Depressão, sintoma que interroga o viver

23 maio 2022 às 11h17

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Pesquisa Vigitel diz que 11,3% dos brasileiros se encontram com diagnóstico de depressão, porcentagem que é superior aos 9% dos brasileiros com diabetes
Marcos Antonio Ribeiro Moraes
Especial para o Jornal Opção
Os modos de sofrimentos psíquicos se manifestam como enigma que interroga os laços sociais em cada momento da história. Dentre esses, a depressão se caracteriza predominantemente pela alteração do humor, que leva o sujeito a se retirar da cena cotidiana.
O termo depressão alude a um grande buraco no caminho. Trata-se de um mal-estar que sempre esteve presente em diferentes momentos. Um tema que atravessa as artes, a literatura, a investigação filosófica e científica. Com muito mais relevância ainda em nossa contemporaneidade.

A esse respeito, nos últimos dias, os principais jornais e revistas do Brasil publicaram dados da mais recente pesquisa, revelando que, no Brasil, mais de 24 milhões de pessoas sofrem com a depressão. Esses dados comparados revelam que a pandemia da Covid-19 e a atual instabilidade econômica agravaram esse quadro. Uma projeção divulgada pela Pesquisa Vigitel 2021, do Ministério da Saúde revela que 11,3% dos brasileiros se encontram com diagnóstico de depressão, porcentagem que é superior aos 9% dos brasileiros com diabetes.
A correlação desses dados com o contexto da pandemia indica que, predominantemente, a depressão seria um modo de reação, de nomeação do mal-estar, decorrente da condição que se encontra o sujeito no mundo em que vive. É isso que chamamos de subjetividade, ou seja, um modo específico de atribuir sentidos aos jogos da vida, de se relacionar e se afirmar sexualmente, amar, ganhar ou perder nesse jogo.

O que ganhamos ou perdemos ao longo da vida, tem a ver com as possibilidades e limites do nosso corpo, do mundo externo com suas intempéries e das relações com os outros. É isso o que nos indica Freud (1930) em “O mal-estar na cultura”. A travessia da vida é feita de conquistas, mas também de perdas e faltas. Sabemos que não é de hoje que o mercado financeiro se vale desse jogo, com promessas de reposição, de que é possível nos livrarmos por completo de nossas perdas e faltas.
A psicanálise, por sua vez, nos possibilita entender que nesse estado de profunda tristeza, ocasionada por uma perda, a energia pulsional que move o desejo não se desliga do objeto perdido, ainda que esse vínculo permaneça sustentado por culpa, nostalgia e recriminação. Lacan (1974), em seu escrito intitulado “Televisão”, aborda esse tema como se tratando de uma desistência do sujeito, que por fim abandona o seu trabalho de lidar como a tensão inerente a sua condição desejante, que é inseparável da falta. Ou seja, da possibilidade de perder, de ter que renunciar ao objeto de seu desejo, em diferentes lugares e ciclos da vida.
Essa condição de renúncia tem sua origem no momento primevo, em que o sujeito se separa do Outro materno. A partir de então, se espera que a sua constituição psíquica siga o seu curso, num suceder de renúncias e novos investimentos do desejo em outros objetos. Ao se recusar a viver esse jogo, o sujeito termina por desistir de sustentar o seu desejo. Os sinais clínicos da depressão tais como: angústia, agitação, sonolência ou dificuldades para dormir e – nos casos mais graves, as ideações suicidas, que muitas vezes culminam na passagem ao ato – indicam que o sujeito se vê desorientado, acuado, culpado, desacreditado da possibilidade de retirar sua pulsão do objeto perdido e, com ela, retomar novos investimentos do seu desejo.

Em sua obra “O Id e o Ego” Freud (1923) nos leva a compreender que a culpa e a recriminação indicam que o sujeito pode estar como presa de um superego feroz, que responde por altas exigências pautadas num Ideal de Eu, ligado à pulsão de morte. Se viver dói, na depressão essa dor de existir tem uma proporção ainda muito maior.
A depressão, portanto, se inscreve na história concreta de um sujeito e no modo de subjetividade em que se encontra. Modo que funciona como uma lente, com a qual irá enxergar e medir a sua história, o modo como irá encarar suas perdas, a possibilidade de corresponder ou não ao seu Ideal de Eu.
Segundo Joel Birmam (2012) em seu livro “O sujeito na contemporaneidade”, os signos ou pontos de referência que orientavam o sujeito no mundo não são mais estáveis como outrora, gerando um sentimento de vazio e desorientação, no que tange a sustentação do seu desejo e ideais. Para ele, o mal-estar contemporâneo se manifesta especialmente em três modos de padecimento. Primeiro, marcando os corpos com estresse, pânico, dores e outros sinais. Como modos intensos de ação, hiperatividade, ritmo enlouquecido, diferentes formas de violência e crimes contra a vida. E, finalmente como intensidades ou afetações emocionais. Nessa última modalidade se destaca a depressão como uma maneira de se retirar da cena ou na busca de alívio no uso de droga e consumismo estimulado pelo mercado.

Tudo isso funcionando como tentativas de contornar o vazio existencial. Outro sintoma bastante atual é o denominado “bipolar”. Nesse, o sujeito se vê numa gangorra, onde de um lado se posiciona na mania, que é caracterizada pela elevação de um gozo sem falta. E do outro a depressão, quando tem que se a ver com limites impostos pelo Outro, a esse gozo elevado.
Nesse sentido, é interessante considerar que a depressão, enquanto sintoma, acompanha o curso histórico da modernidade, com suas diferentes reedições do sistema capitalista. E isso se configura como um grande paradoxo. Pois se a depressão é um estado de retirada da pulsão, de adormecimento do desejo, sabemos que o capitalismo, ao contrário, exige “soldados e consumidores sem sono”; que o sujeito esteja a todo tempo acordado para produzir e consumir.
No livro “24/7 O capitalismo tardio e os fins do sono” Jonathan Crary (2014) afirma: “a imensa parte de nossas vidas que passamos dormindo, libertos de um atoleiro de carências simuladas, subsiste como uma das grandes afrontas humanas à voracidade do capitalismo.” Essa obra é uma importante referência para entendermos aspectos relevantes da depressão e de outras modalidades de sofrimentos psíquicos atuais. Ou seja, a relação de contradição entre esses modos de padecimento e o modelo social em que vivemos. Modos de contradizer, de se furtar à lógica estabelecida, de resistir e sobreviver a lógica do mercado, expressão de um sistema no qual o próprio ser humano é um empecilho à acumulação ilimitada e sem fim, 24 horas por dia, 7 dias por semana. Nesse cenário, a depressão parece ser um desses modos de resistir, pela via de um longo sono.
Vale lembrar que a psicanálise também comparece historicamente no contexto da modernidade capitalista e dos seus modos de subjetivação. Mas como um apelo a acordar, a falar do que se passa, no âmbito do sujeito e da cultura. A falar daquilo que se recusa ou se recalca nesse sono/sonho. Um trabalho de confrontação com a referida falta, com as perdas inerentes ao curso do viver. Como possibilidade de reconhecer a falta sem se deixar paralisar ou cair no buraco.
Com muita frequência, nossos analisandos, quando se deitam no divã, suspiram e dizem: “que bom aqui… acho que vou dormir!” Mas sem que percam o aconchego da cena analítica, sem que sejam afrontados por mais uma ordem superegóica, os convidamos a falar, a recordar, a elaborar e acordar o desejo. A saber fazer algo de bom e possível com sua força pulsional.
Marcos Antonio Ribeiro Moraes é psicanalista. Professor da PUC-Goiás e membro da Appoa. É colaborador do Jornal Opção.
Referências
Birman, J. (2012). O sujeito na contemporaneidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira.
CRARY, J.(2014). 24/7 – Capitalismo tardio e os fins do sono. São Paulo: Cosac & Naify.
Lacan, J. (1974/2003). Televisão. In: Outros Escritos (pp. 508-543). Rio de Janeiro: Jorge Zahar.
Freud, S. (1923/1996). O Ego e o Id (Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, Vol. 19). Rio de Janeiro: Imago.
FREUD, S. (1930/2020). O mal-estar na cultura. In: FREUD, S. Obras Incompletas de Sigmund Freud, vol. O mal-estar na cultura e outros escritos de cultura, sociedade, religião. Belo Horizonte: Autêntica.