O general, com o apoio de João Figueiredo, aceitou as ponderações de generais, como Milton Tavares de Souza, de que deveria executar “comunistas”

João Figueiredo e Ernesto Geisel teriam feito uma dobradinha para atacar as esquerdas moderada e radical

O presidente Ernesto Geisel tem sido tratado como o general que “matou” a ditadura. Primeiro, com o apoio de Golbery do Couto e Silva, formulou a distensão, a pré-Abertura, e, ao impor João Baptista de Oliveira Figueiredo como presidente, levou o país à Abertura. Ao mesmo tempo, teria tentado controlar os porões, afastando um general e exonerando um ministro do Exército, Sylvio Frota. Embora visto como “moderado”, da linha da Sorbonne — a do presidente-general Castello Branco, em contraposição à linha dura do presidente-general Costa e Silva —, era firme e não aceitava dividir autoridade. Certa feita, disse: “Repressão com brutalidade é burrice. Ninguém abre a janela, ninguém pensa. O Medici é um deus, o Orlando é um deus. O Miltinho é um deus. E eu sou uma besta”. “Por que não fazem uma ditadura bem botocuda? E me botam para fora! Porque eu não vou ficar quatro anos aqui aguentando as besteiras dos coronéis, majores e capitães. Depois a gente reclama quando dizem que há governo paralelo. E há mesmo!”, vociferou.

No livro “A Ditadura Derrota­da”, do jornalista Elio Gaspari, há o registro de uma conversa entre Ernesto Geisel e o general Dale Coutinho, em fevereiro de 1974, pouco antes da posse na Presidência da República: “Porque antigamente você prendia o sujeito e o sujeito ia lá para fora. […] Ó Coutinho, esse troço de matar é uma barbaridade, mas eu acho que tem que ser”. O presidente chegou a dizer que, “em certos casos, [a tortura] torna-se necessária para obter confissões”.

Tornou-se consenso que Ernesto Geisel fez o possível para controlar a “tigrada” dos porões (cada vez mais é preciso relativizar a autonomia dos porões, que talvez fossem mais oficiais do que muitos querem crer). Parece evidente que, nos casos dos assassinatos (reinventados como suicídios) de Vladimir Herzog, o Vlado, e do operário Manuel Fiel Filho, não deve ser responsabilizado diretamente — tanto que puniu, com o afastamento, militares envolvidos, até um general, Ednardo D’Ávila de Mello, perdeu o posto de comando. Entretanto, se o general-presidente avocava para si a autoridade sobre os atos do governo, quanto aos massacres de dirigentes do PCB (partido que não professava a luta armada) e outras execuções, inclusive de guerrilheiros no Araguaia — uma espécie de “rescaldo” —, operados tanto por militares quanto por policiais civis, como Sérgio Paranhos Fleury (no caso do Massacre da Lapa, em São Paulo, quando mataram a cúpula do PC do B — Ângelo Arroyo, Pedro Pomar), como retirar a sua responsabilidade? Não há como.

No livro “A Ditadura Encur­ra­la­da”, Elio Gaspari assinala: “Por mais que praguejasse quando se via desobedecido, Geisel tentava pôr de pé uma relação impossível com a má­qui­na repressiva da ditadura. Queria con­trolá-la, continuando a se beneficiar politicamente dos procedimentos ilegais que a tornavam incontrolável. No dialeto do meio, era um de seus ‘clientes’. (…) Figueiredo foi um aliado do porão até a véspera de to­dos os momentos decisivos. (…) No fim de janeiro de 1975, os desaparecidos eram cerca de 130. (…) Em se­tembro de 1975 passaram 142 pessoas pelos DOIs de todo o país. Os de­saparecidos do ano já eram sete. Os casos de tortura haviam triplicado em relação a 1974.” O governo de Er­nesto Geisel não dava moleza à esquerda — inclusive àquela, a do Partidão, que não celebrava a guerrilha como forma de se chegar ao poder.

Matias Spektor, professor de relações internacionais da Fundação Getúlio Vargas (FGV), pôs em circulação um documento secreto da CIA (na quinta-feira, 10), assinado pelo diretor da CIA, William Colby (1920-1996), de 1974, no qual faz revelações surpreendentes (o historiador Carlos Fico disse à “Folha de S. Paulo” que não ficou surpreso, pois não considera Ernesto Geisel como moderado) a respeito de assassinatos de membros da esquerda no governo de Ernesto Geisel. A respeito, sobretudo, da cadeia de comando — que estava no Palácio do Planalto, e não fora de lá ou meramente nos ministérios militares.

William Egan Colby, aliado dos generais brasileiros, na época da ditadura civil-militar, afirma que não era a tigrada sem controle que matava esquerdistas. O presidente Ernesto Geisel tinha controle da situação, segundo o diretor da CIA. O título do memorando é: “Presidente brasileiro Ernesto Geisel decide continuar execução sumária de subversivos sob certas circunstâncias”.

Antes de sua posse, em 30 de março de 1974, Ernesto Geisel conversou com os generais Milton Tavares de Souza — o Miltinho, que deu as ordens para o massacre dos guerrilheiros do Araguaia, obedecendo a outro Geisel, Orlando, irmão do presidente que foi ministro do Exército do governo de Emilio Medici — e Confúcio Danton de Paula Avelino, do Centro de Inteligência do Exército (CIE), e o general João Figueiredo, do Serviço Nacional de Informação (SNI). Os generais — consta que Miltinho via comunistas até nas asinhas dos pernilongos que o picavam — alertaram que seu governo não deveria ignorar a “ameaça subversiva terrorista” (vale frisar que até o general Golbery do Couto e Silva, anticomunista visceral, era apontado, por alguns coronéis, como esquerdista. Chegaram a sugerir o seu assassinato).

Massacre da Lapa: Ângelo Arroyo e Pedro Pomar, líderes do PC do B, não reagiram mas foram executados no governo do presidente Ernesto Geisel

Na reunião, Milton Tavares — que teria dado ordens para, a partir de cer­to momento, não deixar nenhum guer­ri­lheiro sair vivo do cenário da Guer­rilha do Araguaia — admitiu que “mé­todos ilegais” haviam sido usados contra “subversivos perigosos”. O general, um caniço de tão magro mas de uma energia visceral, informou que 104 esquerdistas haviam sido executadas pelo CIE no fim do governo de Emilio Medici. Ernesto Geisel frisa que Miltinho Tavares era um general disciplinado. Traduzindo: não agia por conta própria, de maneira isolada. O tratamento violento à esquerda era sistêmico, oficial, quer dizer, autorizado de cima.
O relatório da CIA informa que, “em 1º de abril, o presidente Geisel disse ao general Figueiredo que a política deveria continuar, mas que cuidados deveriam ser tomados para assegurar que apenas subversivos perigosos fossem executados”. A cúpula do PCB, que não pregava o confronto e a luta armada, foi quase toda dizimada — o que contraria a ressalva apresentada no documento. A ação contra o Partido Comunista Brasileiro não foi uma operação de porão, e sim uma ação do governo federal. Mais autorizada, impossível.
O memorando acrescenta: “O presidente e o general Figueiredo concordaram que, quando o CIE prender uma pessoa que possa ser enquadrada nessa categoria, o chefe do CIE consultará o general Figuei­re­do, cuja aprovação deve ser dada antes que a pessoa seja executada. O presidente e o general Figueiredo também concordaram que o CIE deve dedicar quase todo o seu esforço à subversão interna, e que o esforço geral do CIE será coordenado pelo general Figueiredo”.

Matias Spektor assinala que é a primeira vez Ernesto Geisel e João Figueiredo são apontados, num documento, como tendo responsabilidade direta, como mandantes, de execuções de presos políticos — os “subversivos”. “Este é o documento mais perturbador que já li em 20 anos de pesquisa”, afirma o professor da FGV. Ele impressionou-se com o fato de que o presidente, com o apoio de João Figueiredo, exigiu ter controle dos assassinatos. “Não se sabia que o Geisel havia chamado para o Palácio do Planalto a responsabilidade sobre a decisão das execuções sumárias. A cúpula do governo não só sabia como chamou para si a responsabilidade. Isso é que é tão impressionante, chocante”, ressalta o pesquisador.

(Elio Gaspari, num de seus livros, escreve: “Nunca um presidente brasileiro praticara tamanho ato de hostilidade contra os Estados Unidos. (…) Geisel cassara o Acordo Militar Brasil-Estados Unidos.”)