não me recordo de quem se casou naquele dia; isso, creio, por um motivo bem específico: lá estava a dra. Nilma, então procuradora-geral de Justiça. Ela já tinha lugar de destaque na minha mitologia pessoal, pois minha mãe, promotora de Justiça, narrava-me as façanhas de uma luta constante da classe para ter de fato a dignidade que a Constituição de 1988 lhe outorgara, dra. Nilma à frente. Pequenina de corpo e corajosa como ninguém, todos diziam. Por outros motivos mais pessoais, de apoio familiar naqueles longínquos anos, sua estatura moral era alta, alta a não mais poder, entre nós.
Eu era um estudante pretensioso, eu disse. Pavoneei-me. Pois a dra. Nilma tratou-me como um igual, sem afetação ou condescendência, nenhum gesto de vaidade nela. Ouviu-me. Não sei bem o que eu disse, mas fui ouvido. Espantei-me: era assim que as autoridades se comportavam? Não, não era: era assim que a dra. Nilma se comportava.
Seguimos a vida; mais tarde, pude ter o privilégio de sua convivência — invariavelmente, ela me telefonava a cada aniversário, às 7 da manhã. No último mês de setembro, não falhou. E ligava não apenas para dizer aqueles parabéns protocolares, pois havia sempre palavras de incentivo, boas lembranças, risadas. Soube-me doente e se preocupou. No meu dicionário, “dra. Nilma” equivale a “conselheira”, com todas as outras palavras que acompanham esta última: lealdade, atenção, simplicidade de trato e autoridade moral, respeito e, sobretudo, aquela capacidade de compreensão que a poucos é dada, um conhecimento íntimo de nossas fraquezas e miudezas que, aos olhos dela, jamais nos faziam menores — humanos somos, não? Alta de posto, general de todo o MP, elevava-nos à sua patente, muitas vezes somente pela proximidade. “Porque era ele, porque era eu”, assim Michel de Montaigne explicou sua amizade com Étienne de la Boétie — pois mil, dois mil, cinco, oito, dez mil goianos poderiam fazer a mesma afirmação: “Porque era a dra. Nilma”.
Foi-se hoje, infelizmente, como os jornais já noticiaram. Caída uma grande árvore, podemos medir o seu tamanho. E a dra. Nilma foi carvalho frondoso e também árvore que frutificou no MP goiano e na vida de cada um que ela tocou. Por coincidência, uma amiga me recordou, também hoje, de um poema que há muito eu não lia, da grande Cecília Meireles:
“Sede assim — qualquer coisa
serena, isenta, fiel.
Flor que se cumpre,
sem pergunta.
Onda que se esforça,
por exercício desinteressado.
Lua que envolve igualmente
os noivos abraçados
e os soldados já frios.
Também como este ar da noite:
sussurrante de silêncios,
cheio de nascimentos e pétalas.
Igual à pedra detida,
sustentando seu demorado destino.
E à nuvem, leve e bela,
vivendo de nunca chegar a ser.
À cigarra, queimando-se em música,
ao camelo que mastiga sua longa solidão,
ao pássaro que procura o fim do mundo,
ao boi que vai com inocência para a morte.
Sede assim qualquer coisa
serena, isenta, fiel.”
De nome completo: Nilma Maria Naves Dias do Carmo. Serena, isenta, fiel: flor que se cumpriu, onda que se esforçou, pedra detida sustentando demorados destinos. Tinha 78 anos.
Requiescat in pace, dra. Nilma — a luta foi árdua, a trincheira era a certa, o humor e o sentido de leveza nunca se perderam, as vitórias foram muitas: a senhora merece as honras que os seus soldados hoje lhe prestarão.