Luís Cláudio Villafañe vasculha a obra de um homem que foi para Canudos “vestido” como jornalista e voltou “nu” como pensador do Brasil

Durante anos, o Brasil esperou, quase de joelhos, a biografia que o professor da USP Roberto Ventura estava preparando sobre o escritor e pensador Euclides da Cunha, que não escreveu apenas “Os Sertões”. Mas o mestre, um euclidófilo (ou euclidiano) tão próximo quanto distanciado, morreu cedo, em 2002, aos 45 anos, num acidente automobilístico. Ficamos, os leitores do Homero de Canudos, parcialmente órfãos. A Companhia das Letras chegou a publicar “Euclides da Cunha — Esboço Biográfico”, de Roberto Ventura. O livro foi organizado por Mario Cesar Carvalho e José Carlos Barreto de Santana, que tentaram lhe dar certa unidade, mas, ainda assim, é uma obra fragmentária e lacunar, como não poderia deixar de ser.

Euclides Rodrigues Pimenta da Cunha morreu em 1909, aos 43 anos, assassinado por um militar que era amante de sua mulher. Seu livro mais brilhante, que é uma densa interpretação do Brasil, a partir da Guerra (ou massacre) de Canudos — seu mote —, é “Os Sertões”. Trata-se de uma obra que, direta ou indiretamente, é precursora de “Casa Grande & Senzala”, de Gilberto Freyre, e “Raízes do Brasil”, de Sérgio Buarque de Holanda. Euclides da Cunha foi para Canudos vestindo o Armani do preconceito e voltou de lá mais nu do que criança quanto nasce. O escritor-pensador reinventou Canudos, dando-lhe caráter de fato histórico (e literário, veja-se o próprio Euclides da Cunha e o peruano Mario Vargas Llosa, com o romance “A Guerra do Fim do Mundo”), e Canudos o reinventou como homem e intelectual. Ele se tornou uma espécie de Rimbaud de Canudos.

“Os Sertões”, a obra-prima de Euclides da Cunha, um pensador do Brasil | Foto: Reprodução

“Os Sertões” acabou por tornar Euclides da Cunha um dos “reinventores” do Brasil, um de seus intérpretes mais perceptivos. O livro é tão poderoso e reverberante que, de alguma maneira, “escondeu” as demais obras do autor — inclusive sua poesia (pode ser consultada no livro “Poesia Reunida”, de Euclides da Cunha, organizado por Leopoldo M. Bernucci e Francisco Foot Hardman, Editora Unesp, 492 páginas).

Muito já se escreveu, e bem, sobre Euclides da Cunha. Walnice Nogueira Galvão, Luiz Costa Lima e Leopoldo M. Bernucci explicaram “Os Sertões” em alto nível. Não só eles, é claro, que são citados como exemplos.

Mas o homem Euclides da Cunha — o pensador do Brasil e de seus homens — permanece um continente a ser desbravado. A excelência da universidade tem trabalhado para entendê-lo e explicá-lo, possibilitando um entendimento mais amplo de suas ideias. No caso, mais suas obras.

Se a obra tem sido examinada com percuciência, a vida de Euclides da Cunha, ainda que se tenha biografias, permanece razoavelmente nebulosa. Pesquisadores sérios preferem trabalhar a obra para, decerto, evitar o sensacionalismo sobre a vida pessoal.

O euclidianista norte-americano Frederic Amory publicou uma biografia de qualidade, “Euclides da Cunha — Uma Odisseia nos Trópicos” (Ateliê Editorial, 430 páginas, tradução de Geraldo Gerson de Souza). A apresentação é de Leopoldo M. Bernucci.

Frederic Amory conta bem a história de Euclides da Cunha, ainda que numa prosa meio amarrada, vazada, naturalmente, no estilo acadêmico. No final do livro, ele cita Lord Acton: “Julguem o melhor do talento e o pior do caráter”. O mesmo Acton anotou: “Não procurem unidade artística no caráter”.

Fica-se a pensar e a se perguntar: Frederic Amory explica melhor a obra do que a vida de Euclides da Cunha? É provável. Porque a obra tem uma fortuna crítica imensa, explorando suas variantes, mas a vida (ou parte dela) é quase um tabu.

O homem que escreveu “Os Sertões” — que influenciou “Grande Sertão: Veredas”, romance de João Guimarães Rosa —, uma síntese do Brasil, era um grande tímido (paradoxalmente, deixou uma obra nada tímida). “Sua pouca inclinação a falar no meio de uma conversa geral, seu incômodo genuíno em reuniões oficiais, sua confessa autocaracterização como caboclo, sua transparente inocência e dolorosa honestidade, sua natureza reclusa, sua repressão, tudo isso me parecem sintomas de uma timidez fundamental”, anota Frederic Amory.

Certa feita, Coelho Neto levou Euclides da Cunha para assistir um filme de faroeste. Um marido atira na mulher adúltera e no seu amante. Terminada a sessão, com o “cinema ainda escuro”, o escritor vociferou: “É assim que eu compreendo! Fizessem todos [os maridos traídos] assim e não haveria tanta miséria como há por aí. Essa é a verdadeira justiça. Para a adúltera não basta a pedra israelita, o que vale é a bala”.

Os homens se tornam mais “ricos” quando suas contradições são expostas de maneira integral, possibilitando um entendimento do que é como indivíduo e como criador artístico. Não ficam menores quando são expostos determinados problemas, como o machismo de Euclides da Cunha, um homem do século 19 que, tudo indica, caminha, como autor de “Os Sertões”, para a permanência, para a eternidade. Uma avaliação justa tem de ser feita pela média, e não pelos extremos (pelos extremos devem ser julgados seres brutais como Hitler e Stálin).

Luís Cláudio Villafañe: o diplomata e pesquisador enfrentou a vida de dois grandes brasileiros, o Barão do Rio Branco e o escritor Euclides da Cunha | Foto: Reprodução
Para além da obra-prima Os Sertões

O diplomata Luís Cláudio Villafañe G. Gomes é autor de uma excelente biografia, “Juca Paranhos — O Barão do Rio Branco” (Companhia das Letras, 560 páginas). Tanto a pesquisa é valiosa, com uma consulta exaustiva às fontes, quanto o texto é de escritor — o que torna a narrativa ágil e agradável (sem perder a complexidade). Aos 60 anos, o pesquisador decidiu se meter numa, digamos, “divina increnca” (com “i” mesmo — lembrando Juó Bananére): contar a vida de um homem que foi para Canudos como jornalista (e era engenheiro) e voltou de metamorfoseado em pensador do Brasil. Não é uma missão fácil, e felizmente escapou do que alguns chamam de “a maldição de Euclides da Cunha” (lembrando que Roberto Ventura viveu apenas dois anos a mais do que o escritor).

“Euclides da Cunha — Uma Biografia” (Todavia, 432 páginas), de Luís Cláudio Villafañe, que ainda não li, parece ser mais uma tentativa de entender a Amazônia que Euclides da Cunha se tornou, um escritor poderoso que, de tão conhecido e reverberante, se tornou um continente relativa e estranhamente desconhecido. Há quem fale da aridez de seu texto, resultado de seu rigor (um geólogo chegou a apontar problemas em certas partes) — como se o livro pudesse contar tudo o que havia acontecido, e também sobre a região do fato —, mas o leitor com alguma paciência, o medicamento com que os deuses premiam os homens de boa vontade, às vezes, poderá fazer a travessia sem grandes percalços.

Como se saiu muito bem ao contar a vida do Barão do Rio Branco, o chefe de Euclides da Cunha, muito possivelmente terá escrito um livro brilhante sobre o autor de “Os Sertões”. Grandes biografias não contam, óbvio, apenas a vida do indivíduo — são, a rigor, uma história de seu tempo. (E-mail: [email protected])

Trecho do livro de Luís Cláudio Villafañe

A vida e a obra de Euclides da Cunha despertam grande interesse, e não apenas dos estudiosos de literatura e de outras áreas do conhecimento, como história, antropologia, sociologia, geografia e geologia. Também seguem atraindo a curiosidade do público em geral. Euclides viveu relativamente pouco. No entanto, os seus 43 anos de existência física foram repletos de aventuras, como nos meses que passou na Bahia, durante a última campanha do Exército contra Antônio Conselheiro e seus seguidores, e o pouco mais de um ano em que liderou uma expedição na Amazônia até as nascentes do Rio Purus, já adentrando o que hoje é reconhecido como território peruano. Ergueu fortificações militares e pontes civis. Conviveu estreitamente com muitos dos nomes mais importantes da política e da cultura brasileira na primeira década do século passado. Participou de uma conspiração para a derrubada de um presidente e defendeu outro de armas na mão. Foi militar, engenheiro, cientista, jornalista, literato e cartógrafo. Escreveu um livro que figura indiscutivelmente entre os mais importantes já publicados por um brasileiro, uma das obras-primas da literatura em língua portuguesa. É dono de um acervo literário que, se não chega a ser extenso, de modo nenhum se reduz a ‘Os Sertões’. Tentou matar e acabou sendo morto. A narrativa que se segue vai muito além desses dois temas e visa proporcionar ao leitor ou à leitora uma imagem ao mesmo tempo mais ampla e mais detalhada da vida de Euclides Rodrigues Pimenta da Cunha, com suas contradições, hesitações, erros e acertos. Do mesmo modo, dando-se a ele a centralidade que o livro merece, ‘Os Sertões’ será visto dentro do conjunto da obra do jornalista e escritor.”

A flor do cárcere
Euclides da Cunha

Nascera ali — no limo viridente

Dos muros da prisão — como uma esmola

Da natureza a um coração que estiola —

Aquela flor imaculada e olente…

E ele que fora um bruto, e vil descrente,

Quanta vez, numa prece, ungido, cola

O lábio seco, na úmida corola

Daquela flor alvíssima e silente!

E — ele — que sofre e para a dor existe —

Quantas vezes no peito o pranto estanca!…

Quantas vezes na veia a febre acalma,

Fitando aquela flor tão pura e triste!…

— Aquela estrela perfumada e branca,

Que cintila na noite de sua alma…