Dossiê soviético garante que Hitler tomou cianureto e atirou em si. Não fugiu para a Argentina

20 fevereiro 2016 às 11h43

COMPARTILHAR
A pesquisa rigorosa foi encomendada ao serviço secreto pelo ditador Stálin

Jornalistas argentinos são mestres na “arte” que mistura história com ficção, com a segunda quase sempre sobrepujando a primeira. Vários de seus livros garantem que Adolf Hitler não se matou, na Alemanha, e fugiu para a Argentina, onde morreu. Não há nenhuma evidência disso. Nenhuma. O que há são muitos boatos que alimentam e fortalecem boatos.
O leitor que quiser de fato ler dois livros sérios sobre a morte de Hitler — com todas as evidências apresentadas com o máximo de clareza, atendo-se aos fatos, e fugindo da boatolândia — deve consultar a biografia “Hitler”, de Ian Kershaw, e “O Dossiê Hitler — O Führer Segundo as Investigações Secretas de Stálin” (Record, 627 páginas, tradução de Kristina Michahelles), de Henrik Eberle e Matthias Uhl (organizadores).
O livro de Ian Kershaw é a verdadeira bíblia sobre Hitler. O que há de importante para a história está no livro do historiador inglês. Nada ou quase nada escapa-lhe. A edição publicada no Brasil pela Companhia das Letras, com tradução de Pedro Maia Soares, é a edição condensada pelo próprio pesquisador. Tem 1160 páginas. A obra garante: Hitler matou-se na Chancelaria do Reich, no dia 30 de abril de 1945, em Berlim, e seus ossos foram levados para Moscou pelos comunistas de Stálin. Este “recebeu a notícia sobre o suicídio cerca de 13 horas depois”. Nenhuma outra versão é levada a sério pelo autor e pelos demais historiadores qualificados — como Richard Evans, Allan Bullock, Richard Evans, Andrew Roberts e Antony Beevor.
Mas não há nada melhor, ao menos em português, do que “O Dossiê Hitler”. “Este é um importante documento; a partir de agora, terá lugar garantido entre as fontes sobre a vida de Hitler”, escreveu Ian Kershaw. O fantasma de Hitler na Argentina desaparece, em questão de segundos, quando o leitor abre as primeiras páginas deste livro. Stálin tinha verdadeira fascinação por Hitler e queria saber tudo a seu respeito, mesmo depois da morte do ditador nazista. Mandou prender aqueles que estavam com Hitler no bunker e levou-os para Moscou, tratando-os com extrema brutalidade. As principais fontes do livro — baseado na pesquisa encomendada por Stálin — são Heinz Linge e Otto Günsche, dois dos assistentes mais próximos de Hitler. O dossiê foi organizado pela Operação Mito.

nazistas mais proeminentes, antes da autópsia feita pelos médicos soviéticos
Os oficiais da SS Heinz Linge e Otto Günsche receberam ordens de Hitler para “incinerar seu cadáver” e o de Eva Braun, sua mulher. Eles deram vários depoimentos aos soviéticos (separadamente, e sem contradições) — até que se pudesse formatar o texto definitivo do dossiê, a cargo do coronel Fiódor Karpovitch Parparov. “O ‘Dossiê Hitler’ tornou-se um documento ao mesmo tempo único e insólito: apoiado no material de dois SS-Sturmbannführern, um grupo de autores do serviço secreto soviético trabalhou mais de quatro anos na biografia de Hitler, até adequá-la aos hábitos de leitura de quem a encomendou” (Stálin).
Eis um relato sobre a descoberta dos corpos de Hitler e Eva Braun: membros do serviço secreto soviético “desenterraram os restos mortais de Hitler e de sua mulher nos jardins da Chancelaria do Reich. Os soldados do serviço de contra-espionagem militar Smersch do 79º Corpo de Fuzileiros do 3º Exército haviam descoberto os cadáveres na véspera. No entanto, como supunham que os restos mortais de Hitler e de Eva Braun ainda estivessem na Chancelaria do Reich, voltaram a enterrar os corpos. Na manhã de 5 de maio [de 1945], o pessoal do serviço secreto percebeu o erro e desenterrou apressadamente de dentro de uma cratera de bomba, situada a aproximadamente três metros de distância da saída de emergência do bunker sob a Chancelaria do Reich, ‘dois corpos carbonizados’ e os cadáveres de dois cachorros. Os restos mortais foram embrulhados em cobertas e embalados em caixas de munição. Os cadáveres foram contrabandeados em segredo pelos colaboradores do Smersch para o seu novo QG em Berlim-Buch”.

Os soviéticos localizaram os dentistas Hugo Blaschke e Käthe Heusermann, que “confirmaram, no dia 11 de maio, que eram mesmo os “corpos de Adolf Hitler e Eva Braun”. O Smersch relatou, por fim, que o ditador e sua mulher “tinham cometido suicídio por ingestão de cianureto”. E Hitler havia atirado em si mesmo. Detalhe: o líder nazista tinha muito medo de que os soviéticos pudessem pegá-lo vivo.
Como o “Dossiê Hitler” era para consumo de Stálin, o serviço secreto soviético não tinha interesse nenhum em inventar histórias. Os livros sobre Hitler na Argentina, pelo contrário, são ficção — e, pior, má ficção.