A democracia é forte e, ao mesmo tempo, é frágil. Forte porque, sendo um sistema aberto, fortalece a sociedade civil e a sociedade política. Fraca porque, permitindo a existência daqueles que a contestam, pode ser posta, a qualquer momento, no chão.

O Brasil vive numa democracia há quase 40 anos (o aniversário será em 2025). Nesse tempo, nunca foi tão questionada quanto no governo do ex-presidente Jair Messias Bolsonaro (PL).

Espécie de “filho” político tardio de Emilio Médici e Sylvio Frota, Bolsonaro, tendo sido eleito pela democracia, decidiu conspirar contra ela, para se manter no poder, não mais eleito, e sim por meio de um golpe de Estado continuísta.

O país cansou-se de ouvir o famoso palavreado do deputado federal Eduardo Bolsonaro, filho de Jair Messias, a respeito de que, para fechar o Supremo Tribunal Federal, se precisava apenas de um soldado e um cabo. Parecia brincadeira, mas não era. Os golpistas de Bolsonaro — a feição civil do putschistas ainda precisa ser descrita — queriam mesmo fechar o STF e prender seu símbolo máximo, Alexandre de Moraes.

Com o apoio dos generais Augusto Heleno, Walter Braga Neto e Paulo Sérgio Nogueira, além de alguns coronéis, Bolsonaro chegou a elaborar um projeto de golpe, baseado em ideias do jurista Ives Gandra (um homem respeitável, mas que, infelizmente, está ficando, cada vez mais, mal na fita).

O golpismo esbarrou, porém, na decisão do Exército, cujo então comandante, Freire Gomes, foi peremptório. Os homens de verde não embarcaram na aventura do capitão aposentado. Ao refutar a trama, abortaram o putsch. O 8 de Janeiro, com os malucos invadindo o Palácio da Justiça, o Palácio do Planalto e o Congresso, era o segundo tempo dos saudosistas da ditadura de 1964. Talvez fosse um aviso para o Exército: “O golpe é possível — e até sem ‘você’”.

Entretanto, o mais importante é perceber como a democracia está “enquadrando”, por assim dizer, os golpistas.

O tenente-coronel Mauro Cid está preso mais uma vez — quiçá numa posição extrema do Supremo. Mas, se o militar passou a refutar o que disse na delação premiada, há mesmo motivo para prisão, sobretudo se estiver atrapalhando a investigação e obstruindo provas.

Mauro Cid é o homem-bomba, não por ter importância no Exército, e sim por ter circulado nos bastidores (e bas-fond) do governo de Bolsonaro, privando inclusive de sua intimidade (é óbvio que não se está falando de sexo, esclareça-se). Ele tem informações suficientes para derrubar a República bolsonarista e é certo que, até agora, narrou os fatos de maneira seletiva. Mas, mesmo assim, o que disse é muito grave. (Frise-se que em conversas pessoais, talvez com um bolsonarista de proa, quem sabe o próprio Bolsonaro, o tenente-coronel pode ter dito coisas para não desagradar o interlocutor. Brasileiros são mestres neste artifício.)

Como sabem os policiais federais e os ministros do Supremo, Mauro Cid é, porém, apenas a ponta do iceberg — cerca de 1cm. As investigações estão trazendo Bolsonaro e seus generais para a superfície. O iceberg vai aparecer, com a tendência a derreter.

Dada uma transição complicada, com os militares, como o general Leonidas Pires Gonçalves, tutelando a República — o governo Sarney —, a democracia não teve como fazer o ajuste com a ditadura. Por isso, de alguma maneira, determinados militares, como Augusto Heleno — que trabalhou com Sylvio Frota, que conspirou contra o governo do presidente-general Ernesto Geisel —, Braga Neto e Paulo Sergio, liderados (!) por Bolsonaro, sentiram-se confortáveis para tramar outro golpe, como o de 1964 (que tinha no comando um militar intelectualizado, como Castello Branco, e não um bronco como Bolsonaro. Pelo jeito, até os golpistas pioraram).

Por mais frágil que seja, a democracia, com o apoio do império da lei, deve ser uma ameaça, até permanente, para golpistas. Se a prisão de Bolsonaro (e não se deve temer a possibilidade de ele se tornar uma espécie de mártir), Braga Neto, Paulo Sergio e Augusto Heleno for decretada pelo Supremo, a democracia estará mandando um recado duro a militares e vivandeiras. O recado é simples: a democracia não teme os não-democratas.

Então, o mais importante mesmo é que a democracia está enfrentando militares sem temê-los, sem não-me-toques. Os golpistas estão na defensiva e talvez não saiam mais da posição. Mesmo que um bolsonarista seja eleito em 2026 — uma possibilidade real —, seu governo não será, possivelmente, como o de Bolsonaro. Será, por certo, mais moderado e, sobretudo, democrático.